quarta-feira, 17 de junho de 2009

A MARCA DA MALDADE

“A mídia do Ocidente prega continuamente sobre o atraso da "república islâmica" do Irã, em vários aspectos políticos e comportamentais (no que muitas vezes têm razão).

Mas quase sempre omite o papel que os países líderes do Ocidente tiveram e têm nessa consolidação. É nessa moldura – em que o poder de fato está, não nas mãos do presidente da república, mas do corpo e do líder dos aiatolás – que aparece o espaço para um político de ambições próprias como Mohammad Ahmadinejad. A análise é de Flávio Aguiar.

“Agora você vai ouvir aquilo que merece,
As coisas ficam muito boas quando a gente esquece...”
Lupicínio Rodrigues

“Eu me lembro vagamente de um artigo nas Seleções do Reader’s Digest, que meu pai colecionava, sobre a Pérsia dos anos cinqüenta do século passado. Tinha uma ilustração com um guarda correndo e um cara ao fundo, com uma maleta, ou algo assim, na mão. E aí vinha a história: o guarda, fazendo uma ronda, achara que o cara com a maleta era um ladrão e correra atrás dele. Nem sei se o cara foi preso ou se deixou cair a maleta e fugiu. Mas dentro da maleta a polícia de Teerã (pois estávamos na então Pérsia, hoje Irã) descobriu uma derrama de planos para fazer o comunismo tomar o país de assalto. E esse golpe terrível contra a Pérsia e a humanidade foi evitado graças àquele guarda que correu atrás de um suposto ladrão de dinheiro ou de bugigangas, mas que na verdade era um ladrão de países e de almas. Porque além de criancinhas os comunistas comiam almas.

Tempos depois, eu vim a saber que o guarda e a maleta podiam até ter existido, mas era tudo mentira. Mas era uma mentira de verdade: aquilo fizera parte da Operação Ájax, uma operação montada pela CIA e pelo serviço secreto britânico MI6 (oficialmente, SIS, Secret Intelligent Service) para derrubar o governo nacionalista do primeiro ministro Mohammad Mossadegh, que nacionalizara o petróleo. Isso foi considerado uma afronta e um perigo para os interesses da Anglo-Iranian Oil Company, pedra fundamental da política britânica e já norte-americana na região do Oriente Médio.

Mossadegh tornou-se primeiro ministro da Pérsia (depois Irã) em 1951. Por essa época quando se deu a nacionalização, os britânicos levaram seu caso à Corte Internacional de Haia... e perderam. Desde então os britânicos começaram a conspirar para derrubar Mossadegh, em favor do Xá Reza Pahlavi, soberano que lhes inspirava mais confiança.

Mas só conseguiram convencer os norte-americanos a entrar na aventura depois que os republicanos chegaram ao poder com Dwight Eisenhower. A partir daí não pouparam esforços, propaganda e dinheiro para derrubar Mossadegh. É claro que havia por detrás disso a moldura da Guerra Fria e da presença soviética na região. Mas é claro também que havia uma forte animosidade imperialista contra as políticas nacionalistas no Terceiro Mundo.

Os Estados Unidos, que mais e mais traziam os britânicos para sua própria ordem e órbita, também se sentiam ameaçados, e em escala mundial. Movimentos nacionalistas e de independência ou autonomia em relação aos impérios agitavam a Ásia, a África e a América Latina. No Oriente Médio e regiões próximas, o nacionalismo ampliava seu amparo em forças armadas, como as do Egito, Turquia, Iraque e Síria. Israel já não era o incômodo que fora para britânicos e norte-americanos, e mais e mais tornava-se um aliado crucial no dominó petroleiro e político do Oriente Médio. O alvo principal tornou-se o movimento nacionalista no mundo islâmico. A Pérsia foi a primeira peça do dominó, ou o primeiro degrau da escalada. Assinale-se que nesta época, concomitantemente, os Estados Unidos investiam contra o governo democrático da Guatemala, tentavam ajudar a conter a revolução dos mineiros na Bolívia, e a França era derrotada no Vietnã.

Só a CIA jogou na Pérsia um milhão de dólares (na época, uma soma apreciável, hoje um troco de crise financeira) na propaganda e na compra de ações, não bancárias ou outras desse tipo, mas ações contra o governo de Mossadegh. A primeira tentativa falhou, e o Xá, envolvido na conspiração, teve de deixar o país, primeiro para Bagdá, no Iraque (!), depois para a Itália. Os norte-americanos o buscaram em Roma, trouxeram-no de volta, e com o apoio de militares americanófilos (como se dizia então), que temiam uma sublevação no Exército, o puseram, mais literalmente, o plantaram no trono, depois da segunda tentativa de golpe, em 1953, desta vez bem sucedida. Mossadegh foi condenado à morte por um tribunal de fancaria. Depois teve sua pena comutada para prisão perpétua, que cumpriu primeiro num quartel e depois em prisão domiciliar até sua morte, em 1967.

Durante esse duplo golpe contra Mossadegh, os aiatolás religiosos receberam um primeiro impulso político generoso. Por parte de quem? Dos norte-americanos e britânicos, que viam neles uma (então não muito poderosa, mas de alguma eficácia) arma anti-comunista, pela ascendência que tinham sobre a população pobre nas cidades e o campesinato. E o Xá consolidou seu poder sobre o Irã e sobre a mídia mundial, pois era um dos assuntos preferidos dos “temas de coluna social”. O drama de sua segunda mulher, Soraya, que não conseguia lhe dar filhos (era o que se dizia, pois, em caso de dúvida, aponte-se a mulher), comoveu multidões de leitores, inclusive das revistas Manchete, O Cruzeiro, etc., no Brasil.

Separado de Soraya, o Xá continuou sendo atração com sua nova mulher, Farah Dibah, proclamada Imperatriz. Aliás, a visita do Xá a Berlim (ver matéria nesta Carta Maior) foi um dos gatilhos para as grandes manifestações estudantis de protesto na Europa, em 1967.

O império do Xá, cada vez mais despótico, repressivo, e sobre os quais pesavam denúncias graves de corrupção, arrastou a a Pérsia (que também era chamada de Irã, a pedido de seu pai) a protestos cada vez maiores, apesar de algum progresso material, devido à política do petróleo. (Durante o governo de Mossadegh os países do ocidente suspenderam a compra de petróleo iraniano, querendo levar o país à penúria). Para atrair as massas campesinas, o Xá promoveu uma espécie de reforma agrária, tomando terras das organizações religiosas muçulmanas, que não viam com bons olhos a continuidade que deu a algumas reformas modernizantes de Mossadegh, sobretudo em relação ao comportamento e à presença social e econômica das mulheres. Mexer nas terras dos aiatolás jogou-os de vez na oposição. Alguns deles, como Khomeini, tiveram de se exilar.

O império do Xá prosseguiu até 1979, quando uma série de insurreições – a culminante foi a do Exército, que se recusou a atirar na multidão – em Teerã e no interior o obrigaram a renunciar e a fugir. A gota d’água foi uma greve de funcionários públicos que literalmente paralisou o Estado. Mas que Irã (o nome Pérsia foi definitivamente abandonado) era aquele, de 1979? Um Irã muito diferente do de Mossadegh. Os nacionalistas dos anos 50 tinham sido desbaratados, isolados, presos, mortos. Os comunistas idem. Os liberais ilustrados estavam enfraquecidos, sem liderança, embora junto à classe média o descontentamento fosse enorme. A tudo a Savak, a polícia política do Xá, sempre com ajuda da CIA e do MI6, neutralizara, dobrara, destruíra. O que restara? A organização do clero, que ocupou o espaço político deixado vazio, e começou a “revolução islâmica”. As primeiras ceifas nessa nova ordem se deram entre os comunistas, tão duramente reprimidos como nos tempos do Xá; junto com eles, liberais laicos e nacionalistas “no estilo antigo”.

Quando os aiatolás deixaram de ser confiáveis e, além disso, se tornaram poderosos gestores de uma das grandes reservas de petróleo do mundo, o vizinho Iraque, de Saddam Hussein, voltou-se contra eles, e invadiu o Irã. Além das ambições pessoais, Saddam temia que o exemplo vizinho contaminasse seu próprio campo. Daquela vez, contou com a nova simpatia dos norte-americanos, que não só o incentivaram, como lhe deram, através da CIA, armas químicas para usar contra os iranianos. Essa guerra, que durou de 1980 a 1988, provocou a morte de um milhão de iranianos. Terminada a guerra, houve ainda tentativas de abrir mais espaços políticos por entre as frinchas do império dos aiatolás, sem sucesso duradouro.

Consolidou-se a “república islâmica”. A mídia do Ocidente prega continuamente sobre seu atraso em vários aspectos políticos e comportamentais (no que muitas vezes tem razão). Mas quase sempre omite o papel que os países líderes do Ocidente tiveram e têm nessa consolidação.

É nessa moldura – em que o poder de fato está, não nas mãos do presidente da república, mas do corpo e do líder dos aiatolás – que aparece o espaço para um político de ambições próprias como Mohammad Ahmadinejad. Sem nunca contestar o poder e a palavra dos aiatolás, pelo contrário, apresentando-se como seu fiel porta-voz, Ahmadinejad procurou – ainda procura – sulcar seu próprio caminho nas frinchas desse quadro muito estreito e de terrenos minados. O aiatoloá Khamenei, líder do Conselho de Governo, é o chefe das forças armadas e do serviço de inteligência. Qualquer passo em falso põe o político desavisado fora do campo, senão do mundo inteiro. Ahmadinejad conseguiu aproximar-se da população mais desvalida através de políticas compensatórias financiadas pelos dividendos do petróleo, quando foi governador da província de Ardabil e quando foi prefeito de Teerã. Quando ocupava esse último cargo, chegou a ser apontado para receber o título de “Prefeito do Mundo”, em 2005, da organização internacional “City Mayors”, com base em vários países da Europa e nos Estados Unidos. Então ainda não era o perigoso presidente de um país à deriva.

Sua indicação (feita no âmbito da organização, não de fora dela) não prosperou porque ele renunciou ao cargo para tornar-se o presidente eleito da controvertida república, o preferido das massas despossuídas e dos aiatolás. Como presidente, perseguiu uma facilitação do crédito e uma redução das taxas de juros, além de um controle mais estrito sobre operações financeiras e paralelas.

As oposições não conseguiram mobilizar a população pobre ou remediada, que é a imensa maioria no Irã. Sua vitória recente não surpreende, nem que para isso ele mobilize um sentimento anti-ocidente, anti-Israel, e religioso. E até agora só surgiram acusações de fraude, nenhuma suspeita ou prova mais consistente.

A questão nuclear, no Irã, não evidentemente, uma decisão apenas sua. Nada seria feito sem o carimbo dos aiatolás, ou sua bênção. Mas ele deu a ela um ritmo próprio, não resta dúvida. Embora jure que não pretenda dispor de um arsenal nuclear, é de duvidar que isso não esteja nos seus ou nos planos da “revolução islâmica”.

Desarmado o Iraque, pelo menos de momento, e pelos mesmos países que promoveram seu ditador, Saddam Hussein, o campo ficou aberto para o Irã, ainda mais diante do isolamento da Síria, único país onde resta alguma sombra daquele nacionalismo antigo, e da batalha da Turquia para entrar na União Européia. Uma agenda nuclear é a única coisa que resta ao Irã para se contrapor à supremacia militar de Israel - também no campo das ogivas atômicas. E o destino de Saddam Hussein só deve ter reforçado esse propósito, pois de herdeiro de um partido nacionalista que era, passou a preferido do Ocidente na região, contra o Irã, e teve o destino que teve.

Além disso, essa agenda e sua manutenção na ordem do dia mundial, o que permite a Ahmadinejad ambicionar o papel de um novo “global player”, lhe valeram uma aproximação política com a Rússia, coisa que dificilmente os aiatolás poderiam empreender, embora a Moscou de hoje nada tenha a ver com os antigos comunistas que eles perseguiram tão duramente quanto a Savak.

Pesa sobre Ahmadinejad a acusação de negar o genocídio contra judeus durante a Segunda Guerra, e de pregar a destruição do Estado de Israel. Ele afirma tenazmente que não o fez, e há uma verdadeira batalha entre tradutores e lingüistas em torno do que ele teria ou não teria dito nos discursos em que se referiu a ambos os temas. A pecha existe, em todo o caso, e ele ainda não agiu de modo peremptório e definitivo para pôr-lhe fim, o que não o ajuda naquela ambição de se tornar o “global player” que ele quer ser. Enquanto ele não fizer isso, a força de sua ação ficará limitada à região. Mas esse é um Rubicão que dificilmente dará vau a quem quiser cruza-lo, depois de ter feito afirmações, para dizer o mínimo, dúbias, a respeito de uma história confirmada e re-confirmada como a do morticínio em massa de judeus na Europa, ou a respeito da destruição do Estado de Israel. Hoje, numa margem desse Rubicão em que ele se meteu com essas suas afirmações estão os poderosos aiatolás de seu país; na outra, no momento, o comprometedor e comprometido Benyamin Nethanyau, que acaba de inventar, para conceder à Barack Obama sem renegar seus aliados conservadores em Israel, o conceito de um “Estado sarcófago”, isto é, sem qualquer soberania, que é o que ele diz poder aceitar para os palestinos. Por ora, esse é um campo de posições fixas, sem margem de manobra para ninguém.

Em tudo, como se vê, está presente essa verdadeira “marca da maldade” (evocando o título do maravilhoso filme de Orson Welles sobre o policial que decide tomar a justiça nas próprias mãos): a presença da unha venenosa do comportamento das potências do Ocidente durante e depois da Guerra Fria.

FONTE: site “Carta Maior”, texto de Flávio Aguiar, em 16/06/2009.

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