sábado, 5 de fevereiro de 2011

ENTREVISTA COM O EX-MINISTRO DA SAÚDE JOSÉ GOMES TEMPORÃO


Do blog de Luis Nassif

RESOLVER PROBLEMAS DO SUS APENAS COM GESTÃO É VISÃO ROMÂNTICA

“Durante o discurso que fez na cerimônia de transmissão de cargo, no dia 03/01, José Gomes Temporão, ministro da Saúde no segundo governo Lula, afirmou que o país está longe de ter um sistema universal de saúde que seja considerado, por todos, patrimônio coletivo de grande valor, como ocorre no Canadá e em partes da Europa. Em seguida, explicou como a relação, confusa, entre grande mídia e saúde pública, é um dos fatores que obscurecem a percepção da população, não auxiliando na tomada de consciência para a discussão de problemas reais.

Para exemplificar essa relação, utilizou as pesquisas que medem a qualidade do SUS (Sistema Único de Saúde). "Pesquisas não especializadas recentemente divulgadas, e metodologicamente frágeis, entrevistam duas mil pessoas e dão o veredito: a saúde vai mal. Por outro lado, o IBGE, ao entrevistar 340 mil pessoas durante a PNAD 2008, revela outro resultado. Ao perguntar aos usuários qual a sua avaliação do último atendimento procurado no sistema de saúde, obteve como resposta que 85% deles avaliaram o atendimento como bom ou ótimo", disse.

Há pouco mais de um mês fora do governo, Temporão pode agora colocar um olhar de quem está de fora, sobre as questões mais urgentes do sistema de saúde brasileiro, que, para ele, caminha perigosamente para um processo de americanização. Em entrevista ao “Brasilianas.org” por telefone, Temporão mostra-se preocupado com "certa reificação da gestão". Segundo o ministro, imaginar que os problemas do SUS podem ser resolvidos apenas com gestão é alimentar uma "visão romântica". "O subfinanciamento é um problema estrutural muito mais importante do que o problema de gestão", analisa.

Além de um balanço sobre os principais pontos de sua gestão, a primeira parte da entrevista também dedica espaço para as fundações estatais, defendidas por Temporão. Diante da polêmica que se criou, principalmente com relação à proposta de contratações CLT, o ministro afirma: "Em prestação de serviços de saúde, [a estabilidade no emprego público] pode ser um fator de acomodação e de baixo desempenho".

Confira:

--Brasilianas.org – O senhor poderia fazer um balanço dos principais avanços do SUS na sua gestão e apontar quais os desafios que identifica para o próximo governo?

José Gomes Temporão –
A saúde tem dimensões extremamente heterogêneas e diversificadas, mas eu destacaria, neste período referente ao presidente Lula, em primeiro lugar, o seguinte. Venho de uma geração de sanitaristas, que foi formada durante a ditadura militar; naquele período, 1970, nós desenvolvemos um conjunto de propostas que foi desembocar no capítulo da saúde na constituinte.

Nesse processo, é muito claro o conceito de determinação social da saúde, ou seja, refutamos, veementemente, uma visão tecnológica da medicina. A saúde é socialmente determinada e tem a ver diretamente com a maneira como a riqueza é distribuída na sociedade por meio das várias classes sociais. A saúde é um reflexo direto do trabalho, da renda, da habitação, do acesso à cultura e à educação, nutrição, lazer, saneamento.

O governo do presidente Lula foi um governo que demarcou, em relação a outros governos, uma posição importante do ponto de vista da redução da desigualdade, criação de nova classe média, criação de empregos, acesso à moradia. Podemos falar hoje, com muito orgulho, que a desnutrição grave, no Brasil, é uma questão do passado. Isso tem um impacto na saúde bastante importante.

No caso da mortalidade infantil, vemos que ela vem caindo de maneira sustentável nas últimas décadas no país. Há uma relação muito estreita, de um lado com a oferta de redes de saúde, atenção básica, cuidados com o pré-natal e o parto, mas uma relação também muito sólida com o grau de escolaridade da mãe, o grau de informação que a família tem. Então, dou exemplo de outras áreas que impactam diretamente no setor de saúde.

O segundo ponto é que, durante o governo Lula, nós estruturamos, de fato, a implantação de uma gigantesca rede capilarizada em todo o Brasil de atendimento à população, que começa, a partir dessa gestão, a se organizar no território. Refiro-me ao programa ‘Saúde da Família’, que durante 8 anos de governo cresceu 63% - 100 milhões de brasileiro são atendidos por 30 mil equipes em todo o Brasil.

--Como é formada a rede capilarizada?

Ela se articula e se integra com um política nova, que é o SAMU [Serviço de Atendimento Móvel de Urgência], que está próximo à universalização, ou seja, atender a todos os brasileiros, aquela ambulância que atende em casa. Tem também o ‘Brasil Sorridente’, que teve crescimento gigantesco e hoje já atende 80 milhões de brasileiros, com atenção à saúde bucal. Há o ‘Centro de Atenção Psicossocial’, que é uma ruptura com o modelo asilar da atenção psiquiátrica. Em 2002, 75% dos gastos em saúde mental era em hospitais, asilos e manicômios; hoje, 75% dos gastos em atenção à saúde mental são gastos em atenção comunitária. A internação existe, na crise, mas não como antes, quando as pessoas ficavam confinadas.

Cito também o ‘Núcleo de Apoio da Família’, que são áreas com especialistas, como nutricionistas, psicólogos, fisioterapeutas, e a ‘Farmácia Popular’, que deu muito acesso a medicamentos, principalmente de doenças crônicas. Então, há organização e estruturação dessa rede de atenção integrada no território. Tem também as UPAs [Unidades de Pronto Atendimento], integradas com os hospitais gerais de emergência, que, até 2013, teremos mil unidades de pronto atendimento 24 horas.

O terceiro destaque que dou é tudo o que tem a ver com saúde sexual e reprodutiva. Houve uma gigantesca ampliação do acesso aos métodos anticonceptivos. Em 2002, o governo federal distribuiu 8 milhões de cartelas de pílulas; ano passado, distribuímos 50 milhões. Sobre o acesso ao preservativo masculino, hoje o Brasil é o maior comprador mundial de camisinhas em todo o mundo. Só no ano passado foram 500 milhões de preservativos masculinos.

Outro ponto é a política de estimulo à proteção das mulheres em situação de abortamento, com discussão que eu diria que foi bastante importante, nos dois primeiros anos da minha gestão, em relação ao aborto. Destaco mais um ponto, que eu gostaria de chamar de ‘complexo industrial da saúde’. É uma coisa absolutamente inovadora, que é uma política social, fundamental para a melhoria das condições, mas ao mesmo tempo é um espaço econômico dos mais importantes no mundo hoje. Estou falando de 10% do PIB, de 10 milhões de empregos diretos no Brasil; a saúde atua em campos de tecnologia de fronteira, nanotecnologia, microeletrônica, novos materiais. E o ministério, em conjunto com o setor privado, o BNDES e os laboratórios públicos, iniciou processo de internalização de novas tecnologias, de produção de novos insumos e medicamentos, através de parcerias público-privadas. Antes, isso era tratado apenas no âmbito do Ministério da Ciência e Tecnologia.

--Alguns analistas dizem que o governo da presidente Dilma será de gestão, enquanto que o do presidente Lula foi mais voltado para a política. O senhor acredita que os problemas que ainda persistem na área da saúde são de caráter gerencial? Como o senhor estabeleceu relação com outros ministérios?

A obrigação de todo gestor público é usar melhor os recursos que dispõe. Eu fico um pouco preocupado com certa reificação da gestão como paliativo para todos os problemas, numa palavra que eu odeio, “choque de gestão”. Acho que essa questão, que chegou atrasada no setor público, já está sendo revista e repensada no setor privado. Claro que você sempre pode, e deve, buscar o melhor arranjo organizacional para gastar melhor; no caso da saúde, contratar melhor, comprar melhor, racionalizar os serviços, usar a tecnologia da informação para que o cidadão possa ter acesso a consultas feitas com mais rapidez. Tudo isso é possível e deve ser feito.

Agora, imaginar que você vai resolver o problema do SUS apenas com gestão, ou, colocando melhor, os problemas de desigualdade, falta de cobertura, baixa qualidade, apenas imaginando que você pode usar melhor os recursos e obter resultados perceptíveis na ponta pela população, eu acho que é uma visão romântica. Essa equação não se resolve assim; ela se resolve tratando gestão e financiamento como prioridades no mesmo nível de igualdade. Diria até que o financiamento é o grande problema, o subfinanciamento é um problema estrutural muito mais importante do que o problema de gestão.

--Sim, mas recentemente a presidente Dilma disse que não há clima para a criação de um novo imposto, como a CPMF, para financiar a saúde. Ela disse, ainda, que a limitação de recursos é uma forma de conhecer a capacidade gerencial de um ministro.

Bom, a partir dessa frase, então eu tive um desempenho estupendo, porque se você ver o relatório de gestão, o que nós fizemos com os recursos escassos, tivemos um desempenho extraordinário. Mas acontece que desempenho extraordinário tem que ser percebido dependendo da ótica de quem o vê e o analisa.

Estou muito preocupado com a visão do cidadão que precisa de atendimento lá na ponta, de qualidade e de acesso, além de remédios mais baratos, serviços melhores e profissionais mais bem remunerados, alegres e satisfeitos com o trabalho que estão desenvolvendo. E isso não está acontecendo, e um dos principais fatores de impedimento desse processo é a asfixia crônica do SUS, que existe desde 1990, quando foi criado. Percebo, e aí estou falando agora como professor da Fiocruz, que estamos caminhando perigosamente para uma americanização do sistema de saúde brasileiro. Há uma degradação lenta e continua do setor público e uma colocação do setor privado, como se o mercado de planos de saúde pudesse dar conta dessa realidade.

--Vamos na contramão do que acontece na Inglaterra, por exemplo, onde a medicina está mais socializada.

Veja os Estados Unidos, que é um paradigma da medicina corporativa. Quando você pega as duas principais referências públicas no mundo, Inglaterra, como a referencia positiva, e EUA, como a referencia negativa, os EUA gastam 17% do PIB em saúde, e a Inglaterra, 8%. E os indicadores de saúde e de satisfação da Inglaterra são muito superiores aos dos EUA. O presidente Barack Obama enfrenta séria resistência do estado médico para implementar mudanças. E o Brasil já tem a resposta para enfrentar o problema, que é o SUS. E fragilizá-lo é paradoxal, porque você estaria indo na contramão do que se discute hoje no mundo, que á a maior superioridade dos sistemas universais do acesso igualitário para garantir saúde e equilibrar, do ponto de vista financeiro, a qualidade e o acesso.

--Sobre o modelo de fundações estatais, defendido exaustivamente pelo senhor, em que ele se difere das organizações sociais estaduais e por que não deve ser considerado privatização da saúde pública?

A principal diferença entre uma organização social e uma fundação estatal é que esta última é um ente público, e a outra é ente privado. Na organização social, você transfere a um ente privado a gestão de um serviço ou uma rede.

--Mas por que a fundação estatal não foi para frente na sua gestão?

Por vários motivos, mas basicamente pela reação das corporações e os trabalhadores, que se colocaram contra, com um falso discurso de que isso significa privatização. Na realidade, é o contrário. Em muitas situações, o setor público está privatizado por interesses profissionais; a fundação estatal visa a garantir que os serviços de um hospital, ou rede, continuem públicos, mas com administração com critérios a partir de personalização da gestão, indicadores de desempenho.

A grande polêmica foi com relação ao contrato de CLT. Ao meu ver, a estabilidade no emprego público é altamente positiva em determinadas carreiras de Estado, como o judiciário, a Receita Federal, o Polícia Federal, órgãos de fiscalização e controle e agências reguladoras. Agora, em prestação de serviços de saúde, pode ser fator de acomodação e de baixo desempenho. Então, a fundação estatal vem para resolver uma série de problemas. Não consegui fazer a proposta avançar no governo federal, mas ela foi adotada e avança com sucesso em muitos estados brasileiros, como Pernambuco, Bahia, por meio do Jaques Wagner, no Rio de Janeiro, no Espírito Santo.

--Como se resolveria os problemas em ralação aos repasses de recursos, transparência?

Isso é um problema, realmente. Mas a fundação, sendo pública, é submetida a todos os controles do CGU, do TCU. Todos os princípios da administração pública são preservados. O caso das organizações sociais é distinto, porque elas recebem, através de um contrato de gestão, recursos públicos, mas são entidades privadas. Então tem toda uma diferença, e deve haver uma discussão acadêmica e política sobre o que seria melhor.

Mas uma coisa curiosa que queria chamar atenção é que, na ponta, os prefeitos, os secretários de saúde estão desesperados, buscando maior eficiência dos serviços. A própria presidente coloca, temos que fazer mais com os recursos que temos. Dentro da atual estrutura da administração pública, impossível. Todos os estudos e indicadores recentes do Banco Mundial mostram isso, deficiência brutal dos hospitais públicos, caros e ineficientes, os profissionais não cumprem a carga horária, pois são muito mal remunerados. Não tive praticamente nenhum apoio nessa batalha, o Congresso Nacional não apressou a matéria, engavetou, mas me consola, sim, o fato de que o tema prosperou em vários estados e municípios.

--O senhor falou de municípios e estados. Nos últimos anos, a União diminuiu sua participação nos gastos com saúde. Em 1980, os gastos eram de 75% e, em 2005, 49%; enquanto que os municípios e estados saíram de 25%, em 1980, para 51% em 2005. Isso não deveria ser revertido?

Precisamos colocar um novo olhar nesta questão. Em 1988, nós tivemos uma redistribuição de recursos financeiros, de fontes de recursos, para estados e municípios, e isso tem que ser levado em conta. De fato, quando você analisa o orçamento do Ministério da Saúde, em relação ao percentual do PIB e outros gastos, é evidente que a própria pressão da população e do gestor, na ponta – os prefeitos hoje, que são obrigados pela lei a gastar 15% das suas receitas, não tem nenhum município com mais de 50 mil habitantes que não esteja gastando de 20% a 25%.

Com os estados, por outro lado, ocorre diferente: a maioria cumpre os 12% que estabelece, mas muitos não cumprem, pela falta de regulamentação do que é gasto com saúde. É a história da Emenda 29 – a União se sentiu confortável dentro da regra que foi aprovada em 2000, ou seja, de que o governo federal corrija o seu orçamento a partir da variação nominal do PIB, isto é, o gasto do ano anterior corrigido pela inflação, mais o crescimento econômico. Isso é, evidentemente, insuficiente.

Um dado contundente do IBGE mostra que, no Brasil, só 40% dos gastos em saúde são públicos, e 60% são gastos das empresas e das famílias. Enquanto as famílias de classe média que têm planos de saúde gastaram, em média, R$ 1.400 per capita/ano, o SUS gastou algo equivalente a R$ 600 per capita/ano. Mas também se deve considerar que o SUS tem encargos em torno de todas as campanhas de vacinação, transplantes, acesso a medicamentos de doenças crônicas, tratamento retroviral para quem vive com AIDS, tudo isso onera o SUS.

--Brasilianas.org - No final de dezembro do ano passado, foram publicadas duas portarias, que passaram a valer no início de janeiro, reduzindo o valor de tratamentos de pacientes do SUS com linfoma e leucemia mieloide crônica. As reduções vão de 9% a 22%. Isso se deveu à falta de verba, ou a uma interferência do judiciário?

José Gomes Temporão -
Nem um nem outra. Nesse caso específico, é o reflexo de que nós fizemos acordos com a indústria farmacêutica e reduzimos drasticamente o preço pelo qual o ministério pagava por esses medicamentos. Isso que se falou de que deixamos de repassar verba é um não-fato. Fui obrigado a reduzir o repasse, porque agora os hospitais gastam muito menos com o pagamento dos medicamentos.

No caso de medicamentos que são monopólio, feitos por um único produtor, nós centralizamos a compra. Antes, a compra era feita diretamente pelos hospitais, e é evidente que cada hospital pagava de um jeito ou de outro. E quando centralizamos, obrigamos os laboratórios a fazerem preços mais interessantes. No caso de um único produtor, não se faz licitação, por razões óbvias.

--Como o senhor avalia o movimento dos conselhos de saúde e também das discussões que permeiam as redes sociais e as conferências?

O setor de saúde foi que liderou esse processo de conferências e conselhos, tudo isso começou na saúde, outros setores foram, depois, copiando e adaptando. É uma experiência brasileira, extremamente relevante, não só as conferências, que são periódicas, a cada quatro anos, como os conselhos, municipais, estaduais e o nacional, acompanham, fiscalizam.

Eu vejo e muitos estudos mostram que há necessidade de uma revisão e reformulação profunda, porque as conferências acabaram se transformando em longos e custosos debates inócuos, com produção de centenas de "decisões" e propostas que nunca são viabilizadas, porque o relatório final é absolutamente fragmentado muitas vezes. E os conselhos, que, a meu ver, foram tomados por corporações e grupos políticos.

--O senhor poderia dar um exemplo?

O conselheiro muitas vezes está ali para defender interesses de grupos e facções de corporações. É um risco, que acontece em todo tipo de processo, e me parece que tanto o modelo de conferência, como o modelo de conselho, merece uma revisão. Um exemplo curioso está no Conselho Nacional de Saúde (CNS). Não sei se você tem essa informação, mas os médicos não participam mais do conselho.

Eles se retiraram, porque no processo de escolha na eleição dos representantes desses profissionais de saúde, colocaram os médicos, que, com certeza, são a profissão mais importante no setor de saúde, numa posição secundária. Qual o sentido de um Conselho Nacional de Saúde que não tem médicos? Não tem sentido.

--Queria aproveitar para perguntar o que o senhor pensa sobre o embate, comum nos ministérios, que há entre o profissional e o político. No seu caso, que é médico, houve pressões políticas, judiciárias até, que impediram medidas de caráter mais técnico. Como se dão os embates no ministério?

Eu sou sanitarista, professor há 30 anos na Fundação Oswaldo Cruz [Fiocruz], mas ao mesmo tempo sou político, porque venho da política de saúde e militei no movimento sanitário, também fui militante do Partido Comunista Brasileiro. Na realidade, depende da visão de política que você tem. A minha visão de política é uma visão em que a saúde, o sistema universal de acesso é a questão central.

--Sim, a política está em tudo, na verdade.

Sim, exatamente. E quando você coloca outros interesses, outras visões, você entra no mérito se são justas ou injustas. Posso dizer, tranquilamente, que montei uma equipe bastante profissional; meus secretários, diretores são pessoas altamente qualificadas. Houve, sim, embates e tentativas de nomes que, a meu ver, não tinham o perfil adequado. Nunca me interessei pela vinculação partidária de ninguém, acho isso uma coisa pobre, temos que olhar o currículo e a experiência de formação de cada um. Com toda a franqueza, essa não foi uma questão que afetou minha gestão, apesar do problema da FUNASA, uma outra questão.

--Mas no caso das fundações, houve embates dentro do próprio governo

Mas o curioso é que, no caso das fundações, tanto o Ministério do Planejamento, quanto outros ministérios, como o da Educação e o da Ciência e Tecnologia, apoiaram. Inclusive, fui várias vezes ao Congresso, acompanhado desses ministros, para me reunir com Michel Temer, para cobrar a votação, mas nada acontecia. [As posições contrárias às fundações] podiam até ser parte do governo, mas não eram posições do governo como um todo. Havia muita pressão também de partidos e grupos de parlamentares que se colocavam contrários.

Mas acho que estamos condenados a lidar com essa discussão, que não é brasileira, mas sim mundial. Espanha, Portugal e Inglaterra estão lidando com essa questão e estão repensando e revendo as matérias e nós, infelizmente, estamos mantendo estruturas arcaicas dos anos 1950 na gestão de hospitais públicos.

--Em relação ao Cartão SUS e o Sistema de Ressarcimento ao SUS, dois pontos que foram anunciados, mas que não vingaram, gostaria de saber quais as razões dos impedimentos?

O ressarcimento não foi julgado no Supremo Tribunal Federal, e toda e qualquer tentativa de cobrança do ministério, na maioria das vezes, os planos e seguros recorrem. A ANS [Agência Nacional de Saúde] desenvolveu novo sistema eletrônico de ressarcimento, houve uma série de problemas operacionais, que impediram que o sistema operasse plenamente como nós esperávamos, em 2009. E agora em 2010, o processo foi retomado, mas ainda está muito longe do que seria necessário. Essa é realmente questão de responsabilidade da agência, é responsabilidade dela, constitucional, operar o ressarcimento.

Mas quero destacar que há uma ação direta de inconstitucionalidade no Supremo, e que ele não se posicionou. Na verdade, o Supremo negou a liminar, mas a matéria ainda vai ser julgada e, hoje mesmo, lendo o jornal, vi a manifestação de um médico se posicionando contra o ressarcimento. Existe grande polêmica, e minha visão pessoal é que sim, o SUS deve ser ressarcido por esses gastos. E esse é um ponto que deixou a desejar, pois minha meta era sair do governo com o processo de ressarcimento plenamente implementado, e isso não aconteceu.

--Isso se relaciona, de carta forma, ao que se fará no Estado de São Paulo, que passará a oferecer 25% dos leitos do SUS para os planos de saúde? O senhor é contra isso, como já manifestou, mas a idéia de ressarcimento não é semelhante?

Aí tem outra questão por trás, que é mais complexa. Isso é a falta de recursos financeiros e a busca de uma receita adicional ao ceder parte de sua capacidade hospitalar. O ressarcimento é o seguinte. Cada ação executada por uma pessoa que tem plano de seguro, o plano de seguro deve devolver, em recursos financeiros, o gasto dessa cobertura, seja internação, seja exames ou procedimentos de alta complexidade. O processo era todo feito, acredite se quiser, em papel; esses processos iam para os municípios e demoravam meses, anos.

Quando estava tudo pronto e se realizavam as cobranças, os planos de saúde entravam na justiça alegando que eram homônimos, discordando e dizendo que não havia cobertura. E esse emaranhado de problemas burocráticos inviabilizava qualquer ressarcimento. O que nós fizemos foi criar um programa, tipo o da Receita Federal, via Internet, acabando com a papelada e encurtando tudo. E é esse processo que deveria ter entrado em 2009, mas que apenas agora, entre 2010 e 2011, vai começar a operar.

--E no caso do Cartão SUS?

Quando ele foi pensado, no início de 2000, havia, naquela época, uma tecnologia obsoleta, em relação ao que se tem hoje. Acabou mesmo não dando certo. O que fizemos nesse período, mesmo com muita gente criticando, foi não dar um passo sem que houvesse uma robusta proposta técnica muito amadurecida e discutida. Isso agora entreguei ao ministro Alexandre Padilha, para que ele possa tomar a decisão. É uma medida para melhorar a racionalidade e eficiência do sistema, mas não é simples de ser implementado num país de 190 milhões de pessoas. Mas, ao contrário de 2000, hoje temos uma tecnologia melhor, com computadores mais eficientes.

--Qual a recomendação mais urgente que o senhor passou para o novo ministro Alexandre Padilha?

Uma das coisas que eu mais me orgulho na minha gestão foi ter resgatado a questão do planejamento. E ao contrário de gestões anteriores, que trabalharam com algumas marcas, três ou quatro grandes projetos, o [programa] ‘Mais Saúde’, que elaboramos, é um robusto processo de planejamento estratégico, com metas, indicadores.

Então, o que passei para o ministro Padilha foi isso. Passei também o livro de encargos, uma inovação do governo do presidente Lula, que é um conjunto de indicadores e números sobre orçamentos, despesas e contratos, para que o novo ministro possa saber o que exatamente está recebendo. E, evidentemente, conversei com ele sobre temas mais candentes, como a questão da dengue, investimentos e políticas que devem ter continuidade. Por fim, me coloquei, evidentemente, à disposição dele, que montou uma equipe muito técnica, de altíssima qualidade, com secretários que são meus colegas e alguns até ex-alunos meus.

--Tem pretensões de voltar a atuar em governo?

Já me apresentei ao presidente da Fiocruz, onde voltarei a dar aula.”

FONTE: entrevista realizada por Bruno de Pierro, da Agência Dinheiro Vivo. Publicada no blog do jornalista Luis Nassif (http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-entrevista-do-blog-com-temporao-1#more
http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-entrevista-do-blog-com-temporao-2)

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