sábado, 19 de março de 2011

KADAFI VOLTOU A SER INIMIGO DO OCIDENTE


“A história volta a se repetir com pontualidade sangrenta, como no Panamá, Iraque e Afeganistão: outra vez é preciso armar coalizão e lançar bombas para extirpar mal que foi se arraigando com a cumplicidade, e até a ajuda direta, daqueles que hoje se mobilizam para derrotá-lo. Noriega foi aliado das superpotências, do mesmo modo que Saddam Hussein no Iraque e os talibãs no Afeganistão. Tirá-los do poder custou milhares de vidas humanas inocentes. Kadafi e seus sócios tardios fizeram cair sobre o povo líbio o mesmo e repetitivo destino.

Por Eduardo Febbro, de Paris, para o jornal argentino “Página/12”

Muammar Kadafi foi retirado definitivamente do altar ao qual havia sido conduzido pela gula ocidental, pelos petronegócios e pela desfaçatez do sistema financeiro internacional. O tirano, que durante quase duas décadas foi considerado o “inimigo número um” do Ocidente para logo converter-se no vistoso aliado de seus inimigos de agora, voltou ao seu estatuto originário. A resolução adotada pelo Conselho de Segurança da ONU não deixa nenhum espaço para a ambiguidade: o dispositivo militar já está preparado e só faltava a famosa “base jurídica” reclamada pela OTAN. Paris e Londres levaram até um final tardio sua ideia de instaurar zona de exclusão aérea para neutralizar a força aérea de Kadafi.

As provocações mútuas tornaram inevitável a participação árabe-ocidental em nova cruzada militar contra país árabe. A Líbia se soma, assim, ao Iraque e ao Afeganistão à lista de países que passarão temporada sob as bombas de coalizão onde o poderio militar do Ocidente marcará as orientações. Era necessário o voto a favor de 9 dos 15 membros do Conselho de Segurança e também que nenhum dos integrantes permanentes do Conselho vetasse a resolução. China e Rússia se abstiveram e, com isso, abriram passagem ao operativo militar.

A comunidade internacional, fragmentada, salvará no fio da navalha a já asfixiada oposição líbia. Cercada em seu feudo de Benghazi pelas forças leais ao regime, a participação direta do Ocidente era a única cartada que podia salvar a oposição do despenhadeiro. “Preparem-se, esta noite chegamos”, disse Kadafi aos habitantes de Benghazi. Talvez, as primeiras a chegar sejam as bombas ocidentais apoiadas por alguns países árabes como Emirados Árabes Unidos, Qatar e Egito. Washington conseguiu seu propósito de transferir a responsabilidade da ação principal aos países vizinhos, ou seja, os europeus com costas mediterrâneas e os árabes. França e Inglaterra, promotores da resolução, assumirão a maior parte da responsabilidade do Ocidente, apesar de os Estados Unidos serem a força dominante na OTAN.

Não é certo que a guerra total seja a aposta definitiva. O Guia Supremo da desgastada revolução líbia soube dar marcha ré diante do abismo. A partir de 2003, Kadafi demonstrou seu sentido de realismo quando, impressionado pela invasão do Iraque e a captura de Saddam Hussein, retrocedeu em seu principal projeto, a acumulação de armas de destruição massiva, e reconheceu a responsabilidade em dois atentados: contra o avião da PanAm que explodiu sobre a localidade de Lockerbie (1988, 270 mortos) e contra o avião francês da companhia UTA (1989, 170 mortos). Esse foi o início do idílio público entre o coronel e seus juízes de anos anteriores. Investimentos e visitas de Kadafi às grandes capitais do mundo e viagens dos democratas a Trípoli consagraram o retorno do coronel ao “eixo do bem”. Ou seja, os negócios ficaram seguros ainda que as mãos que firmavam os contratos estivessem manchadas de sangue.

Pode ser que faça o mesmo agora. A resolução da ONU é ampla e explícita. A OTAN e a Liga Árabe apoiaram a instauração de zona de exclusão e isso os converte em aliados diretos da intervenção. Pressionado internamente pelos rebeldes, monitorado pelo céu e cercado pelo mar, Kadafi tem as horas contadas. Kadafi ofereceu a repressão selvagem a seu povo e uma fonte de água benta para que o Ocidente lave a sua má consciência.

Não cabe a mais remota dúvida de que as armas já estão preparadas. Na noite de quinta, tanto o primeiro ministro francês, François Fillon, como o chefe da diplomacia, Alain Juppé, adiantaram que a força seria empregada quando a resolução fosse aprovada. Alain Juppé precisou, inclusive, o modo da operação: “Está excluído que se faça algo em terra. Está claro. A alternativa é a utilização da força aérea”. Talvez Kadafi tenha calculado mal a convicção de seus sócios do Oeste. Pensou que suas divisões profundas e suas debilidades morais e energéticas permitissem que ele sufocasse a revolta com custo mínimo. O Ocidente também se equivocou com ele e com as reais capacidades da oposição. As demoras e o duplo erro resultaram em centenas e centenas de mortos, destruição e êxodo de centenas de milhares de pessoas para as fronteiras.

O movimento democrático líbio terminou condicionado à pior opção para triunfar: derrubar Kadafi com o respaldo de forças estrangeiras. Os movimentos de uns e outros condenaram a contrarrevolução líbia a uma assistência estrangeira. Kadafi não deixaria o poder sem matar e sem zombar da OTAN e da ONU. O Ocidente, por sua vez, não poderia deixá-lo ganhar sem cair no ridículo. Kadafi foi um sócio perfeito, na paz e na guerra. Sua previsível derrota se forjou segundo suas condições. Matou seu povo sem concessões e provocou o Ocidente para que viesse buscá-lo. A história volta a se repetir com pontualidade sangrenta, como no Panamá, Iraque e Afeganistão: outra vez é preciso armar uma coalizão e lançar bombas para extirpar mal que foi se arraigando com a cumplicidade e até a ajuda direta daqueles que hoje se mobilizam para derrotá-lo. Noriega foi aliado das superpotências, do mesmo modo que Saddam Hussein no Iraque e os talibãs no Afeganistão. Tirá-los do poder custou milhares de vidas humanas inocentes. Kadafi e seus sócios tardios fizeram cair sobre o povo líbio o mesmo e repetitivo destino.”

FONTE: escrito por Eduardo Febbro, de Paris, para o jornal argentino “Página/12”. Publicado no site “Carta Maior” com tradução de Katarina Peixoto (http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=17562)

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