O jornal norte-americano The New York Times ontem publicou a seguinte reportagem de Rachel Donadio, em Lucca (Itália). Li no UOL em tradução de Eloise De Vylder:
CIDADE MURADA DA TOSCANA SE APEGA A CARDÁPIO ANTIGO
“Com suas igrejas pintadas de cor-de-rosa, árvores enfileiradas em frente aos muros da cidade e uma excelente e famosa cozinha regional, Lucca parece ser a cidade perfeita da Toscana. Mas o charme é exatamente o que a transformou num campo de batalha num cabo de guerra entre a Itália romântica do imaginário popular e a realidade mais complexa.
O conselho da cidade de Luca, de centro-direita, provocou recentemente muita controvérsia, e acusações de racismo, ao proibir a abertura de novos restaurantes de culinárias étnicas dentro de seu charmoso centro histórico.
Afinal, trata-se de uma cidade murada. Muitas lojas pertencem às mesmas famílias há gerações. Alguns moradores locais falam com orgulho de sua genealogia, ou linhagem imaginária, que data desde os etruscos, que fundaram Lucca antes que os romanos a tomassem cerca de 180 a.C.
COM TANTA HISTÓRIA, AS MUDANÇAS SÃO DIFÍCEIS.
Lucca é "muito fechada", diz Rogda Gok, nativa da Turquia e sócia do restaurante de kebab Mesopotâmia, no coração do centro histórico. "Em Istambul há outros tipos de comida, como a alemã e a italiana; não é um problema", acrescenta. "Mas aqui em Lucca, eles só querem comida local".
Nessa cidade profundamente conservadora, onde até mesmo a culinária siciliana é considerada étnica, já existe quatro restaurantes de kebab, que testemunham uma população de imigrantes cada vez maior e o fato de que muitos italianos, principalmente os mais jovens, gostam de comida de outros países. Ao oferecer kebabs pelo equivalente a US$ 5, os restaurantes também são uma pechincha em tempos difíceis.
De acordo com a nova lei, esses quatro restaurantes podem permanecer, mas a proibição de novos restaurantes étnicos e fast foods dentro dos muros da cidade foi vista por muitas pessoa daqui como algo contrário às regras do capitalismo de mercado livre e da noção de que a Itália pode oferecer mais do que visões de seu passado morto há muito tempo.
Ainda assim, essas visões de sonho da Toscana - cadeias montanhosas, plantações de oliveiras, ciclovias ao longo das fileiras de árvores dos muros renascentistas da cidade - são exatamente o que atraem cerca de meio milhão de turistas por ano, dos quais a cidade depende para sobreviver. Lucca não é a única cidade a comprar essa briga. Siena e outras cidades da Toscana também baniram os fast foods em seus centros históricos.
Este mês, Veneza descartou um plano controverso que permitiria à Coca-Cola instalar máquinas de refrigerante por toda a cidade, um dos vários patrocinadores corporativos que ajudam a sustentar a infra-estrutura sob o peso esmagador do turismo que hoje é vital.
Em Lucca, a proibição do kebab também causou polêmica. "É uma vergonha", disse Renata Barbonchhielle, moradora de Lucca, em frente à uma padaria no centro. "É claro que os kebabs devem existir. Temos que ter abertura aqui".
Ainda assim, talvez num exemplo esperançoso de como os ideais de uma minoria iluminada ultrapassam a experiência de fato, Barbonchielle reconheceu que ela não conhecia os kebabs. "Nunca experimentei", diz ela, "mas meus filhos gostam".
Lucca permitiu que as lojas de kebab abrissem antes de mais nada só porque as autoridades municipais não sabiam o que elas eram, disse Filippo Candelise, membro do Conselho Municipal de Lucca que cuida do desenvolvimento econômico, numa entrevista no palazzo medieval que abriga a prefeitura.
Candelise defendeu a nova regulação como sendo essencial para o futuro de Lucca. "Nós rejeitamos totalmente o rótulo de 'racismo'", disse.
"Só queremos preservar nossa cultura e identidade histórica".
De fato, visitantes de vários países que se orgulham de serem abertos não necessariamente adotam a mesma perspectiva no caso de Lucca. "Um americano quer encontrar uma "osteria" [espécie de taverna] típica, e não um restaurante chinês", diz Candelise.
Barbara Di Cesare, assessora de imprensa da cidade, mostrou mensagens de e-mail do mundo todo, elogiando sua nova lei. "Você está certa em proteger o charme de Lucca", disse um turista alemão. "Vimos para Lucca todo ano porque queremos ver e viver a Itália, e não Nova York".
A proibição se aplica sobre os novos negócios localizados dentro dos limites do centro histórico da cidade, cercado por muros, com seus 8 mil habitantes, e pouco menor do que a área de Lucca, com seus 86 mil moradores e muitos restaurantes de fast food.
Toda a discussão tem sido boa para os negócios, diz Mohammad Riats, dono paquistanês da Doner Kebab Casalgrande no centro de Lucca. A parada na loja é popular principalmente entre os estudantes. Enquanto pedia um kebab, Alessandro Tucci, 22, disse que era contra a proibição. "É ridículo", diz ele. "As pessoas devem ter o direito de cozinhar aquilo que querem comer".
Alguns dos críticos de culinária mais respeitados da Itália concordam.
"É loucura hoje em dia colocar proibições sobre kebabs, hambúrgueres, cachorros-quentes", diz Davide Paolini, crítico de culinária para o Il Sole 24 Ore e autor do blog Gastronauta, que explora a cozinha regional italiana. "Hoje, esses alimentos não estão mais ligados a nenhuma região em particular. Eles pertencem ao mundo".
Única cidade da Toscana com um governo tradicionalmente de centro-direita, Lucca tem um costume antigo e ferrenho de autopreservação. Quando a Itália foi unificada em 1860, os moradores de Lucca juntaram seus recursos e compraram a cidade murada do nascente Estado italiano, que tinha a intenção de derrubá-la.
"Os habitantes de Lucca são muito conservadores", diz Franco Barbieri, sócio do La Buca di Sant'Antonio, um dos restaurantes mais aclamados da cidade, cujas especialidades incluem ravióli super leve com ricota e abobrinha, pappardelle com molho de carne de caça e torta semidoce de farinha de castanha portuguesa.
"É porque somos etruscos, não romanos", ele acrescenta.
Atrás do balcão de Madeira de uma padaria chique que pertence à família há cinco gerações e tem como especialidade o "buccellato", um pão redondo com sabor de erva-doce, Marino Tadeucci, 24, diz que concorda com a proibição "até certo ponto".
Mas ele achou estranho a cidade proibir os fast foods e permitir estabelecimentos que vendem roupas íntimas e bugigangas de plástico.
"É difícil continuar sendo um oásis", diz Roberto Isola, dono da mercearia de luxo Delicatezze, detrás de uma seleção de carnes, queijos, manteiga recém-batida e banha de porco aromatizada com trufas, tudo de dar água na boca.”
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