segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Ignacio Ramonet: A SOMBRA DAS “DEMOCRADURAS”

Ignacio Ramonet

“Que virá quando os europeus constatarem que seus sacrifícios são vãos? Uma resposta conjunta dos poderes econômico, midiático e militar?"

Por Ignacio Ramonet

"Agora está claro: não existe, no interior da União Europeia, nenhuma vontade política de enfrentar os mercados e resolver a crise. Até há pouco, atribuiu-se a lamentável atuação dos dirigentes europeus à sua desmedida incompetência. Mas essa explicação, ainda que correta, não basta, sobretudo depois dos recentes “golpes de Estado financeiros” que puseram fim, na Grécia e na Itália, a certa concepção de democracia. É óbvio que não se trata só de mediocridade e incompetência, mas de cumplicidade ativa com os mercados.

A que chamamos “mercados”? A este conjunto de bancos de investimento, companhias de seguro, fundos de pensão e fundos especulativos (“hedge funds”) que compram e vendem essencialmente quatro tipos de ativos: moedas, ações, papéis da dívida dos Estados e produtos derivados dos três primeiros.

Para ter ideia de sua força colossal, basta comparar duas cifras: a cada ano, as empresas de bens e serviços criam, em todo o mundo, riqueza estimada (se medida pelo PIB) em cerca de 45 trilhões de euros. Ao mesmo tempo, em escala planetária, os “mercados” movem capitais avaliados em 3.450 trilhões de euros. Ou seja, setenta e cinco vezes o que produz a economia.

Consequência: nenhuma economia nacional, por poderosa que seja (a da Itália é a oitava do mundo), pode resistir aos assaltos dos mercados quando esses decidem atacá-la de forma coordenada, como estão fazendo há mais de um ano contra os países europeus depreciativamente qualificados como PIGS [porcos, em inglês]: (Portugal, Irlanda, Itália, Grécia e Espanha).

O pior é que, ao contrário do que se poderia pensar, esses “mercados” não são unicamente forças exóticas, vindas de algum horizonte distante para agredir nossas gentis economias locais. Não. Em sua maioria, os “atacantes” são nossos próprios bancos europeus (esses mesmos que foram salvos, com nosso dinheiro, pelos Estados, na crise de 2008). Para dizer de outra maneira, não são apenas fundos norte-americanos, chineses, japoneses ou árabes os que estão atacando maciçamente alguns países da zona do euro.

Trata-se, essencialmente, de agressão de dentro, dirigida pelos próprios bancos europeus, as companhias europeias de seguros, os fundos especulativos europeus, os fundos europeus de pensão, as instituições financeiras europeias que administram as poupanças dos europeus. São eles que possuem a parte principal da dívida dos Estados. E que, para defender em teoria "os interesses de seus clientes", especulam e obrigam os Estados a elevar as taxas de juros que pagam, a ponto de levar vários (Irlanda, Portugal, Grécia) à beira da quebra. Com o consequente castigo para os cidadãos, que devem suportar medidas “de austeridade” e brutais ajustes decididos pelos governos europeus para “acalmar” os mercados-abutres – ou seja, seus próprios bancos.

Essas instituições, além de tudo, conseguem facilmente dinheiro do Banco Central Europeu a 1,25% de juros, e o emprestam a países como Espanha ou Itália a… 6,5%. Daí a importância escandalosa das três grandes agências de avaliação de riscos (“Fitch Ratings”, “Moody’s” e “Standard & Poor’s”): da nota que atribuem a um país, depende o nível dos juros que esse pagará para obter crédito dos mercados. Quanto mais baixa a nota, mais altos os juros.

Essas agências não apenas costumam equivocar-se – em particular em sua opinião sobre as hipotecas “subprime” [de segunda linha] norte-americanas, que deram origem à crise atual – mas desempenham, num contexto como o de hoje, papel perverso e execrável. Como é óbvio que todos os planos “de austeridade” de cortes de direitos e ataque aos serviços públicos irão se traduzir em queda do índice de crescimento, as agências baseiam-se nisso para rebaixar a nota do país. Consequência: esse deverá reservar mais dinheiro para o pagamento de sua dívida. Dinheiro que precisará obter cortando ainda mais o orçamento. Provocando queda inevitável da atividade econômica e das próprias perspectivas de crescimento. E então, de novo, as agências rebaixarão sua nota.

Esse ciclo infernal de “economia de guerra” explica porque a situação da Grécia foi se degradando tão drasticamente, à medida que seu governo multiplicava os cortes e impunha férrea “austeridade”. De nada serviu o sacrifício dos cidadãos. A dívida da Grécia baixou ao nível dos “títulos podres”.

Desse modo, os “mercados” obtiveram o que queriam: que seus próprios representantes cheguem ao poder, sem precisar submeter-se a eleições. Tanto Lucas Papademos, primeiro-ministro da Grécia, quanto Mario Monti, presidente do Conselho de Ministros da Itália, são banqueiros. Os dois, de uma maneira ou de outra, trabalharam para o banco norte-americano “Goldman Sachs”, especializado em colocar seus homens nos postos de poder. Ambos são, também, membros da “Comissão Trilateral”.

Esses tecnocratas planejam impor — custe o que custar socialmente e nos marcos de uma “democracia limitada” — as medidas que os “mercados” exigem (mais privatizações, mais cortes, mais sacrifícios) e que alguns dirigentes políticos não se atreveram a tomar, por temerem a impopularidade que tudo isso provoca.

A União Europeia é o último território no mundo em que a brutalidade do capitalismo é mitigada por políticas de proteção social. Isso que chamamos “estado de bem-estar”, os "mercados" já não toleram e querem demolir. Essa é a missão estratégica dos tecnocratas que chegam ao centro do governo graças a uma nova forma de tomada de poder: o golpe de Estado financeiro. Apresentado, é claro, como compatível com a democracia…

É pouco provável que os tecnocratas desta “era pós-política” consigam resolver a crise. Se sua solução fosse técnica, já teria sido adotada. Que se passará quando os cidadãos europeus constatarem que seus sacrifícios são vãos e que a recessão se prolonga? Que níveis de violência os protestos alcançarão? Como se manterá a ordem na economia, nas mentes e nas ruas? Haverá uma tripla aliança entre o poder econômico, o midiático e o militar? As democracias europeias se converterão em “democraduras”?

NOTAS

1 – “Na Espanha, por exemplo, 45% da dívida pública é controlada pelos próprios bancos espanhóis. Dos 55% restantes, dois terços são detidos por instituições financeiras do resto da União Europeia. Significa que 77% da dívida espanhola foi adquirida por europeus e que apenas os 23% restantes encontram-se em mãos de instituições estrangeiras à UE

2 - A nota mais alta é AAA, que no final de novembro só possuíam no mundo poucos países: Alemanha, Austrália, Áustria, Canadá, Dinamarca, França, Finlândia, Holanda, Reino Unido, Suécia e Suíça. A nota dos Estados Unidos foi rebaixada, em agosto, para AA+. A da Espanha é atualmente AA, idêntica às do Japão e China.

3 - Nos Estados Unidos, o “Goldman Sachs” já conseguiu, por exemplo, fazer de Robert Rubin secretário do Tesouro do presidente Clinton; e de Henry Paulson, o ocupante do mesmo posto no gabinete de George W. Bush. O novo presidente do Banco Central Europeu, Mario Draghi, foi também vice-presidente do “Goldman Sachs” para a Europa, entre 2002 e 2005.”

FONTE: escrito por Ignacio Ramonet Míguez (nascido em Redondela, Espanha, em 5 de maio de 1943), jornalista e sociólogo galego. Ramonet cresceu em Tânger. Estudou engenharia em Bordéus, Rabat e Paris. Ex-aluno de Roland Barthes, é doutor em Semiologia pela "École des hautes études en sciences sociales de Paris". Professor de Teoria da Comunicação da "Universidade Denis Diderot" (Paris VII) e professor associado da Universidade de São Petersburgo e da Carlos III, em Madri. Lecionou também nas universidades de Buenos Aires, Valência, Cuba, Porto Rico, Santo Domingo. Trabalha na França desde 1972 e desde 1991 é editor do “Le Monde Diplomatique”, edição espanhola. Artigo publicado no portal “Vermelho”  (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=170604&id_secao=9) [imagem do Google e dados do autor adicionados por este blog ‘democracia&política’]

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