segunda-feira, 7 de abril de 2014

A INDISPENSÁVEL AUTOCRÍTICA DA IMPRENSA E DAS FORÇAS ARMADAS




A República exige a autocrítica da imprensa e das Forças Armadas

"As circunstâncias externas muitas vezes ensejam golpes de Estado, como certifica o legado da Guerra Fria, recentemente reaquecida com o putsh conservador que instalou na Ucrânia um governo protofascista, sob os auspícios dos EUA e da União Europeia.

Por Roberto Amaral*, na revista "Carta Capital"

Na verdade, esse ‘golpe’ foi simplesmente uma manobra estratégico-militar de Obama-Merkel contra o sonho de reunificação, sob a bandeira da Federação Russa, dos territórios perdidos com o desmantelamento da URSS.

A projeção da geoestratégia das potências centrais sobre a vida dos países periféricos é fato objetivo, mas não encerra a verdade toda, porque há, também, processos autônomos, ou, pelo menos, primariamente autônomos.

A experiência brasileira de rupturas constitucionais e agressões à democracia representativa observa peculiaridades porquanto inicialmente gestada em nossas entranhas pela associação da caserna reacionária com a direita civil que, no Brasil e no mundo, jamais teve compromissos com a democracia, as liberdades e a via institucional. Essa existe tão-só para ser fraturada, e a democracia é invocada tão-só quando é preciso destruí-la. Assim, "em nome da democracia brasileira" -- supostamente ameaçada pela ‘república sindicalista’ de Jango – as liberdades foram cassadas; em nome da "defesa da Constituição" -- pretensamente ameaçada pelas ‘reformas de base’-- a legalidade foi destroçada e instalou-se uma ditadura, por definição sangrenta. O divisor de águas é a sede dos interesses da classe dominante, eternamente presa à casa-grande, e eternamente temerosa dos rumores que partem da senzala. A emergência das massas, em qualquer nível, seja a organicidade, seja a ascensão social ou cultural, é, para as ‘elites’ alienadas, uma dessas ‘ameaças’ que precisam ser contidas.

O mandarinato militar que se seguiu ao golpe de 1964 não tem história própria, pois é produto de um processo social, mas suas características foram seguidamente alteradas no curso de seus longos 21 anos, como o atestam o discurso de posse do primeiro general presidente, e o ato institucional que se pensou único. Ele é a decantação de práticas e culturas reacionárias de nossa oficialidade e de nosso empresariado e da ideologia do anticomunismo, importada da Guerra Fria. Na verdade, a intentona de 1964 este seu nome — começou a ser maquinada já em 1961, como declara o Gen. Denis em suas memórias (Ciclo revolucionário brasileiro. Editora Nova Fronteira, 1980), com a autoridade que deriva de sua vida de insurgente e golpista, filho da tradição mais reacionária do ‘tenentismo’ que produziu Cordeiro de Farias, Juarez Távora e Eduardo Gomes, os mais notáveis, ao lado de figuras menores embora igualmente deletérias, como Filinto Muller e Juracy Magalhães, conspiradores remunerados pelo erário. Aliás, a história militar republicana é um rosário de levantes, de 1922 a 1964, passando pela ‘revolução’ de 30 e os putshs de 1932 e 1935. A ruptura consequente da condução vargo-castilista do movimento de 1930 divide politicamente os ‘tenentes’, mas não os afasta do golpismo que vai caracterizar a presença militar na história republicana.

Os golpes de Estado, comandados quase sempre pelas mesmas lideranças, voltam-se ora contra Vargas, como em 1932 (putsh da aristocracia cafeeira paulista) e em 1935 (levante comunista), ora para entregar-lhe o poder absoluto, como em 1937 (derruição da Constituição de 1934 e instauração do ‘Estado Novo’), como na repressão aos comunistas e putsh integralista de 1938; até de novo atacá-lo (deposição de 1945), para, afinal, levá-lo ao suicídio (1954).

O episódio conhecido como o "11 de novembro de 1955" é emblemático: de um lado, os generais que articulam um golpe para impedir a posse de Juscelino (que simbolizava o retorno do varguismo sem Vargas), de outro, os que de fato executam o golpe (a deposição de Café Filho e Carlos Luz, via Congresso) para assegurar, em nome da legalidade, a posse do presidente eleito.

Sem minimizar a importância do apoio, inclusive logístico, dos EUA, entendo como prioritário, no momento, discutir a participação daqueles outros autores, mais ou menos relevantes, que permanecem ativos em nossa vida política, e, portanto, em condições de fazer História.

As esperanças da direita civil e militar de conquista eleitoral da presidência haviam malogrado com a renúncia de Jânio Quadros e sua frustrada tentativa de golpe, para serem reacendidas com o veto dos ministros militares à posse de seu sucessor constitucional. O levante popular, liderado pelo então governador Leonel Brizola, desfez em dias o planejamento de anos e trouxe para o proscênio a mobilização das massas. Foi a mais contundente derrota do militarismo no Brasil. O retorno à caserna não significaria, porém, a assimilação do desfecho desfavorável da crise por eles mesmos, militares, criada.

Antes de tomar posse, Jango estava condenado à deposição.

Enquanto o deputado e depois governador Carlos Lacerda tentava mobilizar a opinião pública, conspiradores contumazes como os marechais Cordeiro de Farias e Juarez Távora, com o concurso de figuras então menores como o cel. Golbery do Couto e Silva, trabalhavam os quartéis. A guerra ideológica era liderada pelos grandes jornais, à frente de todos "O Estado de São Paulo" e "O Globo" (que ganharia seu primeiro canal de televisão no governo Jango) cujos donos seriam figuras preciosas nas relações com grande empresariado e, só então, nos primeiros contatos com o governo dos EUA. Nascem o IPES e o IBAD, o primeiro reunindo empresários, militares e intelectuais orgânicos da direita, o segundo corrompendo o processo eleitoral.

Jango unifica os conspiradores não quando ‘quebra a hierarquia militar’ comparecendo a uma assembléia de sargentos, mas quando opta pela radicalização nacionalista e o apoio popular dos trabalhadores, mas igualmente dos estudantes, dos operários e dos camponeses. Para a classe dominante brasileira, é intolerável o que lhes possa parecer cheiro de povo. Com esse povo compartilhar o poder, jamais. E é desse então o fortalecimento do movimento sindical e o ensaio das primeiras centrais. O movimento estudantil é liderado por uma União Nacional dos Estudantes legitimada pelo apoio de suas bases; surgem os Movimentos Populares de Cultura, e os primeiros governos estaduais progressistas, como o de Miguel Arraes em Pernambuco, sede das primeiras Ligas Camponesas e dos primeiros confrontos com o latifúndio. Fala-se em Reforma Agrária e em limitação das remessas para o exterior dos lucros das empresas estrangeiras, pleito ainda hoje atual. Os estudantes querem reforma universitária, o governo erradicar o analfabetismo, em sintonia com a Revolução Cubana, que mobiliza as massas e assusta o capitalismo caboclo. O governo reclama as reformas de base e, de uma forma ou de outra, o país se transforma numa grande assembleia que discute seu destino. O povo começa a acreditar no seu poder de escrever sua História.

Faltava ao governo, porém, aquela correlação de forças político-militares necessária para dar sustentação a uma tal política, e, no plano internacional, a Crise dos Mísseis (1962) trouxera para a América Latina os holofotes da Guerra Fria. Nessa contingência, era fácil aos conspiradores apresentarem o próprio governo como subversivo, responsabilizado pela iminente implantação ora de "um regime castrista", ora de "uma república sindicalista", falácias que no entanto conquistavam adeptos e recursos.

O resto é simplesmente consequência, história contada e história sabida.

Essas notas não pretendem reduzir a importância do papel exercido pelos EUA no planejamento do golpe, na sua irrupção, na sua consolidação e em sua sustentação, general por general, até seu último vagido, nada obstante os estranhamentos com o governo Carter, retoricamente preocupado com a violação dos direitos humanos. Trata-se de história comprovada em fatos e documentos. Não padece dúvidas.

É preciso, porém, discutir atores nacionais como a grande imprensa e setores do grande empresariado. A grande imprensa foi decisiva na mobilização da classe-média contra o governo e na defesa aberta do golpe. Passaram para a história como antológicos e paradigmáticos os editoriais do "Correio da Manhã", as campanhas dos ‘Associados’, o papel das emissoras de rádio do Rio e de São Paulo. A manipulação dos fatos, trabalhando a realidade em função de objetivos ideológicos, o jornalismo de campanha encontram seu melhor momento na linha editorial do "O Estado de S. Paulo" e de "O Globo", inexcedíveis na preparação do golpe e, mais tarde, na sua sustentação. No fundamental, e eis a tragédia, e eis o que preocupa, a grande imprensa, passados tantos anos, continua presa a uma Guerra Fria extinta, permanece ideologicamente dependente dos centros hegemônicos, e por isso mesmo a serviço da ideologia da submissão, contra os interesses nacionais sempre que esses são confrontados com os interesses do centro hegemônico. E, hoje como ontem, contra a emergência das grandes massas.

A República exige dessa imprensa sua autocrítica, pelo papel que exerceu na preparação do golpe, na sua sustentação e no silêncio cúmplice diante da tortura e dos assassinatos, que agora reconhece por não mais poder negá-los. O diploma de conivência foi outorgado à nossa imprensa pelo mais luciferino de nossos ditadores: "Sinto-me feliz [dizia o general Médici] todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal [Jornal Nacional, da Rede Globo]. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranqüilizante após um dia de trabalho".

A recente autocrítica do jornal "O Globo", admitindo haver errado ao apoiar o golpe, deve ser bem recebida, é, por enquanto, puro discurso retórico, mas é assim mesmo algo melhor do que o silêncio da Forças Armadas.

A honra da República exige das Forças Armadas sua autocrítica, pelo crime da ruptura democrático-constitucional, pelas torturas e pelos assassinatos que perpetrou em instalações do Estado e pelos crimes que ensejou praticados pelas mãos de agentes terceirizados. Exige que as Forças Armadas, como instituição, renunciem à cumplicidade com os criminosos e ajudem as autoridades na apuração dos crimes.

Esses são os dois primeiros passos para a verdadeira reconciliação nacional."


FONTE: escrito por Roberto Amaral*, na revista "Carta Capital". O autor é cientista político e ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004. Artigo transcrito no portal "Vermelho" (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=239565&id_secao=1).

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