O site do jornal inglês International Herald Tribune, em texto de David Owen, publicou (li no UOL):
“A atual crise em relação à Ossétia do Sul praticamente não tem paralelos com a Guerra Fria, à qual ele antecedeu.
Para entender a natureza dessa crise é melhor focar os nossos binóculos nos últimos dez anos - não para buscar vilões, mas para encaixar como peças de um quebra-cabeças uma série de decisões interligadas. A maioria delas eram compreensíveis na época, mas, cumulativamente, criaram um golfo perigoso de incompreensão entre Washington e Moscou.
Da invasão do Kosovo em 1999 à invasão da Geórgia em 2008, uma série de mal-entendidos e a recusa de se respeitar suficientemente os interesses nacionais mútuos provocaram uma divisão política, alimentada por uma apresentação polarizada dos fatos na mídia de cada um dos países.
Após a queda do Muro de Berlim, houve praticamente unanimidade em Moscou e em Washington em relação à necessidade de fazer tudo o que fosse possível para evitar mudar as fronteiras históricas nacionais da Europa.
Embora a Rússia não tenha gostado da decisão do governo Clinton de incluir alguns dos recentes Estados independentes na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aquela política funcionou em parte porque o Ocidente respeitou as sensibilidades da Rússia em relação ao ingresso da Ucrânia e da Geórgia na organização militar ocidental.
A Rússia também cooperou bastante com a Otan no desmantelamento da ex-Iugoslávia. Foi apenas em 1998, quando a situação do Kosovo deteriorou-se, que uma diferença real quanto aos Bálcãs começou a desenvolver-se entre a Rússia e a Otan.
De certa forma, isso foi inevitável, já que Slobodan Milosevic não tinha intenção de restaurar a autonomia que retirou do Kosovo em 1989. Enquanto os norte-americanos endureciam, a Rússia podia enxergar que a Otan provavelmente interviria e o Kosovo iria se separar da Sérvia, de forma que Moscou distanciou-se das politicas ocidentais.
Apesar dessa história de cooperação e respeito mútuos, o presidente George W. Bush e o vice-presidente Dick Cheney optaram por oferecer à Geórgia o ingresso na Otan, sem levarem em conta a realidade prática de que a organização seria obrigada a correr em defesa da Geórgia segundo as regras da Otan.
Sempre se soube que o presidente georgiano Mikheil Saakashvili decidiria - conforme fez - "restaurar a ordem constitucional" na província separatista da Ossétia do Sul. Caso a Geórgia fosse um membro da Otan em 7 de agosto, quando os georgianos lançaram mísseis e tanques contra a Ossétia do Sul, a Otan teria sofrido um golpe devastador caso não respondesse ao contra-ataque da Rússia.
O presidente Nicolas Sarkozy teve razão ao não comprometer nem a Otan nem a União Européia com a restauração da integridade territorial da Geórgia como parte da iniciativa européia para o cessar-fogo.
Nas democracias ocidentais, os nossos políticos e a imprensa só falam agora da invasão russa, e ignoram o ataque militar georgiano. Comparar o incidente da Ossétia do Sul com a ação militar soviética na Hungria em 1956 ou na Tchecoslováquia em 1968 não se constitui nem em história séria nem em política realista.
Há motivos importantes pelos quais o ingresso na Otan não pode ser concedido a qualquer país que o solicite. Uma democracia candidata a entrar para a organização precisa primeiro ser testada, e a sua política externa tem que ser estável e alinhada com aquelas dos outros Estados membros. E, sempre que possível, as fronteiras nacionais de um novo membro devem ser aceitas pelos vizinhos.
Durante alguns anos ficou claro que a rota prudente seria colocar o ingresso da Geórgia e da Ucrânia na União Européia à frente da entrada desses dois países para a Otan. A primeira lição aprendida com a guerra na Geórgia foi a necessidade de apressar o processo de ingresso dos dois países na União Européia, e não conceder-lhes a filiação à Otan enquanto persistirem disputas de fronteira.
A outra lição importante foi que a entrada da Turquia na União Européia deve ser uma prioridade. A Turquia é o único país capaz de ajudar a União Européia a diversificar seriamente os seus suprimentos de gás e petróleo. A Turquia deve contar com um gasoduto e um oleoduto em toda a sua extensão para suprir a Europa - a partir não apenas do Mar Cáspio e dos países que o rodeiam, mas, um dia, também a partir do Iraque e do Irã.
A Turquia precisa ser um parceiro nesse empreendimento energético da União Européia, e ela ficará bem mais compromissada com o projeto quando perceber que as objeções ao seu ingresso na União Européia por parte da França e, em menor grau, da Alemanha, foram arquivadas e que existe um cronograma confiável para a sua entrada na organização.
Esta não é uma proposta anti-russa. A diversidade energética é um interesse nacional da Rússia e das nações européias. Diversidade de fregueses para a Rússia; diversidade de fornecedores para a Europa.
A Rússia está construindo um oleoduto no extremo oriente, com financiamentos bastante substanciais do Japão. Cedo ou tarde será construído um gasoduto. A Rússia também comprometeu-se a construir um oleoduto até à China e está se preparando para enviar gás natural liqüefeito.
Moscou, Washington e Bruxelas têm muita diplomacia dura pela frente em relação à Ossétia do Sul e à Abkhazia, e esse problema provavelmente terá que esperar por um novo presidente norte-americano. Essa discussão terá que basear-se na realpolitik - Washington e Moscou precisarão deixar de recriminarem-se e aceitar que circunstâncias excepcionais, embora diferentes, na Sérvia e na Geórgia levaram tanto os Estados Unidos quanto a Rússia a invadir outros países sem a autorização da Organização das Nações Unidas (ONU).
Um acordo relativo a essas questões não será algo fácil, mas interessa à comunidade internacional que chegue-se a um denominador comum em 2009.
(David Owen, reitor da Universidade de Liverpool, foi secretário do Exterior britânico de 1977 a 1979 e negociador de paz da União Européia na ex-Iugoslávia de 1992 a 1995. Este artigo é uma adaptação de um discurso feito por Lord Owen no M100 Sanssouci Colloquium, em Potsdam, na Alemanha).”
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