Luiz Gonzaga Belluzzo escreveu para o site Terra Magazine o bom artigo a seguir transcrito, postado em 28 de julho. O autor é professor titular aposentado da Unicamp, consultor editorial da revista Carta Capital e vencedor do prêmio Juca Pato em 2005.
“Os críticos não se cansam de deplorar a frouxa supervisão das autoridades americanas e européias incumbidas de fiscalizar os mercados financeiros. A desídia dos reguladores vem abrindo as portas para operações malogradas de todo o gênero.
Nos tempos das malfeitorias da Enron & Cia, a revista The Economist, indignada com a sucessão de equívocos, perguntou em uma de suas edições: "Não há mercados financeiros honestos nos Estados Unidos?" Na seção Buttonwood, respondeu "Todos estão ganhando dinheiro, menos os clientes". "Os Bancos de Investimento", continua, "tratavam de se desvencilhar das ações que seus analistas 'esquentavam' publicamente".
A despeito da lei Sarbannes-Oxley, considerada excessivamente rigorosa por Henry Paulson, o solerte Secretário do Tesouro dos Estados Unidos, a criatividade financeira ganhou alento no episódio do subprime. Os criativos inventaram "novidades", manipularam preços de ativos e engambelaram clientes e devedores "sem lenço nem documento". A título de recompensa por tais proezas, receberam e continuam recebendo o socorro tempestivo (boa palavra) do Federal Reserve e do Tesouro.
Escrevi recentemente na revista CartaCapital que os comentaristas mais "ligados" lamentam o sistemático desrespeito às cláusulas pétreas do "ethos" do mercado: 1) os perdedores realizam prejuízos, assim como os ganhadores registram lucros; 2) não se usa dinheiro do contribuinte para salvar instituições privadas da bancarrota.
Diante da realidade nua e crua, prossegui, o secretário do Tesouro americano, Henry Paulson, colocou à disposição a grana dos contribuintes para comprar ações das moribundas Fannie Mãe e Freddie Mac, instituições privadas de crédito hipotecário.
Criadas por Roosevelt nos anos 30 do século passado, na era do New Deal, as agências, então governamentais, funcionaram como bancos de segunda linha, provendo liquidez para o mercado de hipotecas. Fannie e Freddie cumpriram um papel importante na realização do mais acalentado "sonho americano", a aquisição da casa própria. Privatizadas, Fannie e Freddie chegaram à beira do abismo do subprime. Impedidas de capturar devedores perigosos por restrições regulatórias, ainda assim foram tragadas pelo sorvedouro hipotecário.
O Federal Reserve de Ben Bernanke, já foi dito aqui, entrou na dança, atropelando as regras e abrindo as comportas da liquidez para manter vivas as bizarras criaturas da ganância infecciosa. Depois de socorrer bancos de investimento o Fed promete abrir seu balanço para acolher as dívidas das agências depauperadas - a preços que o mercado recusaria.
Não faltam no pedaço os incomodados com a reiterada prática da privatização dos lucros e socialização dos prejuízos. Diga-se que esta tem sido a regra e não a exceção nos tempos de crise financeira. Assim é, argumentam, porque um crash bancário não poupa culpados nem inocentes.
O ex-subsecretário do Tesouro, Lawrence Summers sucumbe aos temores de um crash financeiro, na ausência de prestação de socorro "tempestivo" (boa palavra) por parte do Tesouro e do Banco Central às gigantes das hipotecas. Nem por isso. Summers deixa de condenar a leniência das autoridades com os administradores e acionistas. Os maganos correm o risco de continuar recebendo bônus e dividendos como reconhecimento por sua incompetência.
Neste cenário, Summers recomenda que o governo passe a administrar as duas agência falidas, por muitos anos, como se fossem empresas públicas. Assim elas estariam em condições de prover crédito e liquidez para os mercados hipotecários sem deperdiçar o dinheiro dos contribuintes com os espertalhões. Na visão do professor de Harvard, passada a crise, as empresas seriam divididas entre suas funções governamentais e privadas. As funções privadas seriam vendidas "aos pedaços" e as receitas constituiriam o funding para os financiamentos imobiliários aos devedores de baixa renda.
Em debate promovido pela revista Interesse Nacional, defendi, mais uma vez, a tese que atormenta os liberais. Não tenho a pretensão de incomodar o sono dos amigos que vivem no mundo da lua. Mas insisto: as disputas ideológicas do tipo intervencionismo x não-intervencionismo padecem do vício das oposições excludentes, aquelas que entorpecem a compreensão da dinâmica do capitalismo, do seu movimento contraditório, eivado de crises e de suas recuperações.
Estado e Mercado não são perspectivas incompatíveis que se chocam e se excluem. No capitalismo, o "econômico" supõe a unidade indissociável entre a perspectiva do mercado e o seu desmascaramento pelo Estado coordenador. A "outra" perspectiva, a do público, desvela os mistérios do ponto cego, o que não é percebido a partir da primeira a visão, a dos negócios privados. Essa intersecção de perspectivas esteve sempre presente nas diferentes configurações históricas do capitalismo, desde o mercantilismo até a sua etapa atual."
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