sábado, 9 de julho de 2011

O TROCO QUE ITAMAR DEU EM FHC EM 1999


Por Ricardo Amaral

“Encontrei nos meus guardados essa matéria de janeiro de 1999.

Foi durante uma das temporadas de caça ao Itamar na imprensa brasileira; esta, por conta de uma moratória de gogó, pois o governo de Minas pagou tudinho dentro dos prazos.

Na presidência, ele já havia apanhado pelos acertos (a volta do Fusca, face mais visível das câmaras setoriais negociadas com a CUT de Vicentinho) e pelos erros (no episódio do carnaval, a moça sem calcinhas era um detalhe; vexaminosa era a bebedeira pública da comitiva presidencial, ministros inclusive).

Itamar podia ser enjoado e rancoroso (Tancredo dizia que ele guardava ódio na geladeira), mas nunca foi bobo.

Quando voltei a Belo Horizonte para fazer essa matéria, a pauta óbvia era tratá-lo como napoleão-de-hospício. Errado. Depois de perder para os tucanos a batalha de mídia em torno da paternidade do Real, Itamar dava o troco com a moratória mineira. Sem caixa para governar o Estado, decidiu "fugir para frente" com uma manobra política manjada. Ganhou fôlego em casa e ajudou o PT a criar a frente política que derrotaria o PSDB de Serra e FHC nas presidenciais de 2002.

A "NOVA INCONFIDÊNCIA" (matéria de janeiro de 1999)

Calote decretado por Itamar Franco contagia mineiros que acreditam poder mudar a relação com o Planalto

“O governador Itamar Franco e sua moratória estão em alta no mercado. Pelo menos no Mercado Central de Belo Horizonte, por onde circulam, diariamente, cerca de 10 mil agentes econômicos de corpo e alma -gente do povo. "O governador está salvando Minas Gerais e nós o prestigiamos", diz Olímpio Marteleto, do Armazém Aymoré, decano entre os 422 comerciantes do local, centro de abastecimento e análise política desde 1929.

No velho mercado encontra-se de tudo: o queijo-de-minas e o pão de queijo, a carne e os temperos, o fumo e a palha, a manivela e a pipa. Encontra-se também a média da opinião pública da cidade, e esta, pelo menos no momento, mantém o topete erguido e perfila-se com Itamar, tanto quanto os seis governadores de partidos de oposição que, na segunda-feira 18, passaram em revista a tropa dos Dragões da Inconfidência nos portões do Palácio da Liberdade.

Demonizado em Brasília, coração do poder político brasileiro, e em Wall Street, coração financeiro do mundo, onde é considerado o estopim de uma crise de proporções globais, Itamar tem a compreensão dos analistas e agentes econômicos do centro da capital. "Nosso governador não derrubou o mercado de dólares, que já estava no chão desde o lançamento desse tal de euro", diz Edmar Antunes, o Salim da Queijaria Carolina, com 29 anos de experiência. "Fizeram dele um bode expiatório." Na banca do Salim, a popularidade do governador subiu "uns 30%, bem pesados" desde que foi suspenso o pagamento da dívida do estado com a União. "Ele vai pagar tudo, nunca falou em dar o calote", acode Antônio Procópio, o Seu Mala (no velho mercado, todos carregam apelidos). Seu Mala, de 63 anos e 44 de mercado, acha que o governador encontrou mais abacaxis no Palácio da Liberdade do que em sua banca de frutas. "Precisa deixar o homem arrumar a casa primeiro para depois cobrar."

Inspirado pelo jornalista Mauro Santayana, seu ‘ghost writer’ quando ocupou o Palácio do Planalto, e pelo ex-ministro José Aparecido de Oliveira, embaixador em Lisboa quando foi presidente, Itamar reveste seus atos com a rebeldia atávica que a topografia de Minas desperta. Inicia os discursos com nova saudação: "Montanheses e montanhesas". Transformou o dia 20 de janeiro, data de vencimento da parcela mensal da dívida contratada pelo estado com a União, numa espécie de ‘Nova Derrama’, resgatando o horror dos mineiros à ganância da Metrópole. Mineiros são contribuintes disciplinados e devedores honrados -tradição que deu a Minas Gerais a primazia no lançamento de títulos no exterior. A Derrama, no entanto, era uma ignomínia, uma sobretaxa arrecadada a ferro e fogo por Portugal depois que o quinto regular do ouro havia sido esbanjado e transferido para bancos ingleses. Em 1789, tornou-se a senha para a Inconfidência do alferes Tiradentes.

O espírito de Nova Inconfidência contagiou os manifestantes reunidos para encerrar, com cheiro de povo, a reunião dos governadores. Eram 3 mil, segundo a PM, e entraram nos jardins do palácio obedientes ao comando de "por favor, não pisem na grama". Não eram estudantes cara-pintadas, mas, na maioria, funcionários públicos de cabeças brancas, chefes de família, gente madura e os sindicalistas de sempre, só que "a favor". Apenas alguns degraus acima da multidão, cercado pelos chefes da esquerda, Itamar parecia o comandante de uma nova revolução, como Fidel Castro descendo a Sierra Maestra. O presidente do PT, José Dirceu, acompanhava atento o discurso do senador eleito pelo PMDB-MG, José Alencar, capitão da indústria têxtil e rebelde como um guerrilheiro. "Os empresários começam a se juntar a nós", exultou Dirceu, ao lado do deputado radical Arlindo Chinaglia (PT-SP).

Como o Fidel de 40 anos atrás, Itamar é um político nacionalista que ainda não sabe aonde vai chegar com os companheiros de formação marxista. O secretário da Fazenda, Alexandre Dupeyrat, executor da moratória, acha que o objetivo não é só a renegociação da dívida, mas a construção de um novo modelo de Estado. "Por que me perguntam se vou pagar os Eurobônus e ninguém se preocupa com o dono do armazém onde o funcionário público tem conta?", desafia Dupeyrat. Ao contrário de Fidel e de Tiradentes, Itamar chefia uma tropa regular de 41.300 homens. Em duas ocasiões, a PM de Minas saiu dos quartéis para sustentar governadores rebeldes: Antônio Carlos Andrada, na Revolução de 30, e Magalhães Pinto, no Golpe de 64. Ambos venceram presidentes fracos. Há dois anos, houve o motim que contagiou o país e destruiu a hierarquia da corporação. Itamar chamou o líder da revolta, o ex-cabo Júlio Gomes dos Santos, deputado eleito pelo PL com 300 mil votos, para arrumar a casa. "O cabo não indicou ninguém, houve apenas uma coincidência entre nossos critérios e os dele", diz Henrique Hargreaves, secretário da Casa Civil. A coincidência chama-se coronel Mauro Lúcio Gontijo, novo comandante-geral da PM.

Assegurada a retaguarda da PM, Itamar chamou o PT para o secretariado, garantiu 50 votos entre os 77 da Assembléia Legislativa e está isolando os adversários locais, do PSDB e do PFL. Mesmo os próceres do governo anterior, do tucano Eduardo Azeredo, têm dificuldade de atacar o governador. "A situação é gravíssima e a culpa pelo agravamento da crise não é do governo de Minas", reconhece o empresário Clésio Andrade, do PFL, que foi candidato a vice-governador na chapa de Azeredo. "Os interesses de Minas estão em primeiro lugar", concorda, cauteloso, o deputado Osmânio Pereira, vice-presidente do PSDB. Ambos defendem, como Itamar, a renegociação da dívida com a União.

O porta-voz presidencial, Sérgio Amaral, foi enviado pelo presidente Fernando Henrique a Belo Horizonte, na quarta-feira 20, para inocular na imprensa local uma pesquisa encomendada pelo Palácio do Planalto ao instituto MCI. Segundo a pesquisa do Planalto, 59% dos brasileiros reprovam a moratória e apenas 26% apóiam Itamar. Em Minas, o placar seria de 48% contra e 40% a favor. Amaral conseguiu apenas uma nota discreta no jornal Estado de Minas. O instituto local GD Perfil apurou, para o jornal ‘Hoje em Dia’, o apoio à moratória de 53,6% dos belo-horizontinos. "Qualquer governador conseguiria boa receptividade popular a um gesto de afirmação que simboliza a defesa dos interesses do estado", sustenta Marcos Coimbra, diretor do Vox Populi e que prepara pesquisa própria. Coimbra não ficaria surpreso com uma aprovação explícita à moratória em Minas, ainda mais expressiva. "O combustível desse apoio inclui também um sentimento de hostilidade e desaprovação ao governo federal", explica. O mercado concorda. "Foi bom o Itamar ter enfrentado Brasília", diz Seu Mala, o megainvestidor dos abacaxis, calculando outros dividendos da moratória. "O Fernandão estava precisando olhar mais para o pessoal de baixo."

FONTE: escrito por Ricardo Amaral, de Belo Horizonte (colaborou: Francisco Câmpera) (http://epoca.globo.com/edic/19990125/brasil8.htm). Transcrito no portal do jornalista Luis Nassif (http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/o-toco-que-itamar-deu-em-fhc-em-1999#more) [imagem do Google adicionada por este blog].

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