Por Rodolpho
Motta Lima
“Creio que já era hora de atualizar os termos do juramento de
Hipócrates, proferido pelos médicos nas solenidades de formatura. Tendo
cumprido a sua missão em tempos idos, esse juramento, que pedia o testemunho
dos deuses gregos, pode e deve enfeixar outras “cláusulas”, que não aquelas que
compõem os seus termos tradicionais.
A presidenta Dilma comprou uma briga séria e relevante com a classe
médica do país ao editar a medida provisória que, se aprovada, fará com que, a
partir de 2015, os estudantes que ingressem nos curso de Medicina tenham que
trabalhar, depois dos 6 anos regulamentares do curso, mais dois anos no “Sistema
Único de Saúde” (SUS).
No mesmo conjunto de medidas voltadas para a área da saúde, a presidenta
também pretende a contratação de médicos estrangeiros para cidades desprovidas
de serviços adequados, depois de respeitada, nesse caso, a prioridade para os
profissionais brasileiros.
Quanto mais nos aproximarmos da época das eleições, mais a política e os
políticos, com sua feição maniqueísta, tenderão a analisar, segundo o viés
eleitoral, qualquer proposta que venha do Governo. Isso vale para a oposição e
também para os apoiadores. Qualquer medida sugerida por Dilma – candidata natural à reeleição - terá que
enfrentar, portanto, os reacionários de plantão, os falsos defensores do povo,
as raposas e urubus de sempre. Até 2014, mais do que nunca, haverá confrontos
entre posicionamentos que privilegiam a busca da redução de desigualdades e os que ainda anseiam pela manutenção de privilégios ancestrais.
Sei que muitos não gostam, trincam os dentes e enrugam a testa com a
classificação, mas é esse embate que caracteriza a esquerda e a direita.
No caso dos médicos – que, no
geral, compõem um segmento socialmente privilegiado - é conhecida a sua
tendência ao corporativismo. Essa postura não é exclusiva da categoria e é
claro que há figuras admiráveis na Medicina, profissionais de competência
inquestionável, ética indiscutível e forte comprometimento social. Mas, no caso
presente, não me parecem aceitáveis muitas posturas dos órgãos representativos
da classe, de feição reacionária e egocêntrica, que, às vezes, parecem esquecer
que, mais que os seus interesses particulares, estão em jogo aspectos vinculados
à saúde e à própria vida de vastos segmentos de cidadãos desassistidos pelo
Brasil afora.
O modelo defendido pelo Governo para os futuros formandos de Medicina
tem precedentes, por exemplo, na Inglaterra e na Suécia. E se é válido naqueles
países, de desníveis sociais bem menos significativos, muito mais será no
nosso, cuja população de baixa renda reclama por atenção minimamente digna. Os
dois anos de trabalho junto ao SUS constituirão oportuno reforço ao atendimento
de que se necessita e, mais do que isso, permitirão aos novos médicos contato
direto com os problemas do segmento mais sofrido do povo. Um povo que, aliás,
com seu trabalho, também ajuda o Governo a patrocinar os nossos custosos cursos
de medicina, de que grande número de estudantes desfruta gratuitamente, embora
muitos pudessem até dispensar tal gratuidade... Penso que essa será uma forma
de retribuírem ao país e aos seus cidadãos os esforços feitos para que possam
se tornar médicos.
Por outro lado, é também dever do Governo tentar equilibrar essa
espantosa situação em que, só no município do Rio de Janeiro, o número de
médicos com consultórios em uma dezena de ruas da zona Sul é superior ao número
de localidades que, em nossa terra, não possuem um único médico. O Brasil
possui 700 cidades que não têm um médico sequer residindo no município. Como
não pode, infelizmente, obrigar os profissionais a se deslocarem de suas zonas
de conforto, Dilma acena com um salário razoável e dá prioridade aos
brasileiros para ocupar essas lacunas. E, sabiamente, oferece a profissionais
estrangeiros os lugares não preenchidos.
Argumentam as entidades médicas com a ausência de estrutura nesses
locais que permitam ao médico fazer um bom trabalho. E, com relação aos
estrangeiros, questionam a sua capacidade e querem submetê-los ao “Revalida”,
um teste no qual, segundo dizem alguns, muitos médicos brasileiros não
passariam...
Tudo isso vale ser discutido, mas sem hipocrisia. Se uma comunidade não
tem sequer um médico, é melhor que tenha pelo menos um... E que, com ele,
venham também os suportes, que, aliás, o Governo admite suprir com o programa
proposto. O que não se pode é conviver com a precariedade atual, questionada
nas ruas do país. Outra alegação hipócrita tem a ver com a capacidade dos
médicos estrangeiros, particularmente os cubanos, na alça de mira da turma da
direita. Enquanto no Brasil a relação entre médicos e 1000 habitantes é de
1,83, em Cuba ela chega a 6,72. Com todas as dificuldades estruturais, a
medicina cubana dá conta do recado na ilha e é, realmente, referência
planetária em algumas especialidades. Entre as razões que justificam o sucesso
cubano nesse aspecto está, seguramente, a filosofia que privilegia a medicina
preventiva, que faz com que as famílias sejam permanentemente visitadas e
assistidas por profissionais integrados àquela comunidade. Um jeito humanizado
de reduzir custos com a saúde.
Dilma e seu governo têm falhas, é certo. Para mim, as duas maiores são a
falta de um enquadramento – com denúncia
direta ao povo - dos maus políticos que a chantageiam na chamada “base
governamental” e a inaceitável “cortesia” com os seus desonestos desafetos da
mídia. Mas, quando se trata do combate às desigualdades, penso que sua
determinação é admirável. No caso das sugestões para a saúde, é de se lamentar
que alguns hipócritas não queiram aceitar a releitura de Hipócrates, imposição
dos tempos presentes.”
FONTE: escrito
por Rodolpho Motta Lima, advogado formado pela UFRJ-RJ (antiga Universidade de
Brasil) e professor de Língua Portuguesa do Rio de Janeiro, formado pela UERJ ,
com atividade em diversas instituições do Rio de Janeiro. Com militância
política nos anos da ditadura, particularmente no movimento estudantil.
Funcionário aposentado do Banco do Brasil. Artigo publicado no site “Direto da
Redação (http://www.diretodaredacao.com/noticia/hipocrates-e-os-hipocritas).
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