sábado, 19 de março de 2011

SOBRE PRETEXTOS, MÁGOAS E HIPOCRISIAS

                       Cena típica de "zona de exclusão aérea"

“Não obstante as abstenções chinesa e russa na votação da resolução que autorizou a ação militar ocidental na Líbia, é evidente que outros interesses, além dos estadunidenses, estão conspirando a seu favor. Mágoas históricas inglesas e francesas, assim como interesses empresariais privados, também esperam pelo acerto de contas.

Por Marcelo da Silva Duarte

Escrevia este artigo enquanto o governo líbio anunciava, em tese, a suspensão imediata de sua ofensiva militar contra os oponentes do regime de Muamar Khadafi.

Essa estória, no entanto, começou na última quarta, 14.

Só a desavisados surpreendeu que a resolução da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovada na quinta-feira (17), estabelecendo zona de exclusão aérea na Líbia e autorizando “todas as medidas necessárias” para “proteger civis e áreas habitadas por civis” de ataques das forças do governo, tenha sido admitida somente após a recente ocupação do Bahrein pelas forças militares da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos, no último dia 14.

Na última terça, tropas árabes e dos Emirados entraram em Bahrein a fim de proteger instituições financeiras e instalações de gás e petróleo da escalada de protestos contra o governo local, um belo eufemismo para a surreal tendência monárquica de se perpetuar no poder a qualquer custo.

Ainda que os Estados Unidos (EUA) prescindam absolutamente de qualquer pretexto a fim de semear pelo mundo seu ‘american way of life’, tudo o que a ideia inicial da resolução proposta por Grã-Bretanha, França e Líbano –e que contou com apoio dos EUA- esperava era de um subterfúgio tal como o fornecido pelo Reino do Bahrein, controlado desde 1783 pelos sunitas da família Al Kalhifa, atualmente chefiada por Hamad ibn Isa Al Khalifa, emir desde 1999 e autoproclamado Rei do Bahrein em 2002.

Embora conte com a simpatia do Conselho de Cooperação do Golfo (CCASG, Cooperation Council for the Arab States of the Gulf, na sigla em inglês), entidade que congrega política e economicamente seis países do Golfo Pérsico -Bahrein, Kuwait, Omã, Catar, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos-, a estratégia do “Reino dos Dois Mares”, ao fim e ao cabo, afastou qualquer temor de condenação internacional de uma até então hipotética ocupação do território líbio por forças ocidentais. Se um determinado governo pode convocar tropas estrangeiras a fim de proteger seus interesses privados, nada impede que rebeldes de outra nação, insatisfeitos com violações de direitos humanos e arbitrariedades de seu governo internacionalmente reconhecidas como tal, solicitem e contem com a ajuda de forças internacionais.

Tal estratégia abriria precedente histórico contemporâneo se os EUA não tivessem, em 1990, sob os auspícios da então União Soviética e do Reino Unido de Margaret Thatcher, então primeira-ministra, metido o bedelho na invasão do Kuwait pelo Iraque de Saddam Hussein, que reivindicava o perdão da dívida iraquiana contraída com o país vizinho durante a guerra contra o Irã, na década de 80, e a integração do território kuwaitiano, historicamente parte do Iraque, segundo o ditador. Ninguém teria o direito de, sozinho, apropriar-se das reservas de petróleo kuwaitianas, pensou o então presidente estadunidense George H. W. Bush.

Entretanto, em função do clima político revolucionário no Oriente Médio e da belicosidade -em certa dose covarde, doentia e oportunista- dos principais atores envolvidos na aprovação da resolução que permitiu, na prática, o bombardeio do território líbio -a Itália, da ditadura branca do pervertido Silvio Berlusconi, foi a primeira a oferecer bases militares para a operação ocidental, e a França, do corajoso detrator de minorias Nicolas Sarkozy, foi a primeira a oferecer sua força aérea a fim de o bombardear-, a estratégia de sobrevivência do Reino do Bahrein arejou a até então abafada sala na qual transcorriam, entre ameaças, negaceios e traições, as negociações para o fim pacífico do conflito líbio.

A despeito, portanto, do suposto cessar-fogo declarado pelo governo Líbio –informações recentes da Rede Al Jazeera davam conta que os ataques contra oposicionistas continuavam, mesmo após a trégua-, o ocidente “esclarecido” já direcionou sua artilharia contra o antigo aliado Muamar khadafi. E, não obstante as abstenções chinesa e russa na votação da resolução que autorizou a ação militar ocidental, é evidente que outros interesses, além dos estadunidenses, estão conspirando a seu favor. Mágoas históricas inglesas e francesas, assim como interesses empresariais privados, também esperam pelo acerto de contas.

A abstenção brasileira na votação no Conselho de Segurança da ONU –que, segundo a embaixadora brasileira Maria Luisa Viotti, "não deve de maneira alguma ser interpretada como endosso do comportamento das autoridades líbias ou como negligência para com a necessidade de proteger a população civil e respeitarem-se os seus direitos"–, por sua vez, deve explicações à postura adotada pelo país diante dessa mesma resolução. Conforme a mesma Maria Luisa Viotti, "o texto da resolução em apreço contempla medidas que vão muito além desse chamado. Não estamos convencidos de que o uso da força como dispõe o parágrafo operativo 4 (OP4) da presente resolução levará à realização do nosso objetivo comum –o fim imediato da violência e a proteção de civis”.

A despeito de todo o sangue até aqui derramado, nada impede, ainda, que se encontre solução pacífica para o conflito. Nada impede, por exemplo, que se aproveite o cessar-fogo declarado pelo governo a fim de se negociar o posicionamento de forças internacionais na região sob posse dos rebeldes líbios, estabelecendo-se zona de exclusão aérea e terrestre sem se disparar um tiro sequer.

Resta saber, mais uma vez, se ainda há alguma dignidade naquilo que se convencionou chamar de “comunidade internacional”. As janelas para o diálogo foram mais uma vez abertas, embora a sala ainda esteja abarrotada de interesses menos nobres, para se dizer o mínimo. A força jamais será o último recurso quando todos se despirem de suas hipocrisias.”

FONTE: escrito por Marcelo da Silva Duarte, mestrando em filosofia. Mantém o blog www.laviejabruja.blogspot.com. Publicado no site “Carta Maior” (http://www.cartamaior.com.br/templates/analiseMostrar.cfm?coluna_id=4991) [imagem do Google adicionada por este blog].

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