O ministro do Exterior do Irã, Mohammad Javad Zarif (à esq.), cumprimenta o secretário de Estado dos EUA, John Kerry, durante as negociações em Genebra.
Foto: Fabrice Coffrini / AFP
Por Roberto Amaral*, na revista “Carta Capital”
“O chamado acordo Irã-“Ocidente”, ao qual o complexo industrial-militar e o capital financeiro se opunham, e se opõem hoje mais do que nunca o sionismo, agora aliado das monarquias sunitas do Golfo Pérsico, reacionárias e autocráticas, significa, fundamentalmente, nesta etapa, a derrota da indústria da guerra.
Derrota essa que começou a se desenhar na histórica e inusitada recusa da Câmara dos Comuns britânica a apoiar a intervenção militar na Síria.
Ao mesmo tempo, é a vitória da negociação como instrumento de solução para os conflitos internacionais. Doutrina que, lembremos, posto que dela se esqueceu nossa chamada grande imprensa, é bandeira de nosso país pelo menos desde Rio Branco. É o contraponto ao “big stick” de Theodore Roosevelt e seus seguidores, com suas invasões, suas sabotagens, seus “contras”, sua CIA e sua NSA.
A política que associa autodeterminação dos povos com independência, estabelecida entre nós desde Jânio-Afonso Arinos e Jango-Santiago Dantas, diga-se, estava no fundo da proposta negociada por Lula e Tayyip Kerdogan (presidente da Turquia) e sabotada pela Casa Branca-Secretária Clinton e a ‘entourage’ sionista por motivos simplesmente torpes: porque, ademais de articulada por dois emergentes intrometidos num dos quintais dos EUA, significava, já ali, a vitória da negociação. Ora, a paz, agora alcançada (trabalho com os dados da imprensa internacional), jamais interessou ao “Império”. Sua “diplomacia” é outra.
O acordo [recentemente alcançado], que festejamos, embora ainda ignorando seu texto, é, portanto, uma derrota do belicismo militante de Israel e do reacionarismo saudita (agora associados) que também financia a guerra civil na Síria. E, lembremos sempre, esse acordo derrota a indústria da guerra que remonta ao complexo industrial-militar da grande potência, presente em todo o mundo, fomentando guerras e massacres, um genocídio continuado que engorda suas receitas.
O acordo derrota, ainda nos EUA, o poderosíssimo e riquíssimo lobby sionista (felizmente, Obama, não sendo mais candidato à reeleição, poderá a ele resistir) e o “tea party”, com o qual descobrimos o inimaginável, que é a existência de uma direita à direita da direita republicana, que simplesmente controla o Congresso (nomeadamente a Câmara dos Representantes onde ameaça sabotar o Acordo) da maior potência bélica do planeta.
Isso não é pouco e é muito perigoso. Pois trata-se de país que cedo esqueceu aquela vitória da diplomacia na crise dos mísseis (1962), que pode haver salvado o mundo da hecatombe nuclear, para empenhar-se na guerra do Vietnã. Para os EUA, tradicionalmente, a pior guerra é preferível ao melhor acordo. Veja-se o sangrento exemplo da invasão e fragmentação da Iugoslávia (1998-99).
O fato relevante é que, malgrado tudo isso, venceu o entendimento e o resultado foi a obtenção de um acordo com o Irã. Uma vez mais, porém, negociado à margem da ONU.
O que ele nos diz?
Ainda segundo o noticiário, desta feita me louvo no “Globo”, o Irã deve suspender partes importantes de seu programa nuclear nos próximos seis meses (prazo de teste) e abrir suas instalações para técnicos da “Agência Internacional de Energia Atômica” AIEA, aquela, digamos de passagem, que atestou “a existência de armas atômicas no Iraque...” Em troca, receberá alívio de sanções no valor estimado de sete bilhões de dólares. Findo aquele prazo-teste de seis meses, será assinado um acordo definitivo.
Ao presidente Obama, derrotado no seu intento de invadir o Irã, só restou louvar as negociações: “A diplomacia abriu um caminho em direção a um mundo mais seguro... no qual podemos verificar que o programa nuclear iraniano é pacífico e não pode construir uma arma nuclear”.
Ora, quem nuclearizou o Oriente Médio foram os EUA, repassando tecnologia para Israel, em nome de sua segurança, e, na Ásia, em nome da Guerra Fria, para o Paquistão, que deveria conter a Índia, namorando a então URSS. Mas o fato objetivo é que os EUA, sucessor do finado Império Britânico como fator de desestabilização do Oriente Médio, introduziu o Irã na corrida nuclear. Senão vejamos:
Tudo começa em 1953 e começa, como sempre, com uma intervenção dos EUA nos negócios e na vida dos outros. Nesse ano, associado a militares iranianos, o Império do Norte derruba o premier Mohammad Mossadegh que se atrevera a defender a nacionalização do petróleo (sempre ele!) da Pérsia. Assim, com apoio dos EUA o xá Reza Pahlevi passa a governar, da forma que se sabe, oprimindo seu povo, mas serviçal ao Departamento de Estado. Em 1975, ainda com o país sob a sangrenta ditadura Pahlevi, e certamente por isso mesmo, os EUA iniciam a transferência de tecnologia nuclear. Fora dos cálculos da Casa Branca, porém, o xá é derrubado pela revolução islâmica em 1979, e nasce o regime xiita do Irã. Mesmo com as relações cortadas, os EUA (1985-1986) vendem armas (quais? Não sabemos) ao Irã, numa operação triangular que visava a financiar os ‘contras’, mercenários que se opunham ao governo sandinista da Nicarágua, que os mesmos EUA tentavam derrubar, depois da fracassada invasão de Cuba (patrocinada por Kennedy-1961), depois de derrubarem Jango, Allende, depois de invadirem Granada, depois de uma série de golpes de Estado e intervenções militares, diretas ou não, mediante as quais juncaram de ditaduras o hemisfério sul. São esses os mesmos EUA que armariam o Iraque de Saddam para guerrear contra o Irã, o mesmo Iraque que o primeiro Bush bombardearia em 1991 e o segundo Bush invadiria em 2003, em operação denominada “Iraqi Freedom” – nome que teria algo de jocoso se não fosse profunda, dolorosa e inaceitavelmente trágico.
Mas, por que não discutir a questão nuclear a partir do indesejável ângulo de seu mérito, fazendo a pergunta que não pode calar: Por que o Irã não pode ter seu programa nuclear?
O presidente Obama fala em um ‘mundo mais seguro’. E pode haver mundo seguro sob a assimetria nuclear? Para concordar com os “Cinco+1” (as potências nucleares com assento no Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha, os negociadores do ‘Ocidente’ com o Irã’), e com eles concordamos, que a antiga Pérsia, no meio do Oriente árabe e muçulmano, não deve possuir arma atômica, não seria necessário, por uma simples linearidade lógica, estender o mesmo raciocínio a Israel, o Estado judeu encravado no Oriente árabe? Para concordar com a afirmação (que animou as potências) segundo a qual um Irã nuclear, mesmo após Ahmadinejad, seria uma ameaça a Israel, é necessário concordar com o seu inverso: um Israel nuclearizado, e ele o é, constitui-se numa ameaça ao Irã desarmado.
“O chamado acordo Irã-“Ocidente”, ao qual o complexo industrial-militar e o capital financeiro se opunham, e se opõem hoje mais do que nunca o sionismo, agora aliado das monarquias sunitas do Golfo Pérsico, reacionárias e autocráticas, significa, fundamentalmente, nesta etapa, a derrota da indústria da guerra.
Derrota essa que começou a se desenhar na histórica e inusitada recusa da Câmara dos Comuns britânica a apoiar a intervenção militar na Síria.
Ao mesmo tempo, é a vitória da negociação como instrumento de solução para os conflitos internacionais. Doutrina que, lembremos, posto que dela se esqueceu nossa chamada grande imprensa, é bandeira de nosso país pelo menos desde Rio Branco. É o contraponto ao “big stick” de Theodore Roosevelt e seus seguidores, com suas invasões, suas sabotagens, seus “contras”, sua CIA e sua NSA.
A política que associa autodeterminação dos povos com independência, estabelecida entre nós desde Jânio-Afonso Arinos e Jango-Santiago Dantas, diga-se, estava no fundo da proposta negociada por Lula e Tayyip Kerdogan (presidente da Turquia) e sabotada pela Casa Branca-Secretária Clinton e a ‘entourage’ sionista por motivos simplesmente torpes: porque, ademais de articulada por dois emergentes intrometidos num dos quintais dos EUA, significava, já ali, a vitória da negociação. Ora, a paz, agora alcançada (trabalho com os dados da imprensa internacional), jamais interessou ao “Império”. Sua “diplomacia” é outra.
O acordo [recentemente alcançado], que festejamos, embora ainda ignorando seu texto, é, portanto, uma derrota do belicismo militante de Israel e do reacionarismo saudita (agora associados) que também financia a guerra civil na Síria. E, lembremos sempre, esse acordo derrota a indústria da guerra que remonta ao complexo industrial-militar da grande potência, presente em todo o mundo, fomentando guerras e massacres, um genocídio continuado que engorda suas receitas.
O acordo derrota, ainda nos EUA, o poderosíssimo e riquíssimo lobby sionista (felizmente, Obama, não sendo mais candidato à reeleição, poderá a ele resistir) e o “tea party”, com o qual descobrimos o inimaginável, que é a existência de uma direita à direita da direita republicana, que simplesmente controla o Congresso (nomeadamente a Câmara dos Representantes onde ameaça sabotar o Acordo) da maior potência bélica do planeta.
Isso não é pouco e é muito perigoso. Pois trata-se de país que cedo esqueceu aquela vitória da diplomacia na crise dos mísseis (1962), que pode haver salvado o mundo da hecatombe nuclear, para empenhar-se na guerra do Vietnã. Para os EUA, tradicionalmente, a pior guerra é preferível ao melhor acordo. Veja-se o sangrento exemplo da invasão e fragmentação da Iugoslávia (1998-99).
O fato relevante é que, malgrado tudo isso, venceu o entendimento e o resultado foi a obtenção de um acordo com o Irã. Uma vez mais, porém, negociado à margem da ONU.
O que ele nos diz?
Ainda segundo o noticiário, desta feita me louvo no “Globo”, o Irã deve suspender partes importantes de seu programa nuclear nos próximos seis meses (prazo de teste) e abrir suas instalações para técnicos da “Agência Internacional de Energia Atômica” AIEA, aquela, digamos de passagem, que atestou “a existência de armas atômicas no Iraque...” Em troca, receberá alívio de sanções no valor estimado de sete bilhões de dólares. Findo aquele prazo-teste de seis meses, será assinado um acordo definitivo.
Ao presidente Obama, derrotado no seu intento de invadir o Irã, só restou louvar as negociações: “A diplomacia abriu um caminho em direção a um mundo mais seguro... no qual podemos verificar que o programa nuclear iraniano é pacífico e não pode construir uma arma nuclear”.
Ora, quem nuclearizou o Oriente Médio foram os EUA, repassando tecnologia para Israel, em nome de sua segurança, e, na Ásia, em nome da Guerra Fria, para o Paquistão, que deveria conter a Índia, namorando a então URSS. Mas o fato objetivo é que os EUA, sucessor do finado Império Britânico como fator de desestabilização do Oriente Médio, introduziu o Irã na corrida nuclear. Senão vejamos:
Tudo começa em 1953 e começa, como sempre, com uma intervenção dos EUA nos negócios e na vida dos outros. Nesse ano, associado a militares iranianos, o Império do Norte derruba o premier Mohammad Mossadegh que se atrevera a defender a nacionalização do petróleo (sempre ele!) da Pérsia. Assim, com apoio dos EUA o xá Reza Pahlevi passa a governar, da forma que se sabe, oprimindo seu povo, mas serviçal ao Departamento de Estado. Em 1975, ainda com o país sob a sangrenta ditadura Pahlevi, e certamente por isso mesmo, os EUA iniciam a transferência de tecnologia nuclear. Fora dos cálculos da Casa Branca, porém, o xá é derrubado pela revolução islâmica em 1979, e nasce o regime xiita do Irã. Mesmo com as relações cortadas, os EUA (1985-1986) vendem armas (quais? Não sabemos) ao Irã, numa operação triangular que visava a financiar os ‘contras’, mercenários que se opunham ao governo sandinista da Nicarágua, que os mesmos EUA tentavam derrubar, depois da fracassada invasão de Cuba (patrocinada por Kennedy-1961), depois de derrubarem Jango, Allende, depois de invadirem Granada, depois de uma série de golpes de Estado e intervenções militares, diretas ou não, mediante as quais juncaram de ditaduras o hemisfério sul. São esses os mesmos EUA que armariam o Iraque de Saddam para guerrear contra o Irã, o mesmo Iraque que o primeiro Bush bombardearia em 1991 e o segundo Bush invadiria em 2003, em operação denominada “Iraqi Freedom” – nome que teria algo de jocoso se não fosse profunda, dolorosa e inaceitavelmente trágico.
Mas, por que não discutir a questão nuclear a partir do indesejável ângulo de seu mérito, fazendo a pergunta que não pode calar: Por que o Irã não pode ter seu programa nuclear?
O presidente Obama fala em um ‘mundo mais seguro’. E pode haver mundo seguro sob a assimetria nuclear? Para concordar com os “Cinco+1” (as potências nucleares com assento no Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha, os negociadores do ‘Ocidente’ com o Irã’), e com eles concordamos, que a antiga Pérsia, no meio do Oriente árabe e muçulmano, não deve possuir arma atômica, não seria necessário, por uma simples linearidade lógica, estender o mesmo raciocínio a Israel, o Estado judeu encravado no Oriente árabe? Para concordar com a afirmação (que animou as potências) segundo a qual um Irã nuclear, mesmo após Ahmadinejad, seria uma ameaça a Israel, é necessário concordar com o seu inverso: um Israel nuclearizado, e ele o é, constitui-se numa ameaça ao Irã desarmado.
E por que não pensar que a paridade nuclear seria um caminho para a paz (entre as potências), como foi a paridade EUA x URSS?
Mas pensemos mais longe. Por que as grandes potências, zelosas agora pela paz e pelo fim dos artefatos atômicos, não são elas as primeiras a promover o desmantelamento de seus assustadores estoques de bombas nucleares e milhares de mísseis com ogivas nucleares, de resto, compromisso por elas estabelecido no “Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares” (TNP)? Compromisso que elas não cumprem, mas exigem que os demais países cumpram, sejam eles assinantes ou não do Tratado.
Ao fim e ao cabo, o acordo Irã-“Ocidente” não é o ideal, mas é melhor que nenhum acordo. O que se está impondo ao Irã, unilateralmente, é o que deveria ser imposto a todos os países, a começar pelos cinco grandes do Conselho de Segurança da ONU. Não sendo assim, falar em “paz” é precipitado...”
FONTE: escrito por Roberto Amaral, cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004. Publicado na revista “CartaCapital” e transcrito no portal “Vermelho” (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=231189&id_secao=9). [2ª imagem acrescentada por este blog 'democracia&política'].
Mas pensemos mais longe. Por que as grandes potências, zelosas agora pela paz e pelo fim dos artefatos atômicos, não são elas as primeiras a promover o desmantelamento de seus assustadores estoques de bombas nucleares e milhares de mísseis com ogivas nucleares, de resto, compromisso por elas estabelecido no “Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares” (TNP)? Compromisso que elas não cumprem, mas exigem que os demais países cumpram, sejam eles assinantes ou não do Tratado.
Ao fim e ao cabo, o acordo Irã-“Ocidente” não é o ideal, mas é melhor que nenhum acordo. O que se está impondo ao Irã, unilateralmente, é o que deveria ser imposto a todos os países, a começar pelos cinco grandes do Conselho de Segurança da ONU. Não sendo assim, falar em “paz” é precipitado...”
FONTE: escrito por Roberto Amaral, cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004. Publicado na revista “CartaCapital” e transcrito no portal “Vermelho” (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=231189&id_secao=9). [2ª imagem acrescentada por este blog 'democracia&política'].
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