"O que se viu do diretor Fábio Barreto foi um trabalho pensado para corresponder em cada detalhe à dignificação do protagonista, garoto nascido numa Caetés miserável do Agreste pernambucano dos anos 1940 e tornado combatente sindicalista no ABC paulista, momento em que a cinebiografia se encerra. Mas também um filme preocupado em restabelecer, ou para muitos estabelecer, a dignidade de um cineasta malsucedido em suas mais recentes incursões.
A orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro saberia que os acordes iniciais do baião de Luiz Gonzaga e seu parceiro Humberto Teixeira diriam mais daquela noite do que a trilha sonora melódica e excessiva de Antônio Pinto e Jaques Morelenbaum? Talvez. A recorrência do Sertão cantada em verso e prosa em Asa Brasa envolve a origem e o universo do grande biografado do filme que se seguiria à apresentação dos músicos.
A solenidade de estreia em Brasília, na terça-feira 17, de Lula – O Filho do Brasil, disse, aliás, ainda mais do País que o homem e agora personagem Luiz Inácio Lula da Silva preside, e da qual se absteve em comparecer. Numa confusão instituída, o empurra-empurra, a Sala Villa-Lobos de 1.307 lugares em superlotação sem precedentes numa abertura do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, as autoridades em fila interminável para o beija-mão da primeira-dama e um trio da cinematográfica família Barreto, responsável pelo projeto, numa sequência de gafes quando apela para que parte do público saia – tudo era o retrato acabado do jeito improvisado de como as coisas correm nessas terras.
O improviso não se estendeu à tela. Projetor rodando, o que se viu do diretor Fábio Barreto foi um trabalho pensado para corresponder em cada detalhe à dignificação do protagonista, garoto nascido numa Caetés miserável do Agreste pernambucano dos anos 1940 e tornado combatente sindicalista no ABC paulista, momento em que a cinebiografia se encerra. Mas também um filme preocupado em restabelecer, ou para muitos estabelecer, a dignidade de um cineasta malsucedido em suas mais recentes incursões.
Empenhado nessas circunstâncias, o filho Barreto menos pródigo (Bruno tem a seu favor sucessos de público como Dona Flor e Seus Dois Maridos e pessoais como Última Parada 174) optou por um caminho seguro ao assumir o contexto melodramático da vida de seu personagem e não se cansa de confirmá-lo em entrevistas. Se por um lado escapa assim a uma cobrança de iniciativa oportunista, por talvez eleitoreira, por outro o realizador de O Quatrilho protege-se de uma crítica ao modelo irritantemente convencional e o tom monocórdio que uma trajetória de obstinação excepcional deveria a todo custo evitar na tela grande, pois ali se exacerba.
Mas a vida de Lula foi assim, repete ele. Começou na viagem em pau de arara rumo a Santos, liderada pela mãe iludida por um bilhete enganoso, prosseguiu no duro cotidiano de torneiro mecânico e na casual- entrada na liderança sindicalista. Lula sempre foi um pacificador, justifica o diretor quando seu personagem foge ante a visão da morte brutal de um burocrata de fábrica. E por causa desse ponto de vista que se aceite de uma maçada só a sucessão de desgraças, do pai alcoólatra (Milhem Cortaz), determinado pela força a fazer o filho trabalhar e se afastar da escola, à morte da primeira mulher (Cleo Pires) e do filho recém-nascido no parto.
Mais uma vez, esses e outros acontecimentos de cunho trágico, antes de surgirem contidos, são amplificados e nivelados aos momentos de conquista e felicidade genuínos, a exemplo do encontro com a nova parceira Marisa (Juliana Baroni). Na maioria das vezes, no entanto, são impulsionados pelos ensinamentos de dona Lindu, essa mãe-coragem nordestina e verdadeira dona dessa história. Aquele acompanhamento musical já citado seria um sintoma exemplar desse tratamento. Confirma um filme por demais equilibrado, que se não descamba, também não ascende plenamente. Isso porque puxado sempre pelas rédeas da confiança excessiva na empatia do protagonista e sua luta pessoal, admirável a ponto de não merecer o beneplácito da dúvida, da discordância, da contradição.
Enfim, um homem sem matiz, sem indefinições aparentes, que a história fora da tela desmente. Há, por exemplo, a filha fora do casamento que fez o militante sindical perder uma de suas corridas presidenciais. Abordado no livro de Denise Paraná, no qual o filme se baseia, o fato não pôde ganhar o filme por decisão explícita da ex-amante, que negou autorização. Se questões jurídicas justificam o impasse, nem sempre é possível convencer quando se trata de atitudes polêmicas, como na atuação à frente do Sindicato dos Trabalhadores, aceitas com a mesma passividade e tranquilidade com que o marido e pai Lula recebe a dolorosa notícia das mortes.
A reserva de emoção, aliás, parece ter sido represada para os momentos do filho Lula (em boa interpretação, na juventude e maturidade, de Rui Ricardo Diaz) aconselhado por dona Lindu, a quem Glória Pires confere uma absoluta e inatacável dignidade, agora sem o conceito mitificador que promove o protagonista. Esta sim é uma personagem muito bem captada na adaptação, coerente em seu método simples e pragmático de tocar a vida, enquanto seu filho, com o pressuposto de ter tido acesso a algum estudo, surge como uma figura necessariamente predestinada ao seu destino.
Está aí um dos contrastes precários do projeto. A dificuldade em construir a persona do biografado a partir de seus próprios valores, os erros e acertos inerentes a qualquer ser humano, fica evidente quando essa intenção se transfere para o coletivo. Na família de irmãos unidos pelo carinho de dona Lindu ou nos braços de companheiros de manifestações, Lula realmente atinge a personalidade exponencial que o filme busca.
Para prová-la há uma sequência que talvez não seja original para aqueles com alguma aproximação com as greves conduzidas na indústria do Grande ABC na virada dos anos 70 para os anos 80. Refere-se aos discursos de Lula no estádio da Vila Euclides para 80 mil operários. Barreto recria o encontro que já foi documentado no passado por Renato Tapajós em Linha de Montagem e Leon Hirzsman em ABC da Greve.
Além de utilizar cenas dos dois filmes, participantes reais atuam como extras e se multiplicam por recursos digitais. Enquanto Lula fala sem microfone, a multidão age como uma onda que reverbera a mensagem para os companheiros mais distantes. Nesse momento talvez seja possível enxergar um par de asas brancas no Lula carregado nos ombros dos colegas das fábricas e que, a depender de maior ou menor entusiasmo, o teriam conduzido direto para o desfile em carro aberto em 1º de janeiro de 2003. A imagem rumo ao Planalto encerra o filme e é sintomática não apenas em uma apreciação do que pretende o realizador com seu produto, mas também de outra possível função dele que o clã Barreto nega com veemência."
FONTE: escrito por Orlando Margarido para a revista "Carta Capital" desta semana e postado hoje (22/11) no portal "Vermelho".
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