O chileno, de modo geral, é muito preocupado em parecer o que não é. É frágil. Quer parecer "europeu, alto, branco, inteligente e civilizado, diferente do resto da América Latina". Para eles, no Chile não houve negros e os índios são heróis vencidos, desaparecidos. Contudo, o povo (não as "elites") evidencia sua forte origem mestiça indígena, típica de toda a região andina. Por escusos e maquiavélicos interesses externos, especialmente norte-americanos, seu ego foi inflado, desde os anos 70 até hoje, como sendo um "modelo", para os demais latinos, de civilização da direita, vitrine do "avançado neoliberalismo" (lá plantado à força por Pinochet e seus "Chicago boys"). Esse modelo provou ser ruinoso para a Argentina, Brasil e outros que nele acreditaram. A recente catástrofe faz aflorar esses conflitos existenciais dos chilenos, como no caso dos saques idênticos aos dos haitianos.
Essas considerações me vieram à cabeça ao ler o seguinte texto do jornalista Luiz Carlos Azenha publicado hoje (03/03) no seu portal "Vi o mundo". Transcrevo:
"O perfume de Nero
por Luiz Carlos Azenha, no R7
Concepción – Visitar a segunda maior cidade do Chile, ainda que por apenas algumas horas, é uma aula sobre as limitações do poder governamental, especialmente quando submetido ao stress de um terremoto devastador.
Deixamos Santiago para a viagem de ida e volta de 900 km às três da madrugada. Era preciso retornar a capital, ou pelo menos às proximidades dela, em tempo para transmitir o material para o Brasil.
As equipes de televisão de hoje em dia são reféns do celular e da energia. Sem um deles, nossa capacidade de captar e disseminar notícias fica capenga. Sem os dois, torna-se quase impraticável.
Pois três dias depois do terremoto, pelos padrões da atualidade, a região centro-sul do Chile (Santiago, a capital, fica mais ao norte) continua em uma espécie de zona morta.
A energia ainda não foi reestabelecida. E, por isso, as pessoas já não conseguem carregar os celulares. Pouco faria diferença, já que não há sinal disponível.
Sem energia, as fábricas não funcionam, nem as lojas. As bombas de combustível não funcionam. Não há transporte, nem público, nem individual. Toda a comida da geladeira a essa altura já estragou e, a não ser que você produza a sua própria comida, logo corre o risco de passar fome.
Sem energia, as bombas de água apagam e você também precisa arranjar água para não correr o risco de morrer.
Agora coloque isso tudo em um país que tem uma única grande rodovia ligando o norte ao sul, ao lado da qual passa a ferrovia. Submeta ambas a um terremoto de 8,8 pontos na escala Richter.
Foi por aí que viajamos, desviando dos escombros.
Talvez sobreviver na zona rural, nessas condições, não seja um grande desafio. Mas junte tudo isso a uma cidade de 500 mil habitantes e você está em Concepción.
Nas últimas horas o governo do Chile decretou estado de catástrofe em duas regiões do país, uma das quais inclui Concepción. É uma medida de exceção que dá amplos poderes policiais ao exército, que estabeleceu um toque de recolher na segunda maior cidade do Chile das seis da tarde ao meio dia.
Talvez tenha sido o único e último recurso. Quando cheguei à cidade, dei de cara com o problema: um grupo de cerca de 100 saqueadores promovia a limpa em um armazém.
Alguma coisa está seriamente errada em uma cidade quando um repórter estrangeiro é procurado por moradores em busca de ajuda. Foi o que aconteceu meia dúzia de vezes comigo nas ruas de Concepción.
Soldados guardavam postos de gasolina, onde mulheres formavam fila de um lado e homens de outro, para comprar uma cota máxima de cerca de 15 litros. Homens, mulheres e crianças tiravam água para beber de um chafariz. Em todo canto portas do comércio eram arrombadas.
O único sinal exemplar da presença do governo — e da mídia — era no edifício de 14 andares que partiu ao meio e desabou. Ali, o trabalho heróico dos bombeiros para retirar pessoas dos escombros era acompanhado por uma dúzia de repórteres famintos por uma história de superação.
Era como se, numa Roma em chamas, alguém estivesse interessado apenas em cobrir os “bastidores” da vida de Nero.
Alguns jornalistas chilenos consideram depreciativo para o país a cobertura dos saques, atribuídos simplesmente aos “vândalos” e tomam a exceção como regra: para cada pessoa que sai de uma loja com um fogão, há centenas que saem com comida. É como se esses colegas tivessem decidido criar um código de conduta para os saqueadores: pasta de dentes pode?
Mira-se no acessório para desviar do essencial: o que leva uma pessoa a descartar completamente as normas de conduta socialmente aceitáveis? É a mera necessidade ou não dizem respeito a ela?
Mas suspeito que esse tipo de debate é perigoso, porque pode nos levar a questionar quem criou aquelas normas. E, afinal, a quem elas servem? Para não falar em coisas mais “prosaicas”, como a obrigação governamental de oferecer conforto a seus cidadãos em situações de calamidade pública.
É mais conveniente fazer como uma autoridade chilena, que pretende dar pena de roubo para furtos cometidos depois de terremotos. Qual é mesmo o perfume preferido de Nero?"
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