Jornalista norte-americano Glenn Greewald
NÃO É SURPRESA QUE A ÍNDIA TENHA VIRADO ALVO TÃO IMPORTANTE DE VIGILÂNCIA, diz Greenwald
"Quanto mais os EUA souberem sobre o que os outros países estão fazendo – não só seus governos, mas suas empresas e sua população – mais poder os EUA têm sobre aquele país." De acordo com o jornalista norte-americano, é por isso que os EUA investigam a emergente Índia e "eliminam a privacidade do mundo".
Por Shobhan Saxena
Já faz algum tempo que as pessoas no mundo todo suspeitam que seus emails são lidos e seus telefones estão grampeados por agências governamentais. Os piores medos de todo mundo se tornaram realidade em junho quando Edward Snowden, um administrador de sistema da “National Security Agency” dos EUA, revelou informações sobre programas de vigilância eletrônica em massa feitos pela agência desde 2007. Glenn Greewald deu o furo da história no jornal inglês “The Guardian”.
Desde então, o jornalista norte-americano, que vive no Rio de Janeiro, informou uma série de histórias bombásticas, que expuseram até onde ia o alcance das operações secretas de vigilância da NSA. A revelação feita por ele de que a NSA espionou telefonemas e emails da presidenta Dilma Rousseff fizeram com que fosse cancelada uma viagem dela aos EUA em que ela visitaria a Casa Branca.
Agora colaborando com o “The Hindu” em uma série de matérias sobre a espionagem da NSA na Índia, o Sr. Greenwald conversou com Shobhan Saxena durante encontros em lobbies de hotéis e em sua casa, que ele divide com seu companheiro, David Miranda, dez cachorros e um gato, no meio da Floresta da Tijuca, no Rio. Veja alguns trechos da conversa:
-Qual você acha que foi o impacto mais importante que suas histórias trouxeram?
É que não só os norte-americanos, mas pessoas do mundo todo, agora sabem os verdadeiros objetivos do sistema de vigilância dos EUA: coletar e armazenar toda forma de comunicação entre seres humanos. Em outras palavras, o objetivo é, por definição, eliminar a privacidade no mundo. E essa percepção tem produzido debates intensos e profundos em todos os continentes sobre o valor da privacidade e da liberdade da internet, os perigos representados pela vigilância secreta dos EUA e, mais amplamente, o papel que os EUA desempenham no mundo.
-Suas matérias revelaram que os EUA são um enorme estado de vigilância. Essa é uma imagem bem diferente das que os EUA têm de si mesmo, de um “farol da liberdade individual” e “protetor da liberdade e privacidade”. Como essas revelações afetaram a imagem dos EUA no mundo?
No começo, as pessoas presumiram que o foco das nossas matérias seria no que a “National Security Agency” estava fazendo e no que é a política de vigilância dos EUA, e o que mudaria seria como os norte-americanos pensavam na espionagem e como as pessoas no mundo viam a questão da privacidade. Mas o que mais mudou a partir dessas histórias é como as pessoas veem os EUA – exatamente do jeito que você falou na sua pergunta.
Essas histórias revelaram um programa de vigilância que funcionava não apenas sem o conhecimento das pessoas ao redor do mundo, mas dos próprios americanos, que supostamente têm poder sobre seu governo eleito democraticamente; está claro que os EUA não respeitam nenhum limite ético ou legal em sua busca por poder. É completamente contrário à imagem que eles mostram para o mundo.
-Como republicanos e democratas falam a mesma língua no que diz respeito às questões de segurança nacional, será esse processo irreversível? Pelo jeito como a administração Obama reagiu às matérias, parece não haver nenhuma vontade de se refletir sobre tudo isso internamente.
Eu não acho que nada seja irreversível quando se fala de tendências políticas. Nós vimos como, nos últimos três ou quatro anos, as tiranias mais enraizadas do mundo árabe se enfraqueceram, foram subvertidas e até mesmo destronadas. Há todo tipo de exemplo na história de mudanças radicais que as pessoas sequer esperavam. Então, não acho que seja irreversível. Eu acho que é muito difícil mudar por causa dessa incorporação dos dois partidos não só nos assuntos de segurança nacional em geral, mas também no papel dos EUA no mundo como um império. Mas uma das coisas que já se pode ver é que, nas cinco a seis semanas que nós temos publicado essas matérias, tem havido uma confusão na divisão partidária. Então, metade dos apoios mais contundentes a essas histórias vem dos republicanos, tanto os mais conservadores quanto os mais liberais; a outra metade vem de liberais e de pessoas de esquerda.
Isso realmente embaralhou as categorias normais de ideologia de uma maneira nunca vista; também se pode ver nas pesquisas de opinião pública que há aumento no número de pessoas seriamente preocupadas com os excessos do estado de vigilância, os abusos das liberdades civis e os ataques à privacidade. Tudo isso sugere que mudanças serão inevitáveis.
-Seu companheiro David Miranda foi detido em Londres por conta de uma lei antiterrorismo. Você acha que eles estavam mesmo atrás dos documentos que ele tinha com ele ou eles queriam intimidar você?
Não há dúvida de que o principal objetivo deles era intimidar. Se eles quisessem confiscar o que ele estava levando, eles poderiam tê-lo detido por nove minutos. Mas eles o detiveram por nove horas, o máximo permitido pela lei. E eles não só o detiveram, fizeram isso usando uma lei “antiterrorismo”. Especialmente para quem não é cidadão nem dos EUA nem da Inglaterra, é muito aterrorizante ouvir que você está sendo detido por conta de uma investigação de “terrorismo”, devido aos péssimos registros no que diz respeito aos direitos humanos no país nos últimos dez anos.
Um membro do governo dos EUA disse à [agência norte-americana de notícias] “Reuters” que o propósito da detenção de David era de “mandar uma mensagem” para nós, que falávamos dessas histórias, pararmos. Foi um ataque bruto contra a liberdade de imprensa.
-Tem havido tentativas, nos EUA, de criminalizar o jornalismo, como aconteceu no caso da “Fox News” e da “AP”? Isso não te incomoda?
Eles têm tido sucesso em criar um clima de medo entre denunciantes e fontes. Por isso, alguns advogados federais me disseram, pelo menos por enquanto, que eu não deveria voltar para os EUA, eu não devo tentar entrar no país. É algo muito extraordinário para um advogado norte-americano falar para um jornalista norte-americano que ele não deve tentar entrar de novo no seu próprio país, pois eles podem tentar prender você.
-Então, você não foi mais aos EUA desde que começou a publicar essas matérias?
Não, não fui. Eu fui para Hong Kong e voltei para o Brasil por Dubai. Não estou dizendo que eu vou ser preso, mas o fato de ser motivo de discussão, e muita gente se sentir livre para defender isso publicamente sem perder sua posição ou sua credibilidade, já fazem disso uma possibilidade real. Quando se fala de ser processado pelos EUA por espionagem, não é um risco que você pode lidar com leveza.
-Por que você acha que a NSA mirou na missão diplomática e em interesses da Índia, um país com quem os EUA têm laços de amizade estreitos?
A Índia é um país com cada vez mais importância em diversas áreas: econômica, política, diplomática e militar. O objetivo dos EUA é submeter virtualmente todo mundo à vigilância em massa, mas não é nenhuma surpresa que a Índia tenha se tornado um alvo tão importante dessa vigilância. Em última instância, é uma questão de poder: quanto mais os EUA souberem sobre o que os outros países estão fazendo – não só seus governos, mas suas empresas e sua população – mais poder os EUA têm sobre aquele país.
-Uma das revelações mais chocantes de suas matérias foi o envolvimento de diversas democracias ocidentais, como Inglaterra e Alemanha, nos programas secretos de vigilância. Parece que há bem poucos países dispostos a enfrentar os EUA.
Acho que o mundo pode ser dividido, de maneira muito ampla, no que diz respeito às relações com os EUA, em três categorias. Uma é de países extremamente subservientes aos EUA, que sempre capitulam aos seus ditames. Uma segunda categoria é de países que são abertamente hostis aos EUA. Então, há a grande maioria que fica no meio, de países independentes. Eles se aliam aos EUA se eles têm interesse, e ficam contra se acham que devem.
A maioria dos países europeus fica bem posicionada na primeira categoria, de governos que capitulam sem nenhuma força, de maneira subserviente, aos ditames dos EUA. Então, se viu muita raiva fingida e indignação artificial quando essas revelações vieram à tona, porque os cidadãos europeus foram alvo e eles se importam com a privacidade. Então, seus governos precisavam fingir que estavam bravos, mas pode-se ver suas verdadeiras cores quando os EUA mandaram que eles negassem passagem pelo espaço aéreo ao presidente da Bolívia, Evo Morales. Eles obedeceram direitinho, ao extremo, negando passagem ao presidente de um país soberano. Eles fizeram isso porque são cúmplices, virtualmente todos esses governos europeus. Ao passo que, na América Latina e em alguma medida na Ásia, e certamente em alguns países do Oriente Médio, há muito mais independência. Então, a raiva expressa é, em alguma medida, falsa, mas também é mais genuína.
-Para não haver quase nenhuma indignação com empresas de tecnologia como “Facebook”, “Skype”, “Google”, que praticamente colaboraram com o governo dos EUA na coleta de informações sobre pessoas no mundo todo. Agora, essas empresas dizem que não tiveram escolha. Elas poderiam ter dito “não” para a NSA?
Há enquadramentos legais que exigem que elas colaborem com os programas de vigilância do governo dos EUA, mas elas fizeram muito mais do que a lei exigia, como as empresas de telecomunicação fizeram na era Bush. O motivo é que elas se beneficiam de todas as formas possíveis por terem boas relações com o governo dos EUA. Só os benefícios dessa colaboração com o governo dos EUA nos termos desse programa de vigilância massiva compensam de longe o que eles consideram como custo das relações com o consumidor ou da imagem deles no mundo. Uma das razões que fez com que eles chegassem a essas contas é que eles pensaram que tudo isso seria feito secretamente; ninguém sabia que eles colaboravam tanto, e um dos benefícios de se revelar o que eles têm feito é que isso altera o cálculo deles, se as pessoas começam a perceber que eles são tão cúmplices do governo e que suas comunicações não são assim tão seguras, e elas podem começar a buscar alternativas.
O problema agora é que “Facebook”, “Skype” e “Google” são tão gigantes que é quase impossível não usar nenhuma delas. Se você tem 22 anos, você pode até se incomodar com o fato de o “Facebook” invadir sua privacidade, mas quando todos os seus amigos, todo mundo que você conhece, seus patrões estão no “Facebook” e exigem que você esteja, é muito difícil seguir os seus princípios e dizer “não uso mais o Facebook e o Skype”.
-Suas matérias expuseram também o que se pode chamar de grande mídia, como o “New York Times” e a “CNN”, que publicaram muito mais histórias sobre a vida pessoal de Snowden do que sobre os programas de vigilância. Até você foi atacado em algumas colunas. Você acha que o espaço para o jornalismo bom e investigativo está diminuindo na mídia global?
Sim e não. Acho que era completamente previsível o que eles fariam. Mesmo antes de revelarmos a identidade de Snowden, eu escrevi um artigo predizendo que eles tentariam tirar a atenção das denúncias, porque servir ao governo é sua função. Eles iriam demonizá-lo, bem como a qualquer pessoa, incluindo jornalistas, que trabalhassem com ele por transparência. Foi isso que eles fizeram em cada um dos casos. Eles fizeram isso com Daniel Ellsberg há 30,40 anos atrás. Fizeram com o “Wikileaks”, com Bradley Manning. Nós sabíamos que eles fariam isso com Snowden e, eventualmente, comigo.
Mas não importou muito. De alguma forma, o espaço para o jornalismo investigativo diminuiu por causa do que a mídia corporativa de massa virou, mas como a internet abriu espaço para todo tipo de mídia alternativa, o espaço para um jornalismo investigativo está maior do que nunca. Eu sou uma criatura da internet. Eu comecei meu próprio blog sete anos atrás e, mesmo hoje, trabalhando para o “Guardian”, eu topei exigindo total liberdade editorial. Eu tenho minha própria voz e eu não estou preocupado. Minha carreira não depende de favores dos poderosos. Eu pude desenvolver esse modelo alternativo por causa do poder da internet, de encontrar meus próprios leitores e não depender dessas grandes instituições. Há várias pessoas fazendo esse tipo de coisa em diversas áreas, em todas as culturas, em todo canto do planeta e isso mudou definitivamente o jornalismo. Há muita autorreflexão acontecendo agora dentro do “New York Times” e outros veículos sobre por que eles ficaram completamente de fora de um dos maiores – se não o maior – escândalo da mídia em muitos anos. E o motivo é que Snowden não confiava neles para contar a história de verdade. Ele não confiava que eles fossem resistir às exigências do governo, assim como Bradley Manning não confiou no “New York Times” e no “Washington Post” e foi para o “Wikileaks”. Então, vamos ver cada vez mais isso acontecendo à medida que mais histórias vão parar em gente como eu, ou como o “Wikileaks”, e não nas mãos do “New York Times” ou do “Washington Post”. O modelo de jornalismo dele vai perder cada vez mais a credibilidade. Isso já está acontecendo.
-Você está trabalhando num livro sobre todo esse caso. O livro é sobre Edward Snowden?
Só uma parte do livro vai falar sobre mim, sobre como eu me envolvi nessa história, e como eu desenvolvi uma relação de fonte com Snowden, como eu consegui os documentos, como eu escrevi as matérias, minha experiência em Hong Kong e depois disso. Mas o grosso do livro vai ser sobre como os EUA construíram esse estado de vigilância e quais são as consequências e os riscos disso. Vai haver também novas revelações, baseadas nos documentos.
-Algumas pessoas sugeriram que Snowden poderia ainda ser um agente disfarçado. Naomi Wolf até escreveu um artigo dizendo que poderia ser tudo um grande esquema. Você teve alguma dúvida sobre Snowden ou sobre a autenticidade dos documentos antes de sentar para escrever suas matérias?
Não. Cair nessa teoria seria tão imbecil que eu não gastei um segundo do meu tempo nisso. Parte do que fazemos como seres humanos se baseia na intuição. Você precisa julgar quem está mentindo para você e quem está contando a verdade, quem não merece crédito, quem está enganando você e quem está sendo verdadeiro. Quando eu fui para Hong Kong, meu primeiro objetivo nos primeiros quatro ou cindo dias era entender tudo que eu poderia saber sobre Edward Snowden e me certificar que ele não estava escondendo nada e que ele era sincero nas alegações dele. Como eu nunca havia encontrado com ele, eu passei horas e horas sozinho com ele na primeira semana. Falando frente a frente com ele – a dois metros dele, olhando nos meus olhos – e eu não tive dúvidas sobre quem ele era e do que ele estava falando. Eu prefiro que as pessoas sejam céticas em excesso do que ingênuas em excesso, mas essa teoria em particular não merece nenhuma atenção.
-Você mora no Rio de Janeiro há oito anos. Como se sente morando no Brasil?
Eu amo o Brasil. Por isso que eu moro aqui há tanto tempo. Claro, eu vim para cá por causa da lei de imigração discriminatória dos EUA, que impede que meu parceiro vá para lá, ainda que eu pudesse emigrar para cá.
Mas há forte presença da CIA no Rio de Janeiro; a polícia do Rio e de todo o Brasil é, notoriamente, muito agressiva em seus métodos. Então, eu presumo que eu tenha sido espionado e monitorado. Tivemos um incidente, quando o laptop do meu companheiro sumiu de casa. Mas eu me sinto tão seguro aqui quanto em qualquer outro lugar. Não me sinto especialmente inseguro aqui. Você não tem como estar muito seguro carregando dez mil documentos altamente secretos da agência mais secreta do governo mais poderoso do mundo. Não há segurança completa, mas não me sinto muito inseguro também.”
FONTE: reportagem de Shobhan Saxena publicada no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=22780).
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