domingo, 11 de janeiro de 2009

"GUERRA É CRIME CONTRA O ESTADO DE ISRAEL"

Os sites “Carta Maior” e “Vi o Mundo” publicaram ontem o artigo abaixo transcrito, do jornalista israelense Uri Avnery.

O texto "How Many Divisions?", é do Gush Shalom [Grupo da Paz], Israel, distribuído por e-mail,ontem. A tradução é de Caia Fittipaldi, autorizada pelo autor.

QUANTAS DIVISÕES?

“Há quase 70 anos, durante a II Guerra Mundial, cometeu-se um crime de ódio em Leningrado. Por mais de mil dias, uma gang de extremistas, chamada "o Exército Vermelho" sequestrou e manteve sob sítio os milhões de habitantes da cidade, o que provocou ação de retaliação pela German Wehrmacht, que teve de agir em áreas superpovoadas. Os alemães só tiveram essa escolha: bombardear e encurralar a população e impor total bloqueio, o que matou centenas de milhares.

Pouco antes disso, crime similar foi cometido na Inglaterra. A gang de Churchill infiltrou-se entre os moradores de Londres, servindo-se de milhões de seres humanos como escudo humano. Os alemães foram obrigados a despachar para lá sua Luftwaffe e muito relutantemente reduziram a cidade a ruínas. Chamaram de "a Blitz".

Essa seria a narrativa da história, que veríamos hoje nos livros escolares – se os alemães tivessem vencido a guerra.

Absurdo? Tão absurdo quanto o que se lê diariamente nos jornais em Israel, repetido ad nauseam: os terroristas do Hamás "sequestraram" os habitantes de Gaza e exploram mulheres e crianças como "escudos humanos". Não deixam alternativa ao exército de Israel, que é obrigado a bombardear furiosamente, processo durante o qual, Israel lamenta muito, Israel mata e mutila milhares de mulheres, homens desarmados e crianças.

Na guerra em curso em Gaza, como em todas as guerra modernas, a propaganda desempenha papel de protagonista. A disparidade entre as forças, entre o exército de Israel – aviões de última geração, metralhadoras, fuzis, lança-granadas, navios de guerra, tanques, carros blindados de todos os tipos – e uns poucos milhares de combatentes do Hamás, que só têm armas leves, é disparidade absoluta: de um, para mil, talvez de um, para um milhão.

Na arena política a diferença é ainda mais ampla. Mas na guerra de propaganda, a diferença é quase infinita.

Praticamente toda a imprensa ocidental só fez repetir, de início, a linha oficial da propaganda de Israel. Ignoraram completamente o outro lado, o lado palestinense da história, para não dizer que jamais noticiaram as manifestações diárias que acontecem, feitas pelos militantes israelenses dos grupos pela paz. O mundo aceitou como verdadeiro o argumento de propaganda do governo de Israel (“O Estado tem de defender os cidadãos contra os foguetes Qassam”). Nenhum jornal lembrou que os Qassams são reação ao sítio, cerco, bloqueio que mata de fome 1,5 milhão de seres humanos na Faixa de Gaza.

Só depois que as televisões ocidentais começaram a exibir cenas horrendas, imagens da Faixa de Gaza, então, a opinião pública gradualmente começou a mudar.

É verdade que as televisões ocidentais e israelenses só mostraram uma pequena porção dos horrores que aparecem, 24 horas por dia, mostrados ao mundo árabe pelo canal árabe da Al-Jazeera, mas uma única imagem de um bebê morto, nos braços de um pai alucinado é mais poderosa do que o infindável palavrório de frases bem construídas do porta-voz do exército israelense. No final, aquele pai e aquele bebê comprovaram-se mais poderosos que o exército e o porta-voz do exército de Israel.

A guerra – qualquer guerra – é o império das mentiras. Chamem-nas "propaganda", ou "guerra psicológica", aceita-se em geral que muitos mintam a um país inteiro. E quem tente dizer a verdade corre o risco de ser acusado de traição.

O problema da propaganda é que ela sempre convence mais o propagandista, que o resto do mundo. E depois de alguém passar a crer que uma mentira é verdade, que o falso é real... já ninguém é capaz de tomar decisões racionais.

Exemplo desse processo viu-se no episódio mais chocante, até agora, da guerra de Gaza: o bombardeio da Escola Fakhura, da ONU, no campo de refugiados de Jabaliya.

Imediatamente depois de o mundo tomar conhecimento do crime que ali se cometeu, o exército de Israel "revelou" que combatentes do Hamás estariam disparando granadas de área próxima à entrada da escola. Como prova, exibiram uma foto aérea na qual, sim, se via uma escola e uma granada. Minutos depois, o mentiroso de plantão no exército teve de admitir que a foto era antiga, de mais de um ano. Em resumo: a foto foi falsificada.

Depois, outro mentiroso armado 'declarou' que "nossos soldados estavam sendo atacados a tiros, de dentro da escola". Dia seguinte, o exército foi obrigado a reconhecer frente aos funcionários da ONU, que também a segunda 'declaração' era mentira. Ninguém foi atacado a tiros, de dentro da escola, nem havia combatentes do Hamás dentro da escola. Dentro da escola só havia refugiados desarmados e apavorados.

De qualquer modo, o desmentido não fez grande diferença. Àquela altura, a opinião pública já estava cegamente convencida de que "estavam atirando de dentro da escola" – o que jornalistas continuaram a 'noticiar' pela televisão, como se fosse verdade.

E assim por diante, a cada nova atrocidade, uma nova mentira. Cada bebê metamorfoseava-se, no momento de morrer, em terrorista do Hamás. Cada mesquita bombardeada convertia-se instantaneamente em base do Hamás. Cada prédio de apartamentos, em esconderijo de armas; cada escola, em posto de comando do terror; cada prédio da administração pública, em "símbolo do poder dos terroristas do Hamás". Assim, o exército de Israel travestiu-se, mais uma vez, de "o mais moral exército do mundo".

A verdade é que as atrocidades são consequência direta do plano de guerra. Refletem a personalidade de Ehud Barak – homem cujo modo de pensar e agir são exemplo do que se conhece como "insanidade moral", desordem sociopática.

O objetivo real da Guerra de Gaza (além de conquistar algumas cadeiras nas eleições próximas) é destruir o Hamás na Faixa de Gaza. Na imaginação dos estrategistas sociopatas do exército de Israel, o Hamás é um invasor que controla um país estrangeiro. Claro que a realidade é outra.

O movimento Hamás venceu eleições perfeitamente legais e democráticas realizadas na Cisjordânia, em Jerusalém Leste e na Faixa de Gaza. Venceu, porque os palestinenses chegaram à conclusão de que a abordagem pacífica do Fatah nada obtivera, que prestasse, de Israel – sequer foi interrompida a construção de novas colônias; nenhum prisioneiro político foi libertado; nenhum passo significativo foi dado para pôr fim à ocupação ilegal e criar o Estado da Palestina.

O Hamás está profundamente enraizado na população – não só como movimento de resistência que combate a ocupação ilegal, como foi, no passado, o movimento Irgun e o Grupo Stern –, mas também como corpo político e religioso que oferece serviços de assistência social, educacional e serviços de saúde.

Do ponto de vista da população da Palestina, os combatentes do Hamás não são um 'corpo estranho': são os filhos das famílias que vivem na Faixa e em outras regiões da Palestina. Eles não são nem estão "infiltrados na população", nem "usam a população como escudos humanos". A população da Palestina vê os combatentes do Hamás como os seus, como os seus soldados, como os seus defensores.

Portanto, toda a operação que levou a essa guerra baseou-se em premissas erradas.

Transformar o dia-a-dia da Palestina em inferno jamais levará os palestinenses a levantar-se contra o Hamás. Acontecerá exatamente o oposto: a população unir-se-á cada vez mais firmemente em torno do Hamás; a cada dia aumentará a decisão de não se render. Os habitantes de Leningrado não se levantaram contra Stalin. Nem os ingleses de Londres levantaram-se contra Churchill.

Quem ordena que os soldados façam o que têm feito, mediante os métodos que o exército de Israel tem usado em área densamente povoada, sabe que massacrará civis.

Aparentemente nada disso o perturba. Ou, então, ele pensa que "mudarão de opinião" e "acordarão para o bom-senso", de modo que, no futuro, nunca mais se atreverão a resistir contra Israel.

A prioridade do exército de Israel era minimizar o número de soldados mortos, porque sabem que a opinião dos eleitores mudará, no instante em que Israel comece a enterrar seus filhos. Aconteceu exatamente assim, nas duas guerras do Líbano.

Essa consideração teve papel particularmente importante, porque toda a guerra é item da campanha eleitoral. Ehud Barak, que chegou ao topo das pesquisas nos primeiros dias da guerra, sabe que despencará de lá, se as televisões começarem a mostrar imagens de soldados israelenses mortos.

Portanto, Israel implementa hoje outra doutrina: evitar baixas; para tanto, destruir tudo o que apareça à frente dos tanques ou abaixo dos aviões ou na mira dos canhões dos barcos. Os estrategistas estão trabalhando, não só para matar 80 palestinenses para salvar um soldado, como está acontecendo; estão preparados para matar 800 palestinenses, por israelense. Evitar baixas é, hoje, o primeiro mandamento em Israel. Para tanto, estão matando número recorde de civis palestinenses.

O que aí se vê é a escolha consciente de um tipo particularmente cruel e injusto de estratégia de guerra. Esse erro é o calcanhar de Aquiles do exército de Ehud Barak.

Um homem sem imaginação como Barak (seu slogan eleitoral é "Não um bom sujeito. Um líder!"), não faz idéia de como gente de bem, em todo o mundo, reage ante assassinatos de famílias inteiras, destruição de casas, soterramento de mães e filhos, pilhas de cadáveres de meninos e meninas envoltos em mortalhas brancas, a relatórios que informam sobre feridos que sangram até morrer, porque o exército de Israel impede o trânsito de ambulâncias; ante assassinatos médicos e paramédicos que tentam cumprir seu dever; ou de motoristas de caminhões da ONU que dirigem caminhões que transportam farinha. O mundo está horrorizado com o que está vendo. Nenhum argumento eleitoral ou estratégico terá jamais qualquer força, ante a imagem de uma menina ferida, no chão, procurando a mãe.

Os estrategistas de Israel supuseram que impediriam o mundo de ver essas cenas; que bastaria impedir o trabalho dos jornalistas. Os jornalistas israelenses, para sua perpétua vergonha, deram-se por satisfeitos com os releases e imagens oficiais, fornecidas pelo porta-voz do exército, como se fossem notícia e fato; ao mesmo tempo, preservaram-se, a quilômetros de distância de qualquer perigo.

A imprensa estrangeira também foi proibida de trabalhar, mas os jornalistas estrangeiros, pelo menos, protestaram. Conseguiram ser levados em tours rápidos pelas cidades, em grupos pequenos, selecionados e fiscalizados.

Fato é que, nas guerras modernas, esse tipo de noticiário estéril e manufaturado já não exclui completamente outras vias de obter e distribuir informação. Há máquinas fotográficas e filmadoras com a população, na Faixa, no meio do inferno. E, essas, não podem ser controladas. As equipes da rede Al-Jazeera distribuem imagens e boletins 24 horas por dia. E todas as casas recebem as imagens.

Essa batalha, pelas telas de televisão, é hoje uma das mais decisivas de toda a guerra de Gaza.

Centenas de milhões de árabes, da Mauritânia ao Iraque, mais de um bilhão de muçulmanos, da Nigéria à Indonésia vêem e horrorizam-se. Não se subestime o impacto dessas redes, sobre o desenrolar da guerra de Gaza. Milhões de pessoas estão assistindo ao que fazem e dizem os políticos do Egito, da Jordânia e da Autoridade Palestinense. Para muitos, todos esses aparecem como colaboracionistas, como parceiros de Israel, nas atrocidades de que são vítimas, hoje, seus irmãos palestinenses.

Os serviços de segurança de vários regimes árabes já registram uma fermentação perigosa em vários países. Hosny Mubarak, de todos os líderes árabes o que está mais exposto, por ter fechado a passagem de Rafah, praticamente diante de multidões de refugiados apavorados, está sendo forçado a pressionar Washington, que, até há pouco tempo recusava-se a cogitar de qualquer tipo de acordo para o cessar-fogo. Todos já começam a pressentir algum tipo de grave ameaça aos interesses vitais dos EUA no mundo árabe. De fato, já mudaram de atitude – o que causou consternação entre os complacentes diplomatas israelenses.

Gente que sofra de insanidade moral não pode, mesmo, entender os motivos que regem a ação de gente normal. "Quantas divisões tem o Papa?" perguntou Stálin. "Quantas divisões têm os seres humanos decentes?" – deve estar-se perguntando, agora, Ehud Barak.

Fato é que os seres humanos decentes têm, sim, algumas divisões. Não muitas. Nem capazes de reação muito rápida. Nem são muito poderosas, nem muito bem organizadas.

Mas num determinado momento, quando as atrocidades cometidas por Israel começaram a vazar por todos os lados, começaram a surgir protestos em massa, de grande envergadura. Esses protestos podem decidir uma guerra.

O erro, o fracasso, a incapacidade para perceber a real natureza do Hamás levou a outros erros, de resultados previsíveis. De um lado, Israel é incompetente para vencer. De outro lado, o Hamás não perderá essa guerra.

Ainda que Israel conseguisse matar todos os combatentes do Hamás, até o último homem, ainda assim o Hamás venceria. Os combatentes do Hamás passarão a ser vistos como exemplos para o mundo árabe, heróis do povo da Palestina, exemplo a ser copiado para todos os jovens árabes. A Cisjordânia cairá no colo do Hamás, como fruta madura. O Fatah naufragará num mar de escárnio, vários regimes árabes estarão sob risco de colapso.

Se, ao final dessa guerra, ainda houver Hamás, dilacerado, que seja; em frangalhos, que seja, mas ainda vivo, sobrevivente à fuzilaria da máquina militar de Israel, será a mais prodigiosa das vitórias, será fantástico, será como o espírito que derrotou a matéria.

Na consciência do mundo estará fixada a imagem de uma Israel sedenta de sangue, pronta para, a qualquer momento, cometer os mais atrozes crimes de guerra, que nada detém, nenhuma rédea moral. As consequências serão muito severas, para o futuro de longo prazo de Israel, para nossa existência no mundo, para as chances de Israel algum dia poder viver em paz e sossego.

No fim a guerra de Gaza é, sobretudo, guerra contra Israel, também. É crime contra o Estado de Israel.”

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