"A tragédia haitiana toca profundamente a dimensão humana das relações internacionais do início do novo século. No Haiti duela o realismo político, que vê poder e soberania a serem preservados ao final dos acontecimentos, contra a vontade idealista de um mundo povoado por mais previsibilidade, cooperação e equilíbrio entre fortes e fracos.
O desejável — ante o imenso esforço de agências multilaterais humanitárias, governos sensíveis ao drama e grupos organizados de diferentes sociedades de todo o mundo — seria que o drama da ilha caribenha fosse um ponto de inflexão para o melhoramento dos padrões de construção de normas internacionais. O que se está a observar, no entanto, não é animador no que tange à dimensão propriamente humanitária das relações internacionais. Militarizou-se o salvamento de vidas.
O Haiti está enclausurado pelas disputas da politização da tragédia. Depois de Copenhague, onde pesou o arranjo sino-americano, o Haiti é o novo palco para a exibição dos interesses e das quedas de braço entre grandes atores estatais.
Esquecido pelas grandes potências, que minguaram recursos e esforços diplomáticos para o alívio da pobreza, o Haiti destes dias é exemplo de país miserável abandonado pela falta de coordenação internacional dos girantes da ordem internacional contemporânea.
Agora, em um passe de mágica, as mesmas potências reivindicam e agem, com mãos de força e poder militar, na operação do aplainar os cemitérios. Silenciou-se repentinamente o discurso monocórdio do combate irracional e linear ao chamado terrorismo internacional, conceito ainda não bem definido, de Bush a Obama. Tudo é humanitarismo nas lágrimas de crocodilos dos líderes cínicos. O que se ouve são discursos de desdobrada atenção ao drama do Haiti. E juras de salvação do povo haitiano às vésperas de eleições e interesses pragmáticos.
Politiza-se a ajuda internacional, como no caso do clima, dos direitos humanos, e de outros temas da agenda renovada das relações internacionais, quando o que importa é o esforço de salvar vidas. O governo do presidente Obama, no transcurso de um ano de sua posse na Casa Branca, não se faz muito diferente dos governos anteriores na sua área natural de hegemonia natural e concêntrica dos ianques. Esqueceram os esforços brasileiros no Haiti e de parte da comunidade internacional.
Apresentaram-se os norte-americanos, agora, por temor dos chineses na região, como os únicos capazes de salvar os flagelados. Desenvolveu Obama a solução militar, à moda iraquiana e das guerras africanas, a confundir ajuda com distribuição, por aviões em movimento, das migalhas aos desesperados. E ainda quer levar haitianos para, veja o inacreditável, a base militar de Guantánamo. Para que? Por quê? Leram a história de Guantánamo nos resumos da internet? Não possuem ideia do que essa ideia simboliza?
O Brasil devotou esforço, em especial aquele dos sacrifícios pessoais dos militares brasileiros, em missão de reconstrução humana, infraestrutural e gerenciada pela ONU no Haiti. Mas o país vem sendo apenas discretamente reconhecido pelos grandes atores, apesar dos afagos de conveniência de Obama ao presidente do Brasil. Obama agora quer oferecer os famosos US$ 100 milhões que o Brasil já havia solicitado para obras de infraestrutura do Haiti de forma a domesticar a opinião pública norte-americana e os interesses eleitorais. Mas não deu certo, como se verificou na eleição do senador republicano para o Congresso. Espero que o Brasil não faça o mesmo.
A coordenação dos esforços de construção do Haiti deve ser multinacional, a recordar que o esforço humanitário é apenas uma etapa para o longo prazo, de fortalecimento das instituições e da cidadania, ao lado da reconstrução social e econômica do país. A quadra histórica é a de mover apenas a dimensão humana para o centro das relações internacionais. Esqueçam senhoras e senhores líderes mundiais, ainda que apenas por uma noite de verão, o sonho eterno da preservação dos próprios poderes. O Haiti de lá e os Haitis daqui ficariam menos inconformados."
FONTE: escrito por JOSÉ FLÁVIO SOMBRA SARAIVA, Ph. D. pela Universidade de Birmingham, Inglaterra, professor titular em relações internacionais da UnB e pesquisador 1 do CNPq. Publicado hoje (24/01) no Correio Braziliense.
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