Li no blog “Vi o mundo”, do jornalista Luiz Carlos Azenha:
De Delfim Netto, no Valor Econômico: “Finalmente, uma verdade. A despeito de tudo, inclusive do nosso nobre esforço, a Bolívia continua sendo apenas a mesma Bolívia...”
Fico surpreso com a admissão do colunista de que tudo o que precedeu a frase final de sua coluna nesta terça-feira 16 de setembro era mentira.
Por outro lado, qual é o "nobre esforço" a que se refere Delfim? Seria "nobre esforço" ter acesso ao gás natural boliviano a preços módicos?
A frase do economista encerra tudo o que há de errado com a postura de muitos brasileiros em relação à Bolívia.
Para início de conversa, a Bolívia não é a mesma. Quem não consegue enxergar que o país passa por uma grande transformação ou é cego ou é míope. Delfim Netto se encaixa nesta última categoria.
O efeito didático da frase, se há algum, é de revelar a ignorância e a presunção dos brasileiros em relação a um vizinho importantíssimo, um país com o qual o Brasil tem uma fronteira de 3.400 quilômetros.
É só olhar o mapa para ter a dimensão exata da importância da Bolívia, no coração da América do Sul.
Você pode até argumentar que, com apenas 10 milhões de habitantes, a Bolívia é um mercado consumidor desprezível.
Se é assim tão desprezível, o que leva os Estados Unidos a investirem tanto dinheiro no país através da United States Agency for International Development (USAID), além de deslocarem para La Paz um diplomata de primeiro time?
A resposta é óbvia: os recursos naturais.
O gás natural é a matriz energética do momento e do futuro: limpo e relativamente barato.
Gonzalo Sánchez de Lozada, o Goni, o presidente boliviano que antecedeu Morales, caiu como resultado da chamada "guerra do gás" e hoje vive exilado em Chevy Chase, Maryland. O filme Our Brand is Crisis é imperdível para quem quer entender a tentativa de captura do poder que visava desenvolver um esquema para exportar gás para os Estados Unidos através do Chile.
É óbvio que não interessa à América do Sul que esse gás saia daqui para alimentar a indústria dos Estados Unidos.
Nessa história ninguém é bonzinho. O Chile quer gás boliviano para as mineradoras do norte do país. Brasil e Argentina também disputam essa fonte de energia.
Portanto, este deveria ser um dos objetivos estratégicos do Brasil: o de se manter como maior comprador do gás boliviano.
Para que o fornecimento não seja interrompido, prejudicando especialmente a indústria paulista, é essencial que haja estabilidade na Bolívia.
E estabilidade de longo prazo só vai haver quando as diferenças regionais na Bolívia forem reduzidas, o que implica em um governo que não atenda apenas aos interesses da elite econômica de Santa Cruz e adjacências, mas dê conta de reduzir a miséria da maioria indígena.
Imaginem por um momento o impacto que uma Bolívia fisicamente dividida teria na América do Sul. O que seria dos miseráveis do altiplano? Teríamos um Haiti plantado no coração da América do Sul? E Santa Cruz, manteria suas ligações históricas com o Brasil ou tentaria exportar gás e petróleo para além da vizinhança?
Um segundo ponto importante diz respeito à questão da democracia.
É curiosa a concordância da revista Veja com o jornal americano Washington Post e o espanhol El País (de propriedade do grupo Prisa, que controla o jornal boliviano La Razón e a rede de televisão boliviana ATB): os três argumentam que Evo Morales é a causa dos problemas, não a solução.
Pretendem desconhecer que o presidente boliviano foi referendado recentemente com 67% dos votos.
Dizem, por vias tortas, o seguinte: democracia, sim, desde que seja de acordo com nossos interesses políticos e econômicos.
Por isso é importante que todos os países da América Latina reafirmem: a vontade popular, expressa nas urnas, deve ser respeitada. Isso vale para a Colômbia, Honduras, Brasil, México, Venezuela e Bolívia.
Nunca se sabe o dia de amanhã. Se você diz que eleição na Bolívia não conta está abrindo um precedente para que se diga, amanhã, que eleição no Brasil não conta.
A autonomia regional é uma reivindicação legítima em várias partes do mundo.
Curiosamente, no entanto, ela ganhou força quase ao mesmo tempo na Bolívia, na Venezuela e no Equador.
São os três governos da América Latina que estão sob pressão diplomática de Washington.
Quando Gonzalo Sánchez de Lozada era presidente da Bolívia não se via o Washington Post, a Veja e o El País pregando autonomia regional.
Existe uma grande diferença entre negociar maior autonomia e provocar atos de sabotagem contra o governo nacional, além de aterrorizar a população civil com assassinatos, bombardeios, tiros e espancamentos - que é o que se viu na Bolívia nos últimos dias.
O que os governadores bolivianos fizeram, com endosso tácito dos Estados Unidos, foi tentar inviabilizar o governo nacional, recorrendo para isso a tropas de choque como a União Juvenil Cruzenha, um grupo racista de Santa Cruz.
Imaginem se os gaúchos provocassem um apagão nacional em defesa da autonomia. Como é que isso seria definido? Terrorismo?
Na Bolívia os gasodutos que representam a artéria da vida econômica nacional foram atacados. Não foi "terrorismo"?
Não se deixem enganar: até a displicência em relação à Bolívia acaba cumprindo um papel político.
PS: Não estranhem se a mídia brasileira colocar os interesses dos Estados Unidos acima dos interesses do Brasil. A dificuldade que ela tem para identificar os interesses brasileiros é impressionante...
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