terça-feira, 13 de janeiro de 2015

"CHARLIE" E A VIOLENTA COLONIZAÇÃO FRANCESA NA ÁFRICA E ORIENTE MÉDIO




A ambiguidade das praças francesas


"Faz muito mais sentido buscar as origens da violência fundamentalista nas formas coloniais adotadas pelo Ocidente do que em uma passagem ou outra do Corão.

Por Rossana Rossanda, no "Sin Permisso", da Espanha

Na imprensa italiana, as únicas palavras equilibradas nessa torrente de declarações de horror e angústia italiana pelo assassinato dos cartunistas e do diretor da "Charlie Hebdo" foram escritas por Massimo Cacciari, reorientando a questão para sua dimensão temporal e política. Não faltou ambiguidade à grande emoção e aos protestos que chegaram rapidamente, e de modo espontâneo, às praças francesas. Foi possível manifestar legitimamente, e quase acolhendo o convite do presidente Hollande, o rechaço ao fundamentalismo e a defesa da República, bem como o “não” aos problemas decorrentes da grande imigração muçulmana na Europa – facilitada, na França, pela famigerada "colonização" francesa no norte da África e no Oriente Médio.

Durante muitas décadas, nós nos esquecemos de que foi um acordo entre um alto funcionário inglês, Sykes, e outro francês, Picot, que originou o desenho repartindo o império otomano entre França e Grã-Bretanha. A Grã-Bretanha conseguiu posteriormente se impor e, ainda mais recentemente, prevaleceram as políticas dos Estados Unidos. Mas as recentes decisões tomadas por Hollande de intervir no Nordeste Africano e na África Central restauraram, sem querer, a imagem de uma glória colonial que alenta Marine Le Pen. 

Igualmente, as palavras do presidente Hollande logo após o atentado, pedindo a todo o país unidade contra o terrorismo, pareceram legitimar a petição da "Frente Nacional" para participar da grande manifestação oficial antifundamentalista do último domingo (11), o que suscitou certo embaraço, tendo em vista o impulso com que Marine Le Pen anunciou sua participação. 

Não se pode, de fato, levar adiante duas políticas opostas – acariciar velhas e injustificáveis tendências coloniais e defender os valores republicamos –, tal como fez o governo socialista em sua intenção de empregar um elemento para distrair o descontentamento popular com temas relacionados a direitos dos trabalhadores e política econômica.

O lema “Je suis Charlie” manifestava de modo eficaz o apoio a uma revista que não é nem de enorme difusão, e que em geral não faz gentilezas à "Frente Nacional". Pode-se discutir sobre um tema já vulgarizado na Itália, tal como a imunidade política da sátira, hoje aparentemente defendida por todos. As famosas charges dinamarquesas contra Mohammed deu à "Charlie Hebdo" uma maior difusão ao acentuar um ateísmo até muito esperado, mas que não há de se identificar com o desprezo aos crentes: “Merda a todas as religiões”, havia escrito e publicado na capa da revista. À incapacidade da esquerda de levar argumentos laicos ao centro da opinião pública, e de responder à demanda que hoje têm especialmente alguns monoteístas e o budismo, ainda que sejam bastante diferentes, correspondeu à indulgência em formas fáceis de caricatura, que seguramente ofenderam milhões de muçulmanos na Europa. Basta pensar como essas charges seriam acolhidas se fossem aplicadas nominalmente a Jesus Cristo. Não acredito que seja útil relegar aos caricaturistas uma tarefa que, por sua natureza, querendo rir de todas as formas de fé, não podem exercer: é como arremessar um fósforo a uma lata de gasolina. É justa a debilidade da esquerda depois de 1989 produzida por esse forte renascimento das religiões.

Em relação à religião muçulmana, como não se perguntar por que seu fundamentalismo – que parecia ter sido excluído pela organização não piramidal de suas igrejas – se acabou nessa forma mortífera, particularmente hoje. Mohammed existe desde o século VII e, desde então, a atitude do império otomano, por exemplo, em relação aos judeus, foi muito mais tolerante e tendendo à assimilação de que a Igreja Católica, que impulsionou as cruzadas, foi coberta com maldições e impropérios, mas sem que levassem a qualquer Jihad, e o famoso “feroz Saladino” era um interessante pacifista. O extremismo de matar a todos os infiéis ao profeta pertence aos nossos dias, e faz muito mais sentido buscar suas origens nas formas coloniais e não-coloniais adotadas pelo Ocidente do que em uma passagem ou outra do Corão.

Um fenômeno não menos importante tem a ver com a fascinação exercida pelas formas extremas de milícia, que chegam inclusive a considerar a própria morte como “martírio”, sobre jovens ocidentais que chegam à Síria ou a outros lugares para os quais se alistam nas fileiras de mestres do fundamentalismo. O tão proclamado final das ideologias parece ter deixado de pé apenas o absolutismo de algumas minorias muçulmanas, como precisamente a Jihad e, de modo particular, o recente Daesh, isto é, o Estado Islâmico representado pelo chamado Califado de Al Baghdadi.

Entre nós, já se manifesta a vontade de condenar quem parece se inspirar nisso, um erro do qual fará falta se precaver. Em resumo, a fascinação do islamismo radical corresponde à estupidez com que a cultura predominante no Ocidente parece tratar a necessidade de um “sentido” que não se reduz ao dinheiro, e que os aspectos ideológicos da globalização tentaram obscurecer. Grande problema de nosso tempo e que é inútil exorcizar."


FONTE: escrito por Rossana Rossanda, membro do Conselho Editorial do "Sin Permisso", da Espanha. Transcrito no portal "Carta Maior"  (http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-ambiguidade-das-pracas-francesas/4/32611).

Nenhum comentário: