terça-feira, 24 de março de 2009

COMO NASCE UM TIRANO

Li hoje no site “Vi o Mundo”, do jornalista Luiz Carlos Azenha, o seguinte artigo de Evaldo Novelini, postado originariamente no blog Alfarrábios:

NÃO FOI POR FALTA DE AVISO.

“Em 8 de maio de 2002, atônito com a recente nomeação de Gilmar Ferreira Mendes, ex-advogado-geral da União no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o jurista Dalmo de Abreu Dallari escreveu corajoso artigo na Folha de S. Paulo.

Intitulado “DEGRADAÇÃO DO JUDICIÁRIO”, o arrazoado do professor de Direito concitava colegas, advogados, bacharéis e magistrados à reação:

A comunidade jurídica sabe quem é o indicado e não pode assistir calada e submissa à consumação dessa escolha inadequada.

E previa tempos sombrios caso nada fosse feito:

Sem o respeito aos direitos e aos órgãos e instituições encarregados de protegê-los, o que resta é a lei do mais forte, do mais atrevido, do mais astucioso, do mais oportunista, do mais demagogo, do mais distanciado da ética.

Havia motivos de sobra, como se verá, para a perplexidade do professor ante a nomeação de Mendes.

Mas, à época, vozes como a de Dallari eram exceções.

A regra eram espantosos panegíricos. Mendes era verdadeiramente idolatrado pelos veículos de comunicação.

Deu-se então que, em 23 de abril de 2008, Gilmar Mendes ascendeu à presidência do Supremo Tribunal Federal.

E deu início a uma das mais polêmicas e turbulentas gestões da história da Suprema Corte.

Com truculência nada peculiar a um magistrado, atropelou recomendações, infringiu normas, desrespeitou códigos.

Mendes não havia completado ainda um ano no cargo e a imagem do STF estava consideravelmente afetada.

Estimulado em grande parte pela mídia nativa e seus personagens mais famosos, os patrões ignaros e os funcionários sabujos, Gilmar Mendes mandou às favas o rigor e a fleuma necessários para o exercício da função.

Intrometer-se em qualquer assunto e opinar sobre todos os assuntos era pinto para ele. Não perdia uma única oportunidade.

Tanto fez que chamou a atenção da opinião pública.

No início deste ano, o ombudsman da Folha de S. Paulo, Carlos Eduardo Lins da Silva, cotejou o comportamento de Mendes com o de seu colega norte-americano, John Roberts. E apontou uma certa promiscuidade no trato do magistrado pelos jornalistas tupiniquins:

Mendes é diferente, em especial neste jornal, que lhe confere status de celebridade, nos seus piores aspectos. Em 50 textos em 2008, ele aparece fazendo declarações, muitas de cunho político, algumas repetidas duas vezes com títulos semelhantes ("o habeas corpus é como o ar") no espaço de quatro dias (12 e 16 de dezembro).

Disse mais o ombudsman, lembrando o barulho que causou a única - eu disse única - declaração de Roberts à imprensa norte-americana fora dos autos:

Se Roberts e a rede ABC foram atacados por ele ter se lembrado de seus dias como jogador de futebol no colégio e demonstrado camaradagem excessiva com a entrevistadora, o que se diria se aparecesse como a revista "Serafina" deste jornal retratou Mendes em 8 de junho, em reportagem chamada "O amor e o poder", em que ele e sua mulher posavam na intimidade do lar como se fossem astros de cinema?

O debute de Mendes junto ao grande público, no entanto, não se deu pelas páginas dos jornais.

Ele veio na onda da Operação Satiagraha, da Polícia Federal, que conseguiu mandar o banqueiro Daniel Dantas, acusado de infringir “quase meio Código Penal”, segundo definição da insuspeita jornalista Lucia Hippolito, duas vezes para a cadeia.

De onde, pelo mesmo número de vezes, Mendes o libertou pela concessão de habeas corpus – o segundo, menos de 48 horas após o primeiro, num flagrante atropelamento do ordenamento jurídico nacional.

Não bastasse isso, reportagem escrita por Leandro Fortes na revista semanal CartaCapital, que circulou em 19 de novembro de 2008, expôs um Mendes político, truculento e lobista, principalmente para fazer sua empresa vencer concorrências em órgãos públicos sem licitação.

Se os arroubos verbais do presidente do Supremo sobre qualquer assunto alçado à ordem do dia pela mídia já eram suficientemente temerosos para a democracia brasileira, que dizer então quando ele, ignorando a recomendação explícita do regimento orgânico da magistratura, passou a criticar abertamente a decisão do juiz Fausto de Sanctis de prender Dantas?

Vale salientar que o Estatuto da Magistratura é claro. O parágrafo terceiro de seu parágrafo 36 veda explicitamente ao juiz “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais, ressalvada a crítica nos autos e em obras técnicas ou no exercício do magistério”.

Mas quem haveria de repreendê-lo?

Certamente não seria o Conselho Nacional da Justiça.

Por uma razão bastante simples.

Criado para, entre outras funções, “zelar pela autonomia do Poder Judiciário e pelo cumprimento do Estatuto da Magistratura”, o CNJ é presidido exatamente por...

... Gilmar Ferreira Mendes.

Sem nenhum freio para tolher seus impulsos autoritários e com poder de sobra, passou a ser ainda mais incensado pela imprensa, bajulado publicamente por deputados e senadores e temido pelo presidente da República.

Seu desrespeito aos escrúpulos do cargo chegou ao ápice no final do ano passado.

Deu-se que a revista semanal Veja, na edição que circulou em 3 de setembro de 2008, trouxe uma gravíssima denúncia – se verdadeira fosse.

Sem apresentar nenhuma evidência ou prova, a revista dizia que agentes da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) haviam interceptado uma angelical conversa de Mendes com o senador Demóstenes Torres (DEM).

Transformado em títere de uma revista, acusada de ser a joia da coroa do que se convencionou chamar de Sistema Dantas de Comunicação, Mendes abalou a harmonia entre os poderes ao, em sua enésima entrevista coletiva, chamar o presidente Lula “às falas”.

Só não causou uma crise institucional de proporções indefiníveis porque Lula, conciliador ao extremo, resolveu rezar a cartilha da turma.

Como até hoje o áudio do grampo não apareceu, jornalistas premiados, como Luís Nassif, suspeitam que a denúncia pode ter sido uma fraude arquitetada em conluio por Mendes, Torres e Veja para destruir Paulo Lacerda, o ex-superintendente da PF que ousara investigar Daniel Dantas.

Mas neste cenário kafkiano, nem todos se vergam às vontades de Mendes. E contribuem, assim, para mostrar a mais perigosa faceta do presidente do STF.

A de censor.

O que era uma pálida desconfiança virou uma verdade incontestável quando alguns jornalistas destoaram do coro grego estabelecido pela imprensa para lidar com Mendes.

Altino Machado, do portal Terra, foi o primeiro a sentir o tacape de Mendes.

Na sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009, durante entrevista coletiva concedida por Mendes no Acre, Machado quis saber:

- Ministro, o senhor tem se manifestado constantemente em defesa da propriedade, contra as invasões, mas em nenhum momento o senhor se manifestou contra dezenas, centenas de assassinatos de lideranças de trabalhadores rurais. Isso decorre do fato de o senhor ser ministro ou pecuarista?

Visivelmente irritado, o presidente do STF classificou a pergunta como “desrespeitosa”, admoestou o jornalista a tomar cuidado com determinadas questões e determinou a um assessor que avisasse à Polícia Federal para monitorar o repórter:

- Fiquem de olho naquele moço, pois ele é muito perigoso.

Menos de uma semana depois, Mendes agia nas sombras para tirar do ar, da TV Câmara, o programa Comitê da Imprensa, onde os jornalistas Leandro Fortes, de CartaCapital, e Jailton de Carvalho, de O Globo, criticavam a cobertura da mídia sobre a Satiagraha.

Em carta aberta aos jornalistas, Fortes demonstrou estupefação:

- Qual foi minha surpresa ao ser informado por alguns colegas, na quarta-feira passada, dia 18 de março, exatamente quando completei 43 anos (23 dos quais dedicados ao jornalismo), que o link para o programa havia sido retirado da internet, sem que me fosse dada nenhuma explicação. Aliás, nem a mim, nem aos contribuintes e cidadãos brasileiros. Apurar o evento, contudo, não foi muito difícil: irritado com o teor do programa, o ministro Gilmar Mendes telefonou ao presidente da Câmara dos Deputados, Michel Temer, do PMDB de São Paulo, e pediu a retirada do conteúdo da página da internet e a suspensão da veiculação na grade da TV Câmara. O pedido de Mendes foi prontamente atendido.

Eis, em todas as suas nuanças, um magistrado transformado em tirano.”

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