"Individualismo feroz
A resistência enfrentada por Barack Obama reflete uma elite que busca substituir a fraternidade pela caridade
A dificuldade que o presidente Barack Obama está enfrentando para aprovar legislação universalizando os cuidados de saúde é tão surpreendente quanto previsível. É surpreendente porque é inconcebível que o país com a maior renda do mundo por habitante não garanta atendimento de saúde gratuito a todos os seus habitantes, enquanto países com renda per capita menor, inclusive o Brasil, asseguram esse direito. Em relação a outros bens públicos como educação universitária, prestígio social, número de amigos, e mesmo na graça divina, é razoável que os indivíduos que revelam maior aptidão ou maior interesse tenham maior participação.
Não há, porém, teoria de justiça que justifique que os mais ricos tenham acesso a melhores cuidados de saúde do que os pobres. Os países que dispõem de sistemas universais de atendimento de saúde estão longe desse ideal de justiça, mas deram um passo importante nessa direção. Surpreendentemente, não é o caso dos Estados Unidos.
O fenômeno, entretanto, é previsível quando consideramos que a existência de um sistema universal de saúde assegurado pelo Estado pressupõe certo grau de fraternidade -virtude incompatível com o individualismo feroz que prevalece naquele país. Condições históricas favoráveis, principalmente a colonização da Nova Inglaterra por puritanos que puderam reproduzir a sociedade inglesa sem suas graves desigualdades sociais, permitiram que os EUA se desenvolvessem de forma extraordinária até a Segunda Guerra.
Aquele, porém, foi um momento de auge; foi provavelmente o limite a que pode chegar uma sociedade baseada em individualismo tão forte. Desde então, enquanto os países europeus e alguns países em desenvolvimento reorganizaram suas sociedades em nome tanto do desenvolvimento econômico como da solidariedade e montaram um Estado social ou do bem-estar, os EUA perdiam gradualmente poder e influência.
O colapso da União Soviética representou uma retomada para os EUA, mas, à medida que se baseou em uma ideologia, o neoliberalismo, que radicalizava o individualismo, foi uma retomada com voo curto.
O presidente americano e muitos dos seus concidadãos reconhecem a injustiça envolvida na falta de um regime universal de saúde, e querem resolver o problema. A resistência que enfrentam, entretanto, reflete uma elite que não quer pagar mais impostos e busca substituir a fraternidade estatuída na lei pela caridade.
Reflete também o atraso democrático de um país que admite como "natural" que as empresas de seguro e de convênios médicos, que defendem seus interesses privados, sejam vistas pela imprensa como detentoras da mesma legitimidade que os cidadãos que discutem em nome do interesse público.
Essa incapacidade de distinguir a natureza dos debatedores é o resultado de um individualismo neoliberal que rejeita a ideia de interesse público ou de bem comum e afirma que apenas existem interesses privados. Estes competiriam pelas políticas públicas de forma muito semelhante àquela através da qual as empresas competem no mercado por lucro. A sociedade transforma-se assim em mercado, com uma diferença: enquanto que para este funcionar bem basta o preço definido na concorrência, para que a sociedade funcione bem a concorrência pelo poder não basta: é necessária também a solidariedade. As dificuldades que o presidente Obama está enfrentando para aprovar a universalização dos cuidados de saúde indicam quanto o individualismo feroz é ainda forte em seu país."
FONTE: artigo de Luiz Carlos Bresser, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994". Publicado no jornal Folha de São Paulo de hoje (28/09). [título deste blog]
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