O UOL postou ontem a seguinte reportagem de Edward Skidelsky no site do Prospect, sobre as mudanças de prioridade das virtudes humanas. (Prospect é uma revista mensal inglesa).
Edward Skidelsky é professor de filosofia na Universidade de Exeter. O seu livro "Ernst Cassirer: The Last Philosopher of Culture" ("Ernst Cassirer: O Último Filósofo da Cultura") será lançado em breve pela editora Princeton.
“As tradições éticas do mundo pré-moderno concentravam-se nas qualidades do caráter responsáveis por uma vida boa e feliz - as virtudes.
A natureza exata dessas virtudes era uma questão aberta à discussão. Os antigos gregos identificaram a coragem, a temperança, a prudência e a justiça. Os cristãos acrescentaram a fé, a esperança e a caridade à lista, e rebaixaram o orgulho (que para os pagãos era uma virtude) a um vício. Outras virtudes foram exaltadas em caráter mais temporário. A Renascença enaltecia a intrepidez, os puritanos a parcimônia e a labuta. O Oriente tem as suas próprias tradições. Confúcio enfatizava a devoção filial, Lao-Tsé a espontaneidade. Mas todos concordavam que as virtudes - algumas virtudes - devem ser o cerne da vida moral.
As virtudes, para essas tradições pré-modernas, são as excelências naturais da espécie. Elas são para nós aquilo que a velocidade é para o leopardo ou a força para o leão; elas não são uma questão de escolha ou auto-expressão.
Isso não quer dizer que elas desenvolvam-se sem auxílio. As virtudes exigem anos de treinamento - não é possível possuir a virtude da gratidão, a menos que se aprenda outras virtudes básicas. E este treinamento não termina após a infância.
Durante toda a vida, as virtudes podem ser encorajadas, ou mesmo exigidas, por meio de arranjos legais criados para minimizar a tentação.
A lei é parte da moralidade, e não um conjunto de leis de trânsito criadas para evitar colisões. O Estado é uma associação de pessoas reunidas para liderarem a vida correta, e não um vigia noturno ou um patrulheiro de fronteira.
Estas várias tradições pré-modernas, orientais e ocidentais, representam um estilo de pensamento sobre a ética que tornou-se quase ininteligível para nós. Passamos a pensar na moralidade como sendo um sistema de direitos e obrigações, e no problema filosófico como a questão de definir estes direitos e obrigações. Mas onde não existe direito ou obrigação, a moralidade silencia.
Um homem que, tendo cumprido as suas obrigações para com os outros, senta-se com uma caixa de latas de cerveja para assistir a pornografia o dia inteiro na televisão pode ser tolo, repugnante, vulgar e assim por diante, mas, rigorosamente falando, ele não é imoral. Isto porque, conforme se diz, ele está "dentro dos seus direitos".
Na verdade, dentre as quatro virtudes gregas clássicas mencionadas anteriormente, apenas a justiça é, para a visão moderna, uma qualidade indiscutivelmente moral, já que apenas a justiça diz repeito essencialmente a direitos e obrigações. Assim, a tendência caracteristicamente moderna é
reduzir a totalidade da moralidade à justiça, relegando o resto a uma questão de sensibilidade e gosto.
Mas, abaixo da superfície, as tradições pré-modernas continuam vivas. Só podemos sentir admiração pelos episódios de coragem e de contenção de desejos e interesses próprios. E só podemos sentir repugnância pela avareza e pela indolência. E tais reações não são meramente esnobes ou estéticas; elas estão fortemente vinculadas às reações mais estritamente morais de respeito e indignação. Mas a nossa linguagem pública nos proíbe de reconhecer essa conexão, obrigando-nos a disfarçar aquilo que está na raiz das respostas éticas, como se fosse algo totalmente diferente.
Por exemplo, a hostilidade ao fumo - o que no fundo é uma aversão moral à intemperança - tem que ser disfarçada de preocupação com a saúde pública ou com os direitos dos não fumantes inocentes que são obrigados a inalar a fumaça. É por isso que se enfatiza tanto o conceito (espúrio) de fumante passivo.
A ética das virtudes injetou uma vida nova na filosofia da moral. Ela salvou esta filosofia da aridez e colocou-a em contato com a teologia, a literatura e a história. Mas a influência da ética das virtudes no chamado "mundo real" tem sido nula.
Nesta área, se houve movimento, foi na direção oposta, com diretrizes e metas engolindo aquilo que no passado era o reino da decência e do senso comum.
A ética das virtudes transformou-se, assim, em mais um jogo acadêmico, sutil e irrelevante. Sem disposição para apresentar energicamente as suas onclusões até um ponto em que estas conflitem com a ordem política vigente, ela retirou-se para o seu próprio jardinzinho.
Uma figura destaca-se como exceção. Alasdair MacIntyre sempre insistiu que a linguagem das virtudes só faz sentido no contexto de um estilo de vida comunitário, e, portanto, em estado de tensão com o liberalismo - um sistema político que subverte todos os estilos de vida comunitários. O diagnóstico que MacIntyre fez do problema continua sendo essencialmente o mesmo após 50 anos: o que mudou foi a sua solução.
O seu trabalho inicial, escrito sob a influência do marxismo, procura a política como canal de ação. Mas, no seu clássico de 1981, "After Virtue" ("Após a Virtude"), ele aceita a tese de Max Weber de que todas as revoluções acabam prisioneiras da burocracia. A nossa única esperança reside em uma retirada do cenário político, em um novo monasticismo. "Neste estágio, o que importa", conclui MacIntyre com uma veia profética, "é a construção de formas locais de comunidade dentro das quais a civilidade e a vida intelectual e moral possam ser sustentadas no decorrer das idades das trevas que já caem sobre nós... Não estamos esperando por Godot, mas por um outro - sem dúvida bem diferente - São Benedito".
MacIntyre não entra em detalhes. Temos que adivinhar que forma um novo São Benedito assumiria. Não há dúvida de que ele não seria um cristão ortodoxo.
A velha fé foi elaborada para um mundo de pobreza; ela não fala dos dilemas decorrentes da afluência. Mas uma nova fé que está emergindo poderá falar sobre esses dilemas.
Um pequeno exemplo pode ser encontrado na Bolha de Tinker, uma pequena comunidade residencial localizada em Somerset, na Inglaterra. Lá, um grupo de ambientalistas cuida de uma área de 13 hectares de floresta, pomares e pastagens. A propriedade da terra é coletiva. Não há eletricidade proveniente da rede elétrica e nem combustíveis fósseis. A energia elétrica é produzida por painéis solares e por um motor a vapor movido a lenha. O objetivo da comunidade é "viver suavemente sobre a terra" - a fim de contribuir o mínimo possível para a futura catástrofe ambiental. A Bolha de Tinker faz parte de um universo crescente de comunidades do gênero, todas elas vinculadas por uma disciplina digna do São Benedito histórico.
É fácil zombar do ambientalismo radical. As suas projeções climatológicas são muitas vezes duvidosas e, ainda quando são acuradas, não está claro como um punhado de entusiastas poderia evitar o apocalipse vindouro. Mas fazer isso é perder de vista aquilo que tem importância. O movimento verde pode falar a linguagem da ciência, mas o que realmente o impulsiona é um imperativo ético. Ele é uma tentativa de criar uma sociedade na qual algumas escolhas sejam reconhecidas como melhores do que outras, e em que a natureza seja vista como fator de contenção do desejo incontrolado.
Em suma, é uma religião - uma religião sem Deus. É para tais iniciativas espontâneas dos fiéis, e não para os estalos da maquinaria do Estado, que devemos nos voltar a fim de restaurarmos a vida da linguagem das virtudes.”
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