O site Folha Online publicou (14/09) esclarecedor texto sobre esse assunto muito propalado pela oposição e pelas classes mais privilegiadas.
LEIA INTRODUÇÃO DO LIVRO "A ESCALADA DA CARGA TRIBUTÁRIA"
O Brasil é muito parecido com o Reino Unido em pelo menos um ponto: a carga tributária. Por mais absurdo que possa parecer, a carga tributária do Brasil equipara-se hoje à do Reino Unido, na casa dos 36%.
No livro "A Escalada da Carga Tributária", da Publifolha, o jornalista Gustavo Patu traça o panorama da história recente dos tributos brasileiros e explica esse fenômeno.
Leia abaixo o trecho de abertura do livro
“Os hippies chegavam de todas as partes para viver em comunidade na região conhecida pelo cruzamento das ruas Haight e Ashbury, em São Francisco, na Califórnia; o LSD, alucinógeno cultuado pelo movimento, foi declarado ilegal, para desgosto do psicólogo e guru Timothy Leary, que conduzia experimentos com a droga para expandir mente e espírito; em novo capítulo da Guerra Fria, Estados Unidos e União Soviética competiam para chegar primeiro à Lua; Mao Tsé-Tung, na China, lançava sua Revolução Cultural, que resultaria em assassinatos de intelectuais e queima de livros. Era o ano de 1966, com todas as utopias, atrocidades e maluquices típicas da década, e os Beatles, nas palavras de John Lennon, eram mais populares que Jesus Cristo. Mas, em meio a idealismos, psicodelias, contraculturas, pregações de paz e amor, John, Paul, George e Ringo tinham preocupações bem mais mundanas: estavam pagando impostos demais.
Mais conhecido pelas clássicas "Eleanor Rigby" e "Yellow Submarine", o álbum Revolver, lançado naquele agosto, costuma ser citado hoje entre os melhores e mais importantes não só da banda, mas da música popular internacional. O rock assumia pretensões maiores, ou, como queiram, ficava mais pretensioso. As canções avançavam além dos tradicionais três minutos de duração e ganhavam cordas, sopros e efeitos de estúdio. Letristas não queriam mais tratar apenas de festas e amores adolescentes. George Harrison, que havia andado pela Índia tomando aulas de cítara e filosofia, teve o privilégio inédito de compor e cantar a faixa inaugural do disco, "Taxman", na qual o coletor de impostos do título avança sobre os lucros do músico.
"Deixe-me dizer como vai ser: são 19 para mim e um para você", era a primeira estrofe, que trata de uma impressionante tributação de 95%. "Se 5% parecem pouco demais, fique grato por eu não levar tudo", completava o coletor (No original: "Let me tell you how it will be/There's one for you, nineteen for me/'Cause I'm the taxman/Should five per cent appear too small/Be thankful I don't take it all"). Não era licença poética de um autor ainda imaturo. Naquela época, o Reino Unido taxava mesmo a alíquotas dessa ordem ganhos milionários como os dos Beatles. Os percentuais haviam disparado na Segunda Guerra Mundial, para financiar as batalhas contra os nazistas, e se mantiveram altos para sustentar os programas de seguridade criados nos anos seguintes, quando o modelo do Estado do Bem-Estar Social se firmou na Europa.
Em média, os cidadãos britânicos eram tributados em quase um terço de sua renda - considerados todos os impostos, taxas e contribuições cobrados sobre salários, lucros, terras, automóveis, compras e o que mais os governos lembrassem de tributar. Era nada menos que o triplo da carga do início do século na terra de Adam Smith (1723-90), pai do pensamento liberal, que não concebia para o Estado funções mais nobres que a promoção da segurança jurídica e militar. Agora, os cidadãos recebiam não mais proteção contra inimigos armados, mas contra as inseguranças do regime capitalista gestado na ilha e no continente. Políticas públicas de previdência, assistência, saúde, habitação, educação e amparo ao desemprego se multiplicavam. E também os impostos.
Alemanha, França, Holanda, Áustria, Bélgica, Noruega, Dinamarca e Finlândia tinham cargas tributárias na casa dos 30%. Na Suécia, ainda hoje a meca da socialdemocracia, eram quase 36%. No resto do mundo, os governos custavam menos - com exceção, claro, dos países comunistas. Na Índia, referência espiritual de Harrison, bastava um décimo da renda nacional para sustentar todos os serviços públicos. Na Austrália, um quinto. Mesmo na maior potência ocidental, em guerra fria com a URSS e guerra quente no Vietnã, os tributos não consumiam mais de um quarto dos salários e lucros americanos. Livre das despesas bélicas, o Estado japonês tomava apenas 18% da economia do país, que vivia uma fase de prosperidade batizada de "milagre".
No Brasil, que anos depois copiaria a expressão, a ditadura militar impunha a reforma de um anacrônico sistema de impostos, taxas e contribuições e, àquela altura, já havia conseguido elevar a arrecadação de União, Estados e municípios de 16% para pouco mais de 20% do Produto Interno Bruto. O objetivo, porém, não era proporcionar aos brasileiros os confortos do Estado protetor e provedor; tratava-se de conseguir dinheiro para subsidiar empresas e construir estradas, pontes e hidrelétricas destinadas a levar a economia nacional às condições exigidas pelo mundo desenvolvido.
Somente duas décadas depois, em 1988, as sobretaxas que afligiam os Beatles foram definitivamente extintas e substituídas por uma alíquota máxima de 40% do Imposto de Renda. Os hippies davam lugar aos yuppies, e o Estado do Bem-Estar Social perdia popularidade para um revigorado liberalismo, ou neoliberalismo. O Reino Unido já havia cedido para a Alemanha o posto de segunda economia do mundo, e ambas haviam sido ultrapassadas pelo Japão, enquanto os eua mantinham a liderança folgada. No diagnóstico vitorioso da primeira-ministra Margaret Thatcher, a decadência britânica e européia era explicada por gastos sociais que encorajavam a acomodação coletiva e tributos que puniam a iniciativa individual. "Você não está trabalhando para ninguém além de mim", como dizia o coletor de impostos da música ("And you're working for no one but me", verso final).
Se o Estado tira dos ricos para dar aos pobres, também pode ser dito, por outro ponto de vista, que se transfere renda dos mais bem-sucedidos para os menos produtivos. O sonho de uma existência segura da infância à velhice cobrava seu preço, em produtos mais caros, menos investimentos, menos empregos. Velhas utopias eram sepultadas enquanto se lembrava que, desde sempre, são o egoísmo, a ganância e a avareza que movem a economia - e produzem os impostos que sustentam os governos e os programas sociais. Para não matar a galinha dos ovos de ouro, a escalada da carga tributária no país, que então chegava aos 36% do PIB, foi sustada.
A moda liberal ainda não havia chegado ao Brasil, onde uma nova Constituição restaurava a democracia e pretendia, como se repetia a todo momento, "resgatar a dívida social" do país. O Estado brasileiro, às voltas com uma crise de inflação e dívida externa que parecia interminável, recebia missões ambiciosas nas áreas de previdência, saúde, educação e assistência social. O novo pensamento que ascendia ao poder acreditava que uma distribuição mais justa do dinheiro público poderia reduzir ou eliminar a elevadíssima desigualdade social, pela qual se culpavam os anos de crescimento econômico acelerado do "milagre brasileiro" festejado pelos militares. A carga tributária, desde o início da década anterior, oscilava em torno de um quarto da economia, e não se afastaria muito desse patamar pelos dez anos seguintes. Não era pouco. Superava, por larga margem, o que arrecadavam os primos latino-americanos México, Argentina, Chile e Uruguai, para não falar dos mais pobres da família subdesenvolvida. Batia fácil a Coréia do Sul, que já caminhava para ser uma potência econômica, e praticamente empatava com os Estados Unidos.
O tal neoliberalismo, que também chegou ao Brasil na década de 90, pode reivindicar sua cota de vitórias - no mundo das idéias e, dependendo do gosto do freguês, na vida prática. A URSS acabou, o comunismo desapareceu do Leste Europeu e partidos de orientação socialista ou social-democrata tiveram de rever suas plataformas; a tese de que o governo poderia manter o pleno emprego com gastos públicos e emissão de moeda caiu em descrédito; os orçamentos ficaram mais equilibrados, e a inflação foi derrubada em todo o mundo. Mas seus adversários puderam rir silenciosamente por último enquanto temiam em voz alta a era do Estado mínimo: o Estado não encolheu.
França, Itália, Áustria, Bélgica, Noruega, Islândia e Finlândia hoje arrecadam mais de 40% da renda de seus cidadãos e empresas para manter seus governos. Na Suécia e na Dinamarca são mais de 50%. Alemanha, Reino Unido, Austrália e Holanda contam com Estados maiores que os da década de 60 e, com exceção da última, pelo menos do mesmo tamanho medido nos anos 80. Nos EUA e no Japão, a carga se mantém um pouco acima de um quarto dos maiores PIBs do mundo. Tampouco houve reduções entre os pobres e remediados, até onde as estatísticas alcançam.
Não é difícil entender: nenhuma sociedade abre mão pacificamente de direitos e serviços prestados pelo Estado, sejam programas de seguridade, sejam ações armadas contra ameaças terroristas; ideologias à parte, governantes são pragmáticos e pensam na receita necessária para sua administração e seu futuro político. Se o corte de impostos pode - não há garantia - trazer crescimento econômico e benefícios gerais, os prejudicados pelos cortes de gastos têm nome, sobrenome, endereço e título de eleitor. Onde chegou mais longe, a onda neoliberal só conseguiu interromper a expansão do Estado. Na maior parte do mundo, a expansão apenas se tornou mais lenta.
O Brasil foi mais original. Em menos de dez anos e em plena hegemonia do pensamento liberal, o Estado cresceu a uma velocidade poucas vezes testemunhada entre países capitalistas e democráticos em tempos de paz. Deixados para trás os tempos de hiperinflação e dívidas externas impagáveis, mas sem que o país pudesse se aproximar da qualidade dos serviços públicos e dos níveis de renda da Europa Ocidental, a carga tributária deixou o patamar de 25% da renda nacional, no qual havia se mantido por mais de duas décadas, e se aproxima da marca de 36%. A mesma do Reino Unido”.
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