A precisão e o consenso na "dosimetria" do STF
“Para quem não é jurista, um dos aspectos mais estranhos do julgamento do mensalão é a tal “dosimetria”.
Quando passaram a discuti-la e aplicar a cada condenado a pena que entendiam cabível, os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) iniciaram uma etapa que o cidadão comum tem dificuldade de entender.
A “dosimetria” seria uma ciência exata? Aquelas cujos postulados e resultados se expressam na enésima casa decimal? Em que cada milímetro faz diferença e um grama muda tudo?
Para quem está acostumado com as disciplinas que estudam a sociedade e o comportamento dos indivíduos, tamanha precisão não faz sentido. Equivale a supor que as pessoas e seus atos podem ser transformados em fórmulas matemáticas.
Que sentido real pode haver em uma pena de dezenas de anos, alguns meses e “cinco dias”? O que a fração expressa?
Ficar detido por dez, vinte, trinta, quarenta anos não é punição abundantemente suficiente? O que representam os meses e dias adicionais?
No fundo, tanta precisão serve apenas para fazer parecer que a “dosimetria” é impessoal, que consiste na aplicação neutra de regras científicas. Que o cálculo do tempo de castigo não decorre do arbítrio do julgador.
Mas não é apenas na aritmética que a “dosimetria” do STF é surpreendente.
Os réus até agora condenados receberam penas completamente fora da tradição jurídica brasileira. A começar pelos integrantes do “núcleo publicitário”, aos quais couberam as mais severas.
Qual o sentido de mandar para a cadeia por um período de 20 anos, no mínimo, pessoas que não cometeram qualquer crime de sangue, que não colocaram em perigo a vida de ninguém, que não representam risco para a ordem pública, com antecedentes comparáveis aos de qualquer pessoa até 2005?
Que foram julgados em primeira e última instância simultaneamente, em nome de uma decisão discutível que estendeu a eles o foro privilegiado? Que, por isso, perderam o direito ao recurso?
A ideia de que os ilícitos que cometeram são tão graves quanto os que levam assassinos cruéis para as grades é despropositada. É falsa a noção de que “roubaram o dinheiro que iria para hospitais, escolas e creches” e que isso seria motivo bastante para emprisioná-los.
Nem com malabarismos é possível afirmar que o esquema de arrecadação irregular de que participaram “tirou o leite da boca das criancinhas pobres”. É só olhar os autos do processo.
Resta o argumento de que penas dessa magnitude têm “função pedagógica” e desencorajariam outros das mesmas práticas.
Primeiro, nada ensina que a hipótese seja verdadeira, como ilustram os casos de regimes autoritários como o chinês, que estabelece a pena de morte para crimes de colarinho branco e se defronta com problemas cada vez mais graves em relação a eles.
Em segundo lugar, porque o excesso punitivo pode ser tão deseducador quanto a impunidade.
As prisões desproporcionais dos envolvidos no “mensalão” apenas mostram que alguns são punidos, enquanto a vasta maioria dos que fazem coisas iguais [aqueles que não são do PT ou da base aliada do governo federal] fica livre. O tamanho do castigo confirma a excepcionalidade.
É como se alguém tivesse que ser punido com excesso para garantir que tudo continue como antes.
Mas a duração das penas talvez tenha outra explicação.
Em alemão, existe uma palavra que poderíamos importar: “Schadenfeude”. Quer dizer “sentir prazer com a dor alheia”, “ficar contente com o castigo do outro”. E mais alegre se sofrer muito.
Os germanistas do STF devem conhecer a frase de Schopenhauer: “Sentir inveja é humano, saborear esse sentimento é diabólico”.
O Tribunal ainda tem tempo de se corrigir.”
FONTE: escrito por Marcos Coimbra, sociólogo e presidente do Instituto Vox Populi. Transcrito no blog do Noblat, de “O Globo” (http://oglobo.globo.com/pais/noblat/post.asp?cod_post=475828&ch [Imagem do google adicionada por este blog ‘democracia&política’].
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