quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

"TODOS À LA PLACE"... POR QUÊ?





Todos à la place. Por quê?

A adesão imediata à manifestação de Paris mostra como é fácil hoje manipular uma opinião pública tolhida para o exercício do espírito crítico

Por Mino Carta , na revista "CartaCapital" 

"François Hollande administra um país dilacerado entre os que clamam pela "guerra ao terror" e aqueles que querem segurança sem comprometer as liberdades civis.

Perguntaria Hamlet: “Ser ou não ser?” "Charlie", está claro. A personagem de Shakespeare é o paradigma da dúvida atormentada pela invulnerabilidade do efêmero. Surpreende, porém, e até espanta, a rapidez com que a larga maioria fez sua escolha. Por quê? A que se deve o imediatismo da resposta? Agir às pressas, de impulso, precipita amiúde equívocos, enganos, erros. Não seria o caso de parar para pensar?

Pois é, pensar. Explorar a faculdade que o ser humano tem de constatar sua pessoal existência. O mundo vive uma quadra de enormes incertezas e de graves conflitos, e a situação se apinha de inúmeros porquês. Por que aqui [na Europa] estamos a padecer uma crise econômica que poupa somente banqueiros e especuladores, aliás, a eles aproveita acintosamente? Por que o rentismo grassa enquanto o desemprego aumenta? Por que o desequilíbrio social se aprofunda em todos os cantos? Por que uma centena de multinacionais impõe sua vontade a Estados soberanos? Por que a senhora Merkel e seus banqueiros ditam as regras à inteira Comunidade Europeia e decretam a austeridade em lugar do desenvolvimento? Por que o atual presidente da UE é o ex-premier do Luxemburgo, o aprazível paraíso fiscal?

Interrogações sem conta, propostas pela circunstância. Pode-se, se quisermos, perguntar aos nossos botões por que o mundo carece hoje de poetas, ou por que se pagam dezenas de milhões de dólares por um tubarão morto mergulhado em uma caixa de vidro cheia de formol, ou por que navegantes da internet divulgam aos quatro ventos o cardápio do seu jantar da noite anterior. Ou por que, de súbito, a humanidade concentra-se na Place de la République, de corpo presente ou em espírito, para manifestar contra o terrorismo.
O espetáculo parisiense assinala, ao mesmo tempo, o triunfo do modismo e da hipocrisia. Fácil identificar o lado de cada qual, a ser clara a desfaçatez das autoridades. Em boa parte, têm responsabilidades em relação ao terrorismo, quando não são seus instigadores, cúmplices, ou até mesmo praticantes, competentes ou não. Conseguiram o que queriam, admitamos. Juntaram o Ocidente em uma praça parisiense para ostentar os seus poderes e cuidar dos seus interesses políticos, sem exclusão de golpes baixos, ações de guerra, assaltos aos cofres públicos e terrorismo de Estado, sem contar as violações dos Direitos Humanos.

Diante deles, incitada pelas frases feitas da propaganda midiática, súcuba dos apelos da retórica globalizada, a grei automatizada. Incapaz de entender se, de pura e sacrossanta verdade, o massacre na redação do "Charlie Hebdo" configura um ataque sem precedentes à liberdade de imprensa, ou de expressão. Ou à liberdade na acepção total, sem qualificativos.

Resta entender o significado e o alcance das palavras. Sabemos, em primeiro lugar, ou pretendemos saber, que a liberdade de cada um acaba na liberdade do semelhante. Nem todos se dão conta disso. De qualquer forma, a liberdade proclamada pela Revolução Francesa acaba por ser de poucos se não for completada pela igualdade. Livre é realmente uma sociedade de iguais. Se há canto da Terra onde essa simbiose acontece, louvado seja quem fez o milagre. Nem se fale do Brasil, o país de casa-grande e senzala.

Outra questão diz respeito à "liberdade de imprensa", que na mídia nativa conta com paladinos aguerridos. A liberdade que defendem é a de fazer o que bem entendem. Não é assim em outros países democráticos e civilizados, onde a mídia é devidamente regulamentada, para impedir, entre outros objetivos, o monopólio e o oligopólio. Na França, é certo, o "Charlie Hebdo" podia circular à vontade, a despeito dos seus discutíveis propósitos e de certo autoritarismo a vingar na redação. O cartunista Siné, célebre desde o fim dos anos 50, foi despedido porque suas charges não tinham a desejada agressividade e evitavam certos assuntos. [Siné foi despedido por forte pressão da comunidade judaica, simplesmente porque uma sua charge muito sutilmente associou judeu a sucesso comercial].

A virulência antimuçulmana, no "Charlie Hebdo", não é inferior àquela dirigida contra as religiões monoteístas de cristãos e judeus. Tempos atrás, uma charge mostrava, da forma mais crua, o encontro (seria um rendez-vous?) entre a Virgem Maria e um centurião romano, com o resultado de trazer à vida quem mais, se não Jesus Cristo. Ocorre a lembrança de um "Pif-Paf", a seção entregue pelo "O Cruzeiro" dos "Diários Associados" a Millôr Fernandes, por mais de duas décadas. O humorista estava disposto a contar a história fracassada de Adão e Eva no Paraíso Terrestre. Jocosa e sem vulgaridade, no traço steinberguiano de Millôr.

A CNBB protestou oficialmente, e Millôr foi despedido com a habitual pusilanimidade. Não houve manifestação na Cinelândia carioca.

Não convém ao Ocidente aceitar a ideia de que a tragédia decorre de uma ação de guerra levada a cabo por um comando bem treinado, mas é assim que pensam os fanáticos arregimentados pela Jihad. Se uma bomba um dia desses explodir, digamos, no Grand Palais, não podemos alegar o "atentado contra a liberdade de expressão", como não o foi o ataque às Torres Gêmeas. O objetivo do terrorismo, de resto, é solapar a capacidade de resistência do inimigo designado, de certa maneira é semear o pânico com a humilhação do alvejado.

Não se trata, de todo modo, de buscar explicações, e sim de entender que a "liberdade de expressão" tem necessariamente limites, bem como a intenção de provocar, desbragada na publicação satírica. O que talvez esclareça quanto ao seu escasso êxito junto ao público francês. Nesta semana, o "Charlie Hebdo" saltou de uma tiragem de algumas dezenas de milhares de cópias para milhões. Também esse é fruto do modismo, a contar, para a manipulação da opinião pública, com instrumentos cada vez mais capilares e eficazes. Vezos e tendências momentâneos assumem a ribalta e tomam conta da plateia de forma avassaladora. Até levá-la, se for o caso, à Place de la République.

É provável que na multidão também figurassem muitos cidadãos franceses de origem árabe, ou africana, e de religião muçulmana, impelidos pela repulsa ao terrorismo, conquanto ofendidos pela charge que visava o Profeta. Que fazer com 6 milhões de muçulmanos franceses donos de todos os direitos de cidadania? Expulsá-los em bloco? Não faltarão aqueles que aprovariam a solução com entusiasmo. Caso se trate de torcedores do futebol, a xenofobia os teria levado a não considerar o triste destino da seleção francesa, privada de muitos entre seus melhores craques.

Desse ponto de vista, o Brasil é um país resolvido, embora não isento do preconceito racial e social. Por aqui, pobres e pretos vivem sob suspeita. Manda, porém, o jus soli, pelo qual somos todos brasileiros. Na França, e em toda a Europa, meta de forte migração de áreas subdesenvolvidas, a questão suscita ásperas polêmicas, mesmo porque em muitos países a tradição soletra o jus sanguinis. O sangue determina a cidadania. Eventos como o massacre que abalou o mundo vão excitar o ódio racial na França, na Europa, e alhures, em benefício da direita mais reacionária.

Quem leva vantagem? Na França, Marine Le Pen, que se fortalece como candidata à Presidência da República. Na Itália, crescerá a "Lega". Na Alemanha, o "Pegida", grupo ultradireitista. Rajoy, na Espanha, reforça seu poder. De todos os líderes, Netanyahu é aquele que, ao carregar sua campanha eleitoral até Paris, exibe com maior clareza seus propósitos. E a orquestração bem trabalhada acaba por acentuar as incompatibilidades, os contrastes, as divergências, os conflitos. A violência e o desvario em geral.

Nesse caldo de cultura germinam, como no magma primevo a se esfriar teria nascido a vida do planeta, o fanatismo assassino, a criminalidade nas suas distintas fisionomias. Isso é do conhecimento até do mundo mineral, mas não de todos os homens. Fatos como a chacina parisiense repetem-se à toda hora, provocados pelo fanatismo, pela revolta, pela insanidade, pela desgraça. E pelo terror de Estado. 

Não cabe justificar o horror. Recomenda-se, entretanto, aquilatar envolvimentos e responsabilidades. E anotar que inomináveis delitos cometidos pelos senhores do mundo ocidental não costumam merecer a repulsa das praças lotadas.

Para evocar fatos próximos, é da incompetência impafiosa da diplomacia norte-americana que eclode a Guerra do Iraque, ou brota a maior ameaça terrorista representada pelo Estado Islâmico. Tal é a inexorável verdade factual. Há culpas em cartório, contribuições transparentes ao descalabro dos dias de hoje, às quais a maioria se presta de pronto porque tolhida fatalmente ao exercício da razão.

O alpiste servido aos incautos, aos desmemoriados, aos crédulos, aos ignorantes, é a versão dos cavalheiros tão bem representados na praça parisiense. Aproveitam-se da eficácia dos instrumentos chamados a entorpecer as consciências e demolir o mais pálido resquício de espírito crítico.

Talvez estejamos no limiar de uma nova Idade Média, contradição apenas aparente do dito "progresso tecnológico". Se o homem dispõe de computador e celular de infinitas funções, e vive bem mais do que as gerações precedentes, nem por isso ganha em sabedoria, pelo contrário. O respeito à memória, base de todo conhecimento, dispersa-se na moda contingente. Nessa moldura, o livro tende a se tornar objeto obsoleto. Na mesmice globalizada, instalam-se, disfarçados pela banalidade, a ignorância, a indiferença. E os desbordantes porquês não logram resposta."


FONTE: escrito por Mino Carta , na revista "CartaCapital" ( http://www.cartacapital.com.br/revista/833/todos-a-la-place-por-que-4996.html).[Trecho entre colchetes acrescentado por este blog 'democracia&política'].

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