domingo, 7 de março de 2010

A TRAGÉDIA TAMBÉM MORAL NO CHILE

"Catástrofe revela o lado escuro do Chile

Atônitos, sobreviventes tentam entender tragédia moral dos saques

O terremoto seguido de tsunami que devastou a costa centro-sul do Chile na semana passada não provocou só destruição física. O tremor de 8,8 graus na escala Richter desencadeou uma onda de saques ao comércio, incêndios criminosos, roubos em massa a residências, além da paralisação do governo central, abalando a imagem positiva que os chilenos tinham de si mesmos e costumavam projetar, orgulhosos, para o mundo.

"Foi espantoso. Pensávamos ter mais capital social do que realmente temos", lamentou o sociólogo Eugenio Tironi, da Corporação de Pesquisas Econômicas para a América Latina, com sede em Santiago.

Na área rural percorrida pelo Estado entre as cidades de Concepción, assolada pelos saques, e Dichato, devastada pelo tsunami, os moradores caminhavam alertas pelas estradas, com espingardas em punho. Os carros não davam carona nem para idosos, temendo assaltos. O cenário era idêntico nas cidades de Coelemu e Chanco, antes conhecidas como aprazíveis regiões campestres do sul do país.

Logo após o terremoto, o médico Cláudio Missareli percorreu centenas de quilômetros em sua caminhonete para apresentar-se como voluntário no balneário de Pelluhue, onde 80% das casas foram varridas pelo tsunami. "Que desenvolvimento o quê. Na verdade, somos gatos sob pele de leão", disse. "É falsa essa imagem que os governos e empresários chilenos venderam ao mundo, de que este era um país equivalente aos tigres asiáticos. Nós não passamos de um país subdesenvolvido. Isso agora ficou claro para todos os chilenos e para o mundo. Nem no Haiti as pessoas se comportaram assim."

Nos primeiro dias após o desastre, a realidade chilena era inevitavelmente comparada com o caos que reinou durante semanas no Haiti, o país mais pobre das Américas, cuja capital foi arrasada no dia 12 de janeiro por um tremor de 7,2 graus na escala Richter.

Na capital haitiana, os sobreviventes lutavam entre si, disputando comida e atacando caminhões de ajuda humanitária. No Chile, o relativo baixo número de mortos - no máximo, 800, diante de quase 300 mil no Haiti - era celebrado como reflexo da organização interna, da qualidade das construções e da preparação para as catástrofes naturais, pontos positivos que destoavam das cenas de saques e repressão em Concepción. Pelo menos um saqueador foi morto pelo Exército e 327 foram presos por violar o toque de recolher na quinta e sexta-feira.

"O Chile é um país que sabe que está localizado sobre uma falha geológica, mas finge não saber que também foi construído sobre falhas sociais e morais graves", disse o jornalista e analista político chileno Nibaldo Mosciatti. "Nós convivemos com uma sociedade que mescla uma hipocrisia enorme com um ressentimento profundo e isso aflora em situações como essa."

Pobres roubaram dos ricos; chilenos de classe média alta dirigindo caminhonetes importadas assaltaram comércios abandonados por seus donos que tinham fugido do terremoto. "Todos roubaram de todos, não foi uma questão de classe social. O vandalismo foi protagonizado por todos", disse, perplexa, a prefeita de Concepción, Jacqueline van Rysselberghe, na calçada da Praça de Armas, a principal da cidade.

No terremoto ocorrido em Valdívia, em 1939, o Exército fuzilou quatro saqueadores em público, numa tentativa de desencorajar levantes maciços. De lá para cá, o país passou por uma ditadura militar que, em 17 anos, deixou 2.279 mortos e 28 mil torturados. Segundo analistas, esse passado de repressão militar influenciou a decisão do atual governo - de esquerda - de relutar em pôr o Exército na rua para conter os saques.

RESPOSTA VACILANTE

"Foi um vacilo motivado por razões simbólicas que custou muito caro à presidente (Michelle Bachelet)", diz Mosciatti. "O Exército do Chile está entre as três instituições mais confiáveis do país em qualquer pesquisa e já não guarda relação com aquele Exército do golpe", agregou Tironi.

"Qualquer sueco que passasse três dias sem comida, água, luz e telefone, depois de um terremoto devastador, saquearia Estocolmo sem pensar duas vezes", comparou o sociólogo. "É impossível estender a análise sobre os saques para uma leitura estrutural da sociedade chilena. Também tivemos grandes gestos de grandeza e solidariedade. A tragédia mostra que somos, no fim, a mescla destes dois polos."

Juan Iubini, técnico metalúrgico de Concepción, recusou-se a saquear os comércios, ao contrário de seus outros vizinhos. "Vi pessoas fazendo coisas que nunca imaginei que fariam. Não posso dar esse exemplo de selvageria aos meus filhos", disse, no domingo passado. Na quarta-feira, ele procurava comida em toda a cidade com seu carro, cuja gasolina estava acabando. "A comida está no fim. Somos seis bocas, entre filhos, cunhada e sogro em casa. Se eu tivesse roubado, não teria fome. Mas eu prefiro deixar de comer para que, pelo menos, meus filhos comam. Recuso-me mesmo a dar o mau exemplo".

Seu sogro, Reigner Salazar, engenheiro elétrico, de 80 anos, sobrevivente dos três piores terremotos da história chilena (1939, 1960 e o da semana passada), disse que, no passado, "todos se ajudavam, ninguém roubava de ninguém". Ele deteve seu relato, secou uma lágrima com o lenço e disse: "Mas desta vez, tudo foi diferente. Parecem todos loucos. Não sei como essa sociedade vai se recompor nos próximos meses, quando vizinhos que roubaram vizinhos terão que manter novamente uma relação social."

FONTE: reportagem de Ariel Palacios e João Paulo Charleaux publicada hoje (07/03) no "O Estado de São Paulo".

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