segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

O ENIGMA POLÍTICO ARGENTINO

Por Emir Sader

“Se a situação argentina tem suas complexidades, ela se torna completamente incompreensível à luz da cobertura que a mídia brasileira – que se pauta pela mídia de direita da Argentina – faz. Não conseguiram entender por que Nestor Kirchner e não Carlos Menem se elegeu presidente, por que Cristina se elegeu como sucessora dele e se reelegeu em seguida. É tal a visão catastrófica que se transmite da Argentina que não conseguem dar conta de por que Cristina se reelegeu no primeiro turno.

A Argentina sofreu uma das modalidades mais radicais de neoliberalismo na América Latina. Depois de duas crises de hiperinflação, Menem impôs uma solução radical e artificial ao problema: por um decreto, se estabelecia a paridade entre o peso e o dólar. A Argentina renunciava a ter política monetária, ficando a cotação da sua moeda atrelada à do dólar, definida pelo “Federal Reserve” dos EUA. Não se emitiria peso se não houvesse entrada de dólares. Subitamente, se elevou o poder aquisitivo da moeda e dos argentinos, de maneira totalmente artificial, numa bomba de tempo que não poderia demorar para explodir.

Os candidatos temiam prometer que terminariam com a paridade, porque todo argentino sabia que teria os seus pesos enormemente desvalorizados, porque os depositava considerando que teriam o correspondente em dólares. Se podia comprar carros em prazos longos, sem juros, com a fantasia da paridade, mas a dívida era assinada em dólares. Ainda mais que todos foram se endividando, apoiados na paridade e na confiança de que esse esquema não seria alterado.

Menem, como todos os presidentes neoliberais latino-americanos, saiu derrotado e deixou a bomba de tempo explodir nas mãos de Fernando de la Rua, do Partido Radical. A paridade terminou, houve uma espécie de rebelião popular cobrando dos bancos seus depósitos, que tinham passado da paridade com o dólar, para 4 a 1. De la Rua saiu rapidamente de helicóptero da Casa Rosada, depois de reprimir manifestações em Buenos Aires, com 27 mortos no centro da cidade.

Depois da instabilidade institucional, com vários pessoas sucedendo-se na presidência em poucos dias, nas eleições Menem ganhou no primeiro turno, prometendo que dolarizaria totalmente a economia argentina (o que levaria ao desastre a Argentina e inviabilizaria qualquer processo de integração da região). Diante da evidente derrota para Nestor Kirchner no segundo turno – pelos apoios que este recebeu dos outros candidatos -, Menem se retirou e Kirchner foi eleito.

Kirchner conseguiu recuperar a Argentina do maior desastre econômico e social da sua história, fazendo com que a economia crescesse a ritmos anuais de 6 a 9% ao ano, durante cerca de 8 anos. Mas arrastou problemas da herança do Menem.

Entre esses, uma dívida descomunal e a privatização de todo o patrimônio público – entre ele, o da YPF, que tinha obtido a autossuficiência em petróleo para a Argentina. O governo Kirchner impôs a renegociação dos papéis da dívida, que foi aceito por grande parte dos seus proprietários. Mas os restantes 8% bloqueiam, até hoje, o acesso da Argentina a créditos internacionais.

Outra herança foi o déficit energético, que fez com que o governo passasse a subsidiar o consumo de energia e a importá-la, o que se tornou peso brutal nos gastos públicos.

Mas a Argentina retomou ritmos altos de crescimento – mesmo se agora muito dependente da exportação de soja – e os Kirchner consolidaram os apoios populares a seus governos, mesmo diante de ofensivas da direita – como a dos proprietários de soja, quando o governo decretou aumento nos impostos sobre exportação.

A conjuntura atual é a condensação de uma serie de questões pendentes. Por exemplo: a manifestação de 8 de novembro passado reuniu, basicamente, setores da classe média da cidade de Buenos Aires, com os lemas contrários à reeleição da Cristina e contra a aplicação da Lei de Meios. No ano que vem, haverá eleições parciais para o Congresso. Se Cristina obtiver 2/3 dos votos – objetivo difícil – poderá submeter a revogação da Constituição, para se candidatar a um terceiro mandato.

Caso não o consiga, se abre cenário muito complexo, porque não há um candidato à sua sucessão indiscutível entre as forças que a apoiam e pode se abrir disputa que dividirá, ainda mais, o peronismo. Um candidato conservador dentro do peronismo – Scioli, governador da província de Buenos Aires – se lançou e tem o apoio de setores opositores a Cristina dentro do peronismo.

A Lei de Meios tinha no dia 7 de dezembro uma data chave, porque terminava o prazo do recurso que o grupo Clarín havia conseguido na Justiça para adiar a aplicação da lei de democratização, pela qual o grupo terá que se desfazer da longa lista de canais a cabo que tem – 254 – para ficar com 24, que é o que permite o caráter antimonopólico da nova lei.

Seguiu-se uma greve e outras manifestações protagonizada pelo setor da CGT que se opõe ao governo de Cristina – dirigido por Moyano pelo setor da CTA de ultraesquerda, além da Federação Agrária, que congrega os produtores de soja. Com reivindicações basicamente salariais, mas com um tom político fortemente opositor, apontando para um bloco de forças que pode vir a se coesionar para tentar bloquear os 2/3 que Cristina busca no Parlamento e, depois lançar um candidato – talvez o próprio Scioli – em 2014.

A economia argentina perde fôlego, vulnerabilizada pelas dificuldades de financiamento externo, pela diminuição do ritmo de crescimento do Brasil – seu principal mercado – pela inflação real, pelos déficits orçamentários – em boa parte advindos dos subsídios à energia. O clima de bonança que cercou a reeleição de Cristina – que além disso conseguiu promover um processo de mobilização de setores jovens do peronismo, a partir da morte de Nestor e das comemorações do bicentenário do país – passou.

Uma espécie de inferno astral abateu-se sobre o governo, somando-se às mobilizações da oposição, a apropriação de um navio argentino em Gana por um mandato de uma instância judicial norte-americana, pelo não pagamento de parte da dívida argentina, além de uma ordem de uma outra instância judicial dos EUA, que buscava obrigar o governo argentino a, primeiro, pagar esse monto pendente, antes de seguir pagando as cotas aos que aceitaram renegociar a dívida.

Essas duas últimas questões foram superadas - pelo menos temporariamente. O governo intensificou a ofensiva contra o Clarín, tudo indica que possa colocar em prática a desmonopolização do grupo, mesmo se os prazos se alongam. Ao mesmo tempo, recuperou para o Estado o espaço que ocupava a “Sociedade Rural Argentina”, depois de ter nacionalizado a YPF, privatizada pelo governo Menem.

Os embates entre o governo e a oposição se seguirão em várias frentes: a externa, aquela aglutinada por forças sindicais e a do Clarín e os setores de direita que apoiam a esse grupo. Se a soma das frentes causa problemas do governo, sua heterogeneidade faz com que tenham dificuldade de traduzir em força política unificada por uma candidatura presidencial competitiva.

Caso Cristina não possa concorrer e o governador da província de Buenos Aires unifique as forças hoje dentro e fora o governo, especialmente do campo peronista, a sucessão argentina de 2014 será uma dura prova para a continuidade do governos dos Kirchner. Uma prova para a capacidade de Cristina de construir um sucessor que possa dar continuidade aos governos que resgataram a Argentina do caos herdado já há quase 10 anos. O primeiro capítulo dessa disputa dominará o cenário político de 2013: as eleições parlamentares e a possibilidade do governo obter 2/3, reformar a Constituição e Cristina se candidatar a um terceiro mandato. Essa disputa define o cenário da sucessão presidencial de 2014.”

FONTE: escrito pelo cientista político Emir Sader no site “Carta Maior”  (http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=1&post_id=1163).

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