[O ingresso da Venezuela no Mercosul depende do Paraguai. Os Congressos dos demais países já concordaram]
PROCESSO DE INTEGRAÇÃO É SATISFATÓRIO, DIZ ESPECIALISTA
“O Tratado de Assunção, que deu origem ao Mercosul, completa duas décadas neste mês de março. Durante o período, o bloco ainda não conseguiu realizar o pleno processo de integração que visa instituir um mercado comum, que compreenda a livre circulação de mercadorias, de capitais e de trabalhadores, bem como a liberdade de estabelecimento e de concorrência entre os países que [atualmente] o compõem –Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai.
Para Eduardo Manuel Val, professor adjunto de Direito das Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense, vice-coordenador do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da mesma Casa, e coordenador do blog “Observatório do Mercosul”, a integração deve ser feita respeitando os mecanismos de flexibilidade, equilíbrio e gradualidade, presentes no Tratado de Assunção.
Em janeiro, por exemplo, a Argentina lançou mão desses mecanismos ao ampliar de 400 para 600 itens a lista de produtos submetidos à licença prévia de aprovação –segundo a Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (ABINEE), a medida afetará 50% das exportações do setor brasileiro.
"Esses três princípios -flexibilidade, equilíbrio e gradualidade- já foram aplicados anteriormente até mesmo pelo Brasil, Uruguai e Paraguai. Se tivesse um sistema mais rígido, como na época do Tratado de Montevidéu, de 1960, ou como o do Tratado de 1980 para ALADI [Associação Latino-Americana de Integração], todos muito fixos, correríamos o risco de frustrar expectativas de integração", explica.
Apesar das dificuldades enfrentadas para atingir os objetivos de liberalização do comércio de serviços e livre circulação de mão de obra e coordenação de políticas macroeconômicas regionais, o pesquisador é otimista quanto ao processo de integração do Mercosul, e lembra que a União Européia, com 60 anos, ainda discute pontos relativos à união dos países do bloco.
Val ressalta que o Mercosul não deve ser analisado hoje apenas do ponto de vista econômico, mas sim político, entendendo que esses vinte anos serviram para superar as diferenças culturais e políticas alimentadas no período militar, e para que o Brasil se transformasse em líder respeitado regionalmente.
O processo de integração deverá se aprofundar com a criação de agenda comum de políticas públicas regionais e com o fortalecimento do Parlamento do Mercosul, defende. Nos últimos oito anos, o comércio brasileiro com os países do Mercosul saltou de US$ 8 bilhões para US$ 35 bilhões –só as exportações passaram de US$ 2,9 bilhões para US$ 20,1.
-O bloco tem sido benéfico aos países do cone sul?
Absolutamente, não somente do ponto de vista econômico, com desenvolvimento substantivo, e aí as estatísticas são claras no crescimento do comércio, como do ponto de vista político. A gente não pode cair no erro de achar que o processo de integração é só econômico. Por trás da economia, temos divisões políticas e os países do Cone Sul têm constituído bloco geopolítico que hoje possui visibilidade no contexto internacional.
Como resolver as assimetrias entre os países?
Não acho que tenham de ser resolvidas. As assimetrias fazem parte de qualquer processo de integração. Na Europa, por exemplo, entre Luxemburgo, Alemanha e Itália existem enormes assimetrias. A questão não é eliminá-las, mas sim complementar as estruturas econômicas, fazer um sistema de articulação de políticas públicas em nível regional e, a partir daí, multiplicar os benefícios das diferenças.
As assimetrias não são, necessariamente, elementos negativos e podem potencializar a diversidade do bloco. É claro que isso deve ser construído a partir de alguns princípios que estão presentes no Tratado de Assunção, que deu origem ao Mercosul, como os de flexibilidade, equilíbrio e gradualidade. Então, gradualmente, de forma flexível e equilibrada, pode-se construir relação de compatibilidade e ir corrigindo as assimetrias que sejam negativas.
-A partir dessa afirmação, é possível dizer que é legítimo a Argentina não ter respeitado a alguns princípios do tratado com relação à entrada de produtos brasileiros no seu país, alegando proteger sua indústria em alguns setores?
Esses três princípios que eu te falei –de gradualidade, equilíbrio e flexibilidade– têm sido usados pela Argentina, mas já foram aplicados anteriormente até mesmo pelo Brasil, Uruguai e Paraguai.
Os Estados estão submetidos a contexto internacional muito variável –a exemplo da situação do petróleo subindo a mais de U$ 120 o barril. Logo, você tem situações conjunturais que exigem flexibilidade. Se você tivesse um sistema mais rígido, como na época do Tratado de Montevidéu, de 1960, ou como o Tratado de 1980 para ALADI [Associação Latino-Americana de Integração], todos muito fixos, correria o risco de frustrar expectativas de integração.
O princípio de flexibilidade te permite ter possibilidades de lidar em contextos que são conjunturalmente desfavoráveis, mas não vão contra as metas de integração.
-Existe tendência de integração energética do Bloco? Se sim, será fácil de ser aplicada?
Claro que existe tendência, e isso deverá ser objeto de discussões e negociações dentro do Mercosul para articular as políticas públicas regionais. Hoje, a matriz energética de qualquer bloco é elemento central de sua política. No mundo, ter matriz energética forte e diversificada, como temos no Mercosul, é absolutamente estratégico. Temos energia elétrica, matrizes petrolíferas, gás, fora as demais formas alternativas.
-Daria para dizer qual é o papel de cada país que compõe hoje o Bloco? Daí sim, seria importante a entrada da Venezuela por causa do petróleo?
Hoje, é comum uma agenda de políticas em cada país separada do Mercosul. Deveria ser o contrário, as agendas deveriam ser integradas. Com isso, se estamos desenvolvendo agora projetos de infraestrutura elétrica, por exemplo, temos que ver como isso pode se articular com o vizinho. Temos exemplo disso em projetos que estão sendo construídos na tríplice fronteira –Brasil, Paraguai e Argentina– que podem ser objeto de financiamento e aproveitamento comum.
A política energética nacional não pode ser dissociada de política energética regional. Isso é fundamental. Ainda estamos com visão muito restrita de trabalhar essa questão apenas em nível nacional. Devemos aproveitar organismos financeiros como o BNDES e o Banco Interamericano de Desenvolvimento para articular financiamentos de empreendimentos regionais de integração na área energética.
Será facilmente aplicável [a integração energética]? Em nenhum bloco é fácil, tem a ver com o convencimento político. Mas, fundamentalmente, o Brasil, principalmente a partir do governo Lula e agora com a presidenta Dilma, tem apostado no regional e sido um incentivador muito forte da integração [inclusive com a Venezuela].
O QUE TEM IMPEDIDO O MERCOSUL DE AVANÇAR MAIS RAPIDAMENTE?
Primeiro, há uma questão cultural. No Brasil, temos ainda setores, tanto da academia, quanto da administração pública, que fazem opção no sentido clássico, de que o Brasil tem que negociar só com a União Européia e com os Estados Unidos. Isso é um lema político. O Brasil tem que desenvolver sua liderança a partir de articulação com o terceiro mundo, basicamente a partir da sua região.
Por outro lado, devemos lembrar que tiveram momentos políticos de integração [do Mercosul], desde 1991, em que setores de cada país foram muito reacionários a essa possibilidade de integração regional, não apostando no Bloco.
-E quais seriam esses setores?
São os mais conservadores e imediatistas, tanto do ponto de vista empresarial, quanto do ponto de vista de formuladores de políticas públicas, grupos que apostam nos benefícios imediatos do acesso aos mercados americano e europeu. Mas a realidade tem mostrado que o Brasil tem sido muito bem sucedido na sua política de expansão econômica justamente pelo contrário, por apostar de forma inteligente na diversidade de mercados.
Hoje, colocamos nossos produtos tanto na Ásia, quanto África e América Latina, ficando menos presos aos mercados europeu e norte-americano. E na hora que esses mercados entram em crise, como atualmente, nos beneficiamos disso, não somos tão fragilizados pelas crises sistêmicas deles.
Por outro lado, há certas falsas antinomias absurdas e simplistas de achar que nosso inimigo é nosso vizinho, quando na realidade estamos competindo entre as dez economias do mundo. Hoje nossos rivais são os outros BRICs.
-Em entrevista concedida ao jornal argentino “Página 12”, a economista Diana Tussie, diretora do “Programa de Instituições Econômicas Internacionais de FLACSO” e da “Rede Latino-Americana de Comércio”, afirmou que a região mudou nos últimos anos no sentido das exportações interregionais tenderem a ser industriais em contraste com as exportações feitas no mundo, que são basicamente de commodities. É nesse sentido que devemos aproveitar os acordos regionais, ou seja, por ter espaço para exportar produtos com tecnologia agregada?
Até desejaria isso. Mas se observarmos os indicadores publicados em março sobre o início deste ano, veremos que o Brasil, por exemplo, tem se destacado por um superávit muito forte, mas por exportação de commodities. Nós estamos aprofundando essa linha de só exportar commodities, seja em forma de matéria-prima pura, faturada ou manufaturada.
Temos que insistir mais em exportar nossos produtos industrializados em políticas regionais. No lugar de comprar da China produtos industrializados, temos que ver na região nossa capacidade de produzi-los.
-A mesma pesquisadora, Diana Tussie, afirmou que o Brasil é uma potência global, mas não tem liderança em nível regional e que, na América do Sul, não tem seguidores e nem uma política regionalista definida. Concorda?
O que ela está falando é que o Brasil dá, aparentemente, mais relevância ao seu papel como líder global e foca menos seus esforços no espaço regional. Mas isso é visão já ultrapassada, basta observar a política externa dos dois períodos do governo Lula, e como isso se torna mais claro em Dilma, na escolha do primeiro país que visita como presidenta, Argentina, principal parceiro regional.
Acho que ela [a economista Diana Tussie] não prestou atenção nos últimos governos, nem mesmo em FHC, que ao seu modo também fez opção pelo Mercosul. Para poder ser forte no espaço global, o Brasil tem adotado posição de resgate de sua liderança regional.
Se, hoje, o presidente Lula fosse candidato na Argentina, ganharia com mais de 50% -isso foi publicado por diversos meios de comunicação na Argentina, através de enquetes, por consulta popular (*). O Brasil é, hoje, modelo de sucesso para a Argentina e para o resto do Mercosul. Tanto como estado político, de consolidação democrática, como de modelo econômico e de desenvolvimento.
(*) Pesquisa realizada pela consultoria Carlos Fara e Associados na Argentina, em 2009, apontou que, se Lula fosse argentino, seria eleito presidente com 52% dos votos.
-Em edição do jornal paraguaio “ABC Color”, de 1º de março, um especialista afirmou que o Paraguai estaria condenado ao Mercosul. Concorda com essa afirmação?
A palavra 'condenado' não tem sentido pejorativo. Essa afirmação me lembra à época do Tratado de Assunção, em março de 1991. Quando o chanceler do Uruguai foi chamado ao parlamento para defender a entrada do seu país no bloco, não usou exatamente essa expressão 'condenado', mas foi algo semelhante.
Mais de 50% das economias de Paraguai e Uruguai estão atreladas às economias de Brasil e Argentina. Então, de fato, são dependentes, até politicamente. Quando houve a tentativa de golpe, o Paraguai foi à presença dos embaixadores brasileiro e argentino, que colocaram limites à situação –o Mercosul tem um protocolo, chamado Ushuaia, que exige que, para um país entrar e permanecer no bloco, tem que aceitar se desenvolver num regime democrático.
-O que tornaria o Mercosul viável? Definir o papel de cada país para o desenvolvimento do cone Sul seria uma estratégia?
Antes de tudo, é importante apostar de forma clara no aumento da densidade institucional do Mercosul. Já temos no bloco o chamado TPR, “Tribunal Arbitral Permanente de Revisão” que precisa ser fortalecido. Há diversos ministros de cortes supremas do Mercosul pedindo, também, avanços no desenvolvimento dos tribunais regionais.
Mas ainda é necessário fazer um tribunal de justiça forte, de poder judiciário regional, seguindo modelos como da Europa, do pacto Andino, criado pelo Tratado de Cartagena, e trabalhar com a ideia da supranacionalidade. Hoje, não se inicia uma política pública na Alemanha sem levar em consideração o impacto regional. E nós, infelizmente, não consideramos que já existe o direito da integração funcionando para o Mercosul com metas a atingir.
-Por isso, não é natural pensar que duas décadas é muito tempo para integração dos países do bloco não ter dado certo? O Mercosul tem sido um fracasso?
Para saber se é ou não um fracasso, temos que aferi-lo a outros modelos. Vamos pegar o mais bem sucedido, que é o da União Européia. Eles vão para 60 anos de história com muitos pontos em discussão. O bloco europeu teve momentos de muitas dificuldades em que esse processo ficou totalmente parado, como na década de 1960. Então, 20 anos é pouco tempo para dizer que há fracasso.
A região [da América Latina] se viu afetada por uma série de problemas de caráter econômico, e não podemos esquecer que quando o Tratado de Assunção nasceu, em 1991, o processo democrático estava caminhando nos nossos países.
É claro que poderíamos ter avançado muito mais. Mas, hoje, o bloco tem apelo fortíssimo em termos políticos, ajudando a consolidar Unasul [União das Nações Sul-Americanas], e temos uma região mais engajada politicamente, pela primeira vez na história.
Acho que existe interesse em mostrar como fracasso uma política de integração que é muito bem sucedida se analisarmos o contexto em que ela teve que se desenvolver. Esses vinte anos têm servido para que o Brasil se transformasse em um líder regional, absolutamente respeitado em toda a região, e para que muitas das diferenças políticas tradicionais de confrontos, sobretudo alimentadas no período militar, fossem superadas.
-O Mercosul corresponde a 95% do fluxo comercial na América do Sul hoje. O Bloco está ganhando mais importância do que os acordos comerciais feitos unilateralmente com os Estados Unidos?
Não sei se os números são esses, mas não há dúvidas de que são importantes e substantivos. Talvez os dois países que mais apostaram em ter acordos bilaterais com os Estados Unidos foram o Chile e a Colômbia.
O Mercosul hoje tem política de negociação com a Índia, Israel, Palestina, África do Sul. É um player internacional, e essa possibilidade de não estar submetido a um único mercado ou câmbio dá liberdades e poder de barganha que não tínhamos antes.
-É muito difícil os quatro países do Mercosul entrarem num consenso para poder viabilizar toda a proposta do tratado. Nesse sentido, qual seria o impacto de novos países entrando no bloco? É melhor se conseguir uma estabilização, primeiro, para ir aceitando os outros? Aproveitando, o que pensa sobre a entrada da Venezuela?
É claro que quando você trabalha com políticas públicas em sentido comum, atingir o consenso é mais difícil quanto maior o número de Estados. Mas também, ao mesmo tempo, a entrada de novos Estados que tenham identidade com o projeto enriquece o Mercosul.
O bloco tem crescido não só pela adesão, que é uma fórmula jurídica de entrada no MERCOSUL muito específica que está prevista no Tratado de Assunção, mas também através de parcerias, a exemplo das realizadas com Chile e Bolívia, que têm tratados de livre comércio com o Mercosul. Ou seja, estamos crescendo unindo parceiros, seja através da entrada direta, seja através de tratados.
A entrada da Venezuela tem sido discutida não da perspectiva econômica, porque do ponto de vista da integração energética ela é importante -o Brasil tem hoje um projeto comum de refinaria no Nordeste com esse país. O grande problema tem a ver com o tratado de Ushuaia, que é o de aferir o grau de qualidade da democracia do país. Uma questão subjetiva, pois se você observar, a maioria dos países árabes, não as monarquias absolutas, mas a Tunísia, o Egito e o Marrocos, por exemplo, são estados constitucionais. Agora, são democracias? Meramente formais? São democracias participativas? Não. De repente todo o mundo descobriu que só tinham ditadores e autocratas naqueles países.
Temos aí um elemento pedagógico. A forma como caminha o Mercosul, como bloco democrático, vai permitir que os países que se integrem ao Mercosul também aumentem sua densidade democrática e se beneficiem de uma cultura democrática. O jogo da integração exige desenvolver competências e estabilidades democráticas, o próprio conceito de bloco já é contrário a qualquer decisão unilateral.”
FONTE: reportagem de Lilian Milena, da “Agência Dinheiro Vivo”, publicada no “Brasilianas.org” e no blog de Luis Nassif (http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/os-20-anos-do-mercosul#more) [imagem do Google adicionada por este blog].
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