segunda-feira, 4 de junho de 2012

A TOGA, A LÍNGUA E O CAÇADOR DE BLOGS

Gilmar Mendes, sempre adorado e badalado pela mídia

Por Saul Leblon

“Escudado na proteção republicana da toga, o ministro Gilmar Mendes desnudou uma controversa agenda política pessoal na última semana de maio.

Onipresente na obsequiosa passarela da mídia amiga, lacrou seu caminho na 6ª feira declarando-se um caçador de blogs adversários de suas ideias e das ideias de seus amigos. Em preocupante equiparação entre a autoridade da toga e a arbitrariedade da língua, Gilmar decretou serem inimigos das instituições republicanas todos aqueles que contestam os seus malabarismos discursivos a adequar denúncias a cada 24 horas, num exercício de convencimento à falta de testemunhas e fatos que as comprovem.

A fragilidade desse discurso impele-o, agora, ao papel de censor a exigir da Procuradoria-Geral da República, e do ministro Mantega, que sufoque blogs adversários, asfixiando-os com o corte da publicidade oficial. Sobre veículos [como a “Veja”] que incluem entre suas fontes e 'colaboradores informais' notórios acusados de integrar quadrilhas do crime organizado, o ministro nada observa em relação à presença da publicidade oficial.

Cabe ao governo Dilma dar uma resposta ao autonomeado “censor da República”.

O ataque da língua togada contra a imprensa crítica não é aleatório. O dispositivo midiático conservador vive em andrajos de credibilidade e pautas. A semana final de maio estava marcada para ser um desses picos de desamparo, na despedida humilhante de seu herói decaído. E de fato o foi: em depoimento no Conselho de Ética do Senado, na 3ª feira, o ex-líder dos demos na Casa, Demóstenes Torres, deixaria gravado no bronze dos falsos savonarolas a lapidar confissão de que um chefe de quadrilha pagava as contas, miúdas, observaria, de seu celular. E ele, o centurião da moralidade, a direita linha dura assim cortejada pela língua togada e pelo aparato conservador --quem sabe até para vôos maiores em 2014--, não viu nenhum tropeço ético nesse pequeno mimo que elucida todo um perfil.

O fecho de carreira do tribuno goiano contaminaria as manchetes que ele tantas vezes ancorou à direita não fosse a providencial intervenção da língua amiga do ministro do STF, Gilmar Mendes. Na mesma 3ª feira, desde as primeiras horas da manhã, lá estava ela a falar pelos cotovelos. Diuturnamente, contemplou a orfandade da mídia amiga naquele dia cinzento. A cada qual ofereceu uma frase brinde para erguer a moral da tropa e justificar a manchete com o carimbo 'exclusivo' no alto da página. Não se poupou. O magistrado, não raro em destemperados decibéis, esfregou na opinião pública recibos e documentos que comprovariam o pagamento, com recursos próprios --'tenho-os para umas três voltas ao mundo'-- de seu giro europeu, em abril de 2011, onde se encontrou com Demóstenes Torres.

Sua língua foi peremptória em vários momentos a trair a evocação liberal do emissor: 'Vamos parar com essas suspeitas sobre viagens", determinou. Para depois admitir em habilidosa antecipação: por duas vezes utilizou carona aérea do amigo Demóstenes [em avião que, por sua vez, provavelmente, foi providenciado por Cachoeira]; por duas vezes voou sob os auspícios do amigo [Demóstenes] que não possui veículo aéreo próprio; do amigo que não paga nem as contas de celular. Contas miúdas, diga-se, a revelar um vínculo orgânico com a ubíqua carteira gorda de acusados de integrar o condomínio criminoso goiano.

Gilmar estava determinado a servir de redenção ao dispositivo midiático demotucano num dia tão aziago. Não desapontou amigos, ainda que tenha escandalizado o país que espera serenidade e equidistância dos que vocalizam um Supremo Tribunal Federal. Ofensivo, execrou blogs e sites críticos -- esses sim, bandidos e gangsters-- que arguiram e ainda arguem as fronteiras da identidade de valores que aproximou o magistrado do senador decaído [e, portanto, do criminoso Cachoeira].

Fez mais ainda: acusou Lula de ser a central de boatos contra ele para 'melar o julgamento do mensalão' --como se o ex-presidente Lula não pudesse, não devesse ter opinião sobre fatos relevantes da vida política nacional -- prerrogativa que outras togas mais serenas não contestam e legitimam. Ao jornal “O Globo”, na linha da frase à la carte, facilitou a manchete pronta para dissolver a terça-feira de cinzas do conservadorismo: 'O Brasil não é a Venezuela onde Chávez manda prender juiz'. O diário retribuiu a gentileza em manchete garrafal de duas linhas no alto da página. Um contrafogo sob medida à humilhante baixa no Senado. Incansável, a língua foi provendo xistes e chutes a emissários de redações sedentas, mas cometeu alguns deslizes.

Esqueceu que um pilar de sua versão sobre a famosa conversa com Lula --origem de toda celeuma que descambou em ataque à liberdade de imprensa-- residia nos pequenos detalhes que emprestam veracidade ao bom contador; um deles, o cenário: a cozinha. Teria sido naquele recinto profano do escritório do ex-ministro Nelson Jobim, abrigado de qualquer solenidade e sem a presença do anfitrião, que ocorrera o assédio moral inesperado de um Lula chantageador contra um Gilmar irretocável.

Quadro perfeito. Exceto pelo fato de não se sustentar nem mesmo no matraquear do interessado. Sim, o mesmo magistrado suprimiu o precioso cenário despido de testemunhas na versão apresentada ao jornal “Valor” do dia 30-05, quando afirmou literalmente: 'Jobim esteve presente durante todo o tempo'. Como? E a cozinha? E a privacidade a dois que lubrificou o assédio de um Lula irreconhecível?

Evaporou-se: Jobim estava presente o tempo todo. A contradição ostensiva mirava agora outro alvo: o próprio Jobim, em retribuição ao desmentido categórico do anfitrião para o relato original do episódio à “Veja”. No mesmo “Valor”, Gilmar insinuaria contra Nelson Jobim uma suspeita de cumplicidade com Lula por ter lançado na mesa da conversa o nome de um desafeto: Paulo Lacerda.

Ex-dirigente da ABIN, Lacerda foi demitido em 2008 depois que a mesma língua togada denunciou aos mesmos parceiros da mídia uma suposta escuta da PF em seu escritório --fato nunca comprovado. Na 5ª feira (31-05), o entendimento da investida contra Jobim ficaria completo: Serra, o candidato predileto do conservadorismo, amigo de Gilmar, prestou-se à colaborar com “Veja”; desinteressadamente; a exemplo do que tantas vezes o fez desinteressado o também o colaborador Dadá, araponga de aluguel do esquema Cachoeira. Serra incitou o amigo Jobim a falar com a revista sobre o encontro. É um traço do veículo da Abril --comprovado nos documentos disponíveis na CPI do Cachoeira-- recorrer a colaboradores desse espectro para obter 'provas' que sustentem suas matérias pré-fabricadas.

Surpreendido pela trama rasteira, Jobim tirou a escada de “Veja” e deu troco duplo: desmentiu Gilmar no “Estadão”; confirmou à Mônica Bergamo, da “Folha”, o que tantos sabem: Serra não falha; sua biografia de bastidores está, esteve e estará sempre entrelaçada a golpes e denúncias que contemplem a regressividade udenista da qual “Veja” constitui a corneta mais atuante e Gilmar o novo expoente da agressividade lacerdista.

Diante do maratonismo verbal, não sobraria fôlego aos jornais e jornalistas amigos para conceder ao leitor um pequeno espaço de reflexão sobre a momentosa semana final de maio, que deixa mais dúvidas do que certezas. Ademais da evanescente cozinha do escritório do ex-ministro Nelson Jobim, outros pontos de interrogação merecem retrospecto. Por exemplo:

a) a reportagem publicada por “Carta Maior” no dia 29-04 "Cachoeira arruma avião para Demóstenes e 'Gilmar'" --com aspas por conta da identificação incompleta do ilustre viajante e um dos motivos da fluvial verborragia togada, não tratava de pagamento de vôo a Berlim patrocinado pela 'agência de viagens' Demóstenes & Cachoeira;

b) o texto, conciso e claro, baseado em escutas públicas da PF, teve como foco uma 'carona aérea' no trecho SP-Brasília, solicitada ao esquema Cachoeira para o dia 25-04 de 2011;

c) as tratativas telefônicas da quadrilha Cachoeira apontam que os passageiros da carona viriam da Alemanha e seriam, respectivamente, Demóstenes e 'Gilmar';

d) a data da chegada a São Paulo é a mesma do retorno informado pelo próprio Gilmar Mendes em seu rally jornalístico;

e) o horário de chegada do seu vôo originário da Alemanha guarda proximidade com aquele informado à quadrilha. Essas as coincidências notáveis. A partir daí, os fatos e comprovantes apresentados por Gilmar Mendes desmentem que ele tenha utilizado a dita carona solicitada à quadrilha, fato que “Carta Maior” noticiou imediatamente após os esclarecimentos do magistrado. O desencontro entre essas evidências e as providências tomadas pela quadrilha Cachoeira, todavia, autoriza uma indagação que não se dissolve no aluvião verborrágico da semana, a saber: quantos Gilmares havia em Berlim com Demóstenes Torres? E, mais que isso: quem seria o 'Gilmar' cuja inclusão na carona, aparentemente desativada, não causou qualquer surpresa a Cachoeira, que nas escutas reage à menção do nome e da presença como algo se não habitual, perfeitamente compatível com a extensão de seus tentáculos e zonas de influência?

“Carta Maior” reserva-se o direito de continuar praticando jornalismo crítico e autocrítico, comprometido única e exclusivamente com a democracia e as aspirações progressistas da sociedade brasileira, abraçadas pela ampla maioria de seus leitores. Isso, naturalmente, a coloca na margem oposta daqueles que até ontem consideravam Demóstenes Torres, seus valores, agendas, contas de celular e caronas em jatinhos uma referência ética e republicana.

Fiel a esse compromisso com o leitor, “Carta Maior” cumpre a obrigação de manter em pauta algumas perguntas ainda sem resposta satisfatória: quantos gilmares havia em Berlim? Quantos gilmares havia no escritório de Jobim (um na cozinha e um na sala)? E, ainda mais urgente, quantas ameaças de fuzilamento da liberdade de expressão serão necessárias para que os partidos democráticos e o governo tomem a iniciativa de desautorizar a língua arvorada em extensão da toga? Não só em palavras, mas sobretudo na impostergável democratização afirmativa da publicidade oficial, antes que novos e velhos caçadores de jornalistas consigam transformá-la em mais um torniquete da pluralidade de opinião.”

FONTE: escrito por Saul Leblon no site “Carta Maior”  (http://www.cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=998).

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