O jornal espanhol “El País”, em texto de Miguel Ángel Bastenier , traduzido por Luiz Roberto Mendes Gonçalves, ontem publicou (li no UOL):
“É cômodo dizer que a Unasul pariu um rato na cúpula extraordinária de Santiago sobre o conflito da Bolívia, porque produziu só um documento plenamente previsível, que pede a instalação de uma mesa de diálogo entre as partes, autonomistas da Meia-Lua e centralistas indígenas de La Paz, sem trazer outras soluções visíveis; também não é difícil afirmar que o verdadeiro convocador foi o "lorde protetor" da Bolívia, o presidente venezuelano, Hugo Chávez, e não o chefe de Estado brasileiro, Lula, embora tenha sido a sua diplomacia que teve a voz principal na capital chilena. Mas as duas avaliações são inexatas.
É verdade que a grave disputa entre o altiplano do oeste e as terras baixas do leste, que já pode ter causado mais de cem mortes, está tudo menos solucionada, mas hoje contam tanto os símbolos quanto as irregularidades do terreno. E Lula já é o grande fiscal da crise, o que atribui méritos e aponta censuras, e se o apoio à ordem legal e legítima do presidente Morales foi inequívoco, a recomendação de que se negocie para chegar a um acordo significa que também se leva em conta os rebeldes de Santa Cruz e províncias vizinhas. Mas, de maneira muito significativa, esse magistério se exerce sobre uma ausência, não por isso menos clamorosa. Os EUA têm algo a dizer?
Luiz Inácio da Silva se permitiu o luxo de esperar até que a reunião do Unasul se concebesse em seus próprios termos. O presidente boliviano, Evo Morales, repetia que a crise era intraboliviana e que não havia necessidade de mediadores externos, e Lula não queria mover um dedo se não fosse como participante. E quando a convocação se produz, embora a cobertura da reunião internacional baste para salvar a cara de La Paz, ninguém duvida de que é para que o Brasil, superpotência emergente na América Latina e principal cliente do gás boliviano, ordene o procedimento. Lula foi chamado; não teve de pedir a palavra pela ordem.
O confronto entre partidários civis de ambos os lados, nos quais tem uma especial responsabilidade o autonomismo que iniciou os bloqueios de estradas para desabastecer La Paz, tinha uma lógica própria que poderia criar, como ocorreu, a janela de oportunidade para o movimento tático de Brasília. A rebelião provinciana e o poder constituído pareciam estar aumentando a aposta à espera de que o outro "pestanejasse" primeiro, e, por terrível que tenha sido a perda de vidas humanas, é o que conduz ao diálogo, preliminarmente já iniciado entre Mario Cosso, governador da província de Tarija, e o vice-presidente - descendente de europeus, mas com o indigenismo dos convertidos - Álvaro García Linera.
Ninguém diz que essa negociação será fácil. Mas pela primeira vez as cartas estão nitidamente alinhadas sobre a mesa. E o que é preciso discutir é o encaixe e a distribuição. O encaixe seria entre uma Constituição indigenista da qual Morales aguarda uma profunda des-hispanização, mas que não provoca emulsões de entusiasmo nem em seus teóricos aliados, e a profunda autonomia reclamada pelas cinco províncias orientais, Beni, Pando, Tarija, Chuquisaca e Santa Cruz, nas quais o elemento indígena é tão majoritário quanto no altiplano, embora de raiz cultural e antropológica muito diferente.
Morales, que qualifica seu projeto de autonomista diante do violento ceticismo dos regionalistas, agora tem a oportunidade de demonstrar que não fala em vão. E a distribuição afeta a renda dos hidrocarbonetos, que o autonomismo quer virtualmente todo para si e o poder central deseja gerenciar. Se há, ou quando houver, um pré-acordo sobre limites e objetivos, o presidente Morales e os líderes, sobretudo de Santa Cruz, o governador Rubén Costas e o líder social da rebelião, o industrial do óleo Branko Marinkovich, deverão se fazer presentes nas negociações. Mas qualquer que seja o vozerio com que se despachem uns e outros, a Meia-Lua carece de meios para derrotar Morales, apesar da insistência com que La Paz e Caracas o proclamaram estes dias, e muito menos quer uma independência contra a qual sabe que o mundo inteiro milita.
Aplicando os termos daquele sábio do futebol - logicamente, argentino - César Luis Menotti, o Brasil, dono do meio de campo, "constrói" mas não pode "definir" por si só. Por acaso seus críticos queriam que enviasse a divisão aerotransportada?
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário