segunda-feira, 2 de novembro de 2009

TRANSGÊNICOS - PARCERIA BRASIL-EUA?

"ENTREVISTA DA 2ª feira - NINA FEDOROFF

Brasil pode convencer África a aceitar os transgênicos

Assessora científica de Hillary Clinton prega "parceria" entre brasileiros e americanos para disseminar biotecnologia


"A parceria diplomática e científica entre o Brasil e os EUA pode ajudar a vencer a resistência dos países africanos aos transgênicos e abrir caminho para que vegetais geneticamente modificados tenham um impacto positivo para a segurança alimentar do mundo. É o que diz a bióloga Nina Fedoroff, 67, assessora especial de ciência da secretária de Estado Hillary Clinton.

Originalmente indicada por Condoleezza Rice para o cargo, ela se abstém de criticar o governo George W. Bush, ao contrário de muitos cientistas americanos, mas afirma que o presidente Barack Obama foi quem mais abraçou o conceito de "diplomacia científica".

Segundo ela, trata-se de usar a colaboração internacional entre pesquisadores como forma de fortalecer a ação conjunta sobre temas controversos, como os transgênicos -ou o aquecimento global e a explosão populacional, duas de suas grandes preocupações.

Fedoroff esteve em São Paulo na semana passada para tentar ampliar as parcerias na área de ciência e desenvolvimento entre americanos e brasileiros.

Em entrevista à Folha, reconheceu que é muito difícil fazer com que o público americano se importe o suficiente com as mudanças climáticas para levá-lo a agir.

Ela diz que estudos sobre a biologia das plantas cultivadas podem ser um caminho "semitecnológico" para minimizar o carbono na atmosfera e ataca os que rejeitam os transgênicos. "Não existe nenhum risco real. Os riscos, depois de 13 anos de plantio comercial, continuam sendo hipotéticos."

FOLHA - A sra. foi nomeada em 2007, durante o governo Bush, e foi confirmada no cargo na gestão Obama. Como avalia as diferenças entre ambos na diplomacia científica?

NINA FEDOROFF -
Bem, é um pouco difícil resumir a diferença à mudança de governos. Acho que toda a evolução em como a ciência é usada nas relações internacionais mudou ao longo das últimas décadas. Há 40 anos, 50 anos atrás o que importava era o uso disso para vantagens militares e comerciais, na corrida espacial. Mais recentemente, o que estamos vendo é uma tentativa de usar as universidades para encurtar a lacuna que existe entre as nações mais desenvolvidas e menos desenvolvidas, tanto tecnologicamente quanto em termos de educação e pesquisa. E o atual governo abraçou completamente esses conceitos. Não que o governo anterior fosse estranho à ideia, mas agora isso veio para a linha de frente.

FOLHA - O que a sra. tem como objetivo nos seus contatos com a comunidade científica aqui?

FEDOROFF -
Trata-se de uma intersecção entre a minha própria formação científica e a minha diplomacia pública, porque acho que um dos temas nos quais o Brasil e os EUA estão muito próximos é a ideia de abraçar a moderna biologia molecular para modificar lavouras, a coisa que todo mundo chama de OGMs [organismos geneticamente modificados]. O Brasil tem uma história ambivalente a respeito disso, mas acho que, nos últimos cinco anos, houve uma evolução. Achamos que isso é tremendamente importante porque pode nos permitir usar a biologia molecular não apenas nos nossos dois países ricos, mas para nos unir e ajudar países onde a produtividade agrícola não teve tanto apoio da ciência como o que existe no Brasil e nos EUA. Nesse ponto, existem diferenças enormes, particularmente na África. Porque a rejeição da Europa aos OGMS, que não é cientificamente fundamentada, mas é muito forte, tem criado um efeito extremamente negativo na possibilidade de usar essas técnicas na África, onde elas são muito necessárias. E uma faceta maravilhosa dessas tecnologias é que elas independem de escala: ajudam o pequeno produtor tanto quanto o grande. Um dos objetivos da minha vinda é favorecer essa colaboração, e tivemos discussões muito ricas sobre como os setores público e privado podem colaborar nisso, unindo-se para aumentar a produtividade em países que ainda não chegaram lá.

FOLHA - Muita gente critica o fato de que os transgênicos disponíveis no mercado servem apenas para resistência a herbicidas, enquanto a promessa dos transgênicos que ajudariam a combater a desnutrição nunca se realiza.

FEDOROFF -
O grande gargalo é o excesso de regulação. Não são os direitos de propriedade intelectual. Temos um ótimo exemplo, que é o arroz dourado [com vitamina A]. Nesse caso, os problemas com patentes foram resolvidos com a ajuda de parcerias entre as empresas e o setor público, e entre os compradores e Ingo Potrykus [pesquisador suíço], que desenvolveu o arroz. Foi tudo resolvido num só ano. E isso já faz dez anos. É algo puramente político, e o lado político é que determina o processo regulatório. Todos os países ou bloqueiam completamente [os transgênicos] ou criam um excesso de regulação. Inclusive os EUA e o Brasil. Creio que hoje há 125 milhões de hectares no mundo plantados com OGMs, por 13,5 milhões de agricultores. Ninguém morreu -e as pessoas morrem de envenenamento por pesticidas o tempo todo. Não existe nenhum risco real. Os riscos, depois de 13 anos de plantio comercial, continuam sendo hipotéticos. E, contudo, há muita convicção pública de que há algo errado.

FOLHA - Seria possível diminuir essa resistência se as empresas fossem mais flexíveis em relação à propriedade intelectual? Ou a questão tem mais a ver com ideologia?

FEDOROFF -
Acho que tem mais a ver com mitologia, porque as empresas já têm feito isso. Os problemas de propriedade intelectual não são tão grandes porque você sempre pode conseguir uma licença, e essas empresas têm dado essas licenças de graça para países que não podem pagar, ou quando se trata de lavouras com pouco interesse comercial para elas. Então, não é a propriedade intelectual, são os mitos em torno dela, são os mitos de que de alguma forma a Monsanto vai forçar você a comprar sementes. Ora, ela não pode fazer isso. O único trunfo dela é criar sementes que tragam mais lucros para o agricultor.

FOLHA - Quem observa o debate sobre o aquecimento global nos EUA tem a impressão de que argumentos científicos não conseguem convencer o público americano a agir. O que está faltando no debate?

FEDOROFF -
Acho que, se Obama conseguir aprovar a reforma do sistema de saúde, ele estará numa posição mais forte. Acho que ele aceita os argumentos científicos, e realmente trouxe para a mesa gente que entende esses argumentos. Mas é verdade que, em relação à opinião pública, a aceitação de que o aquecimento é real chegou a um máximo...

FOLHA - ... e está começando a cair.

FEDOROFF -
Sim, o que não é tão surpreendente assim. Porque o custo é alto, e o montante de dinheiro disponível para manter o status quo é enorme. Acho que essa será a próxima grande batalha de Obama. E é absolutamente verdade que, seja no caso da reforma da saúde, dos transgênicos, da vacinação ou da mudança climática, é muito difícil comunicar apenas fatos, especialmente se há medo associado ao tema, ou um impacto econômico negativo.

FOLHA - O medo tem a ver principalmente com o custo? Ou é algo mais profundo, mais ideológico, como o medo da intervenção do governo na vida privada?

FEDOROFF -
Acho que é um pouco de todas essas coisas. E não tenho dúvidas de que essas coisas têm de ser lideradas pelo governo. E, se o governo perde essa credibilidade, todos nós vamos ter problemas. Contudo, acho bem possível que boa parte das mudanças virão das pessoas, pouco a pouco. Se você conseguir economizar um pouco de dinheiro ao redesenhar a sua casa, é mais provável que abrace a mudança. Tudo isso também pode ser um incentivo à inovação, o que nos coloca num momento muito interessante, porque o que está em jogo é tão crucial, dados os riscos do crescimento populacional e do aquecimento.

FOLHA - Claro que há oportunidades, mas não existe um risco de confiar demais em soluções tecnológicas que podem acabar não vindo quando se precisa delas?

FEDOROFF -
Eu não vejo um conflito entre soluções tecnológicas e soluções não-tecnológicas, porque sou uma bióloga de plantas. E acho que podemos modificar a maneira como nós praticamos a agricultura, e o modo como usamos as plantas como ralos [de carbono]. Não como biocombustíveis -porque, quando você está usando biocombustíveis, está basicamente tentando ficar no mesmo lugar, ficar quase no zero a zero. Mas, para usar plantas como ralos de carbono, você tem de reflorestar, "florestar" e cobrir partes da Terra que hoje não estão cobertas por vegetação de uma maneira ambiciosa. É uma solução semitecnológica, mas não tecnológica no sentido daqueles grandes esquemas de geoengenharia, como a ideia de colocar enormes espelhos em órbita da Terra para refletir a luz do Sol. Não há nada assustador em relação à agricultura no deserto -há países que fazem isso. Mas tornar isso algo bem mais amplo é algo no qual ainda não pensamos. Ainda estamos pensando apenas em ampliar as margens da produtividade atual com melhoramento de plantas. E há muito mais que podemos fazer para usar melhor a terra que temos à nossa disposição.

FOLHA - Como é que se lida com o conflito em torno da transferência tecnológica para adaptação e mitigação de mudanças climáticas dos países ricos para os países pobres?

FEDOROFF -
Acho que é exatamente nesse ponto que a diplomacia científica pode ajudar. Porque, se você desenvolver essas coisas colaborativamente, e comercializá-las colaborativamente, então temos uma situação boa para os dois lados. A exigência de que a tecnologia seja simplesmente doada fere tanto quem a dá quanto quem a recebe. Por isso queremos tanto enfocar a colaboração. E não precisa ser uma colaboração igual de cada parte.

FOLHA - A sra. mencionou repetidamente o problema do crescimento populacional. Esse é o tema mais importante da diplomacia científica hoje, na sua opinião?

FEDOROFF -
Sim. É claro que nós podemos espremer mais e mais gente na superfície da Terra, mas nós também valorizamos o pouco que nos restou de vida selvagem. E, no fundo, o conflito é simples: a escolha entre as necessidades vitais das pessoas e os recursos disponíveis. No caso das indústrias extrativistas, por exemplo -o petróleo vai acabar, embora há 50 anos as pessoas não acreditassem nisso.

Sabemos que minerar ouro vai poluir as águas. E uma das maneiras de realmente intervir nessa pressão é diminuir a velocidade do crescimento populacional. A área usada para produzir alimentos estacionou, a produtividade cresceu, cresceu e estacionou, o investimento em pesquisas nessa área diminuiu muito. E há um curinga que pode modificar totalmente a equação: quanto mais a renda das pessoas melhora, mais carne elas querem comer, o que exige muito mais terra do que o necessário para plantar cereais.

FOLHA - Com o avanço da biotecnologia empresarial, como se evita o perigo de transformar a ciência num garoto de recados do mercado?

FEDOROFF -
Não vejo isso como um grande perigo, porque a maioria dos cientistas abraça essa carreira porque simplesmente quer entender as coisas. Algumas pessoas querem ser empreendedores, e você não deve podar esse desejo. Contudo, mesmo no caso de produtos que chegam ao mercado, o que você vê inicialmente é a mera curiosidade. É o caso do laser, que não tinha nada a ver com aplicações tecnológicas no começo, e hoje está em toda parte.

"Hoje há 125 milhões de hectares no mundo plantados com OGMs, por 13,5 milhões de agricultores. Ninguém morreu -e as pessoas morrem de envenenamento por pesticidas o tempo todo. Não existe nenhum risco real. Os riscos, depois de 13 anos de plantio comercial, continuam sendo hipotéticos. E, contudo, há muita convicção pública de que há algo errado", NINA FEDOROFF, assessora científica do Departamento de Estado dos EUA, sobre transgênicos.

"Seja no caso da reforma da saúde, dos transgênicos, da vacinação ou da mudança climática, é muito difícil comunicar apenas fatos, especialmente se há medo associado", NINA FEDOROFF, sobre o debate sobre o clima nos EUA

"A exigência de que a tecnologia seja simplesmente doada fere tanto quem a dá quanto quem a recebe", IDEM, sobre transferência de tecnologia de energia limpa para países pobres".

FONTE: reportagem de José Lopes, publicada na Folha de São Paulo de hoje (02/11).

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