segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

O AUTO-DE-FÉ DE GRAÇA FOSTER




O auto-de-fé de Graça Foster

Por Patrick Mariano, do "Justificando"

"Nelly Senff é uma doutora em engenharia química que, em 1975, resolve sair do leste para oeste de Berlim em busca de nova vida com o filho Alexej, após a morte do namorado. A vida nova na Alemanha Ocidental esbarra na difícil experiência de morar em um centro de refugiados e nos intermináveis e torturantes interrogatórios a que é submetida.

Aos poucos, descobre que a burocracia estatal da qual quis fugir e a insensibilidade impregnada nos procedimentos e processos administrativos não é muito diferente de um lado a outro. No Ocidente, fica à mercê do serviço secreto dos EUA que, impiedosamente, a coloca num jogo cruel de incontáveis interrogatórios sobre seu namorado. A ação faz com que Nelly desenvolva o medo e a desconfiança de tudo e de todos, até mesmo sobre a veracidade da morte do pai de seu filho. O processo pode despertar quadros paranóicos e isso Kafka bem ilustrou.

Tudo isso se passa no filme "Westen" (Alemanha, 2013), de Christian Schwochow. O filme faz parte da nova safra de filmes alemães e retrata, com profundidade, o drama do sujeito face ao estado. A luta é desigual e, quando não se dá em conformidade às regras estabelecidas, causa dor, sofrimento e a destruição do outro.

Nelly fugia de algo que ultrapassava as fronteiras e mal sabia que a sedução do poder punitivo sem freios é capaz de atravessar regimes e ideologias políticas.

Vivemos tempos parecidos. Existem algumas semelhanças entre a personagem do filme e Graça Foster, para além do fato de ambas serem engenheiras químicas. A personagem brasileira foi condenada sem julgamento por fatos que sequer participou. Como Nelly, sem sequer saber do que era acusada, passou meses sendo defenestrada na “opinião pública”, virou máscara de carnaval e viu, do seu apartamento, dezenas de pessoas a lhe atacar a honra e a dignidade.

De Foster pode se dizer (embora questionável seja) que não tenha sabido gerir uma empresa no momento de sua maior crise, mas não é disso que se trata. As pessoas que foram à sua residência não traziam cartazes escrito[1]: “má gestora”. Entre os inquisidores que foram a rua se ouvia:

a gente quer que ela abra a boca e conte [o que sabe sobre os esquemas de corrupção dentro da estatal] e deixe de blindar os envolvidos. Ela está envergonhando todo mundo”.

E nas janelas, moradores aplaudiam o protesto e gritavam:

Ô Graça Foster, você vai ver, o seu vizinho tem vergonha de você”.

Aqui, há muitas semelhanças com as cerimônias de penitência (auto-de-fé) ocorridos na península ibérica séculos atrás. As fogueiras foram substituídas pelas capas de jornais e revistas.

Poucos ali sabiam que Maria das Graças Silva Foster saiu do interior de Minas Gerais para o Rio de Janeiro, morou em favela da zona carioca e chegou a catar papelão e latas para contribuir na economia de casa até se tornar a primeira mulher a ocupar o cume da maior empresa brasileira.

O enredo de sua vida, que bem poderia sugerir uma homenagem de uma escola de samba, acabou destruído pelo fogo inquisidor. Muitas daquelas pessoas que lá foram à sua casa, não seriam capazes de fazer um escracho em frente à casa de um torturador da época da ditadura, mas foram capazes de insultar uma mulher que foi vítima de injusta campanha vilipendiosa.

Estamos todos a pequeno um passo midiático de sermos tidos por corruptos e criminosos. Saiu uma nova delação, mas qual? As capas de revistas e jornais prescindem de realidade concreta, basta a manchete. Para justificá-la, apenas se diz que Sicrano envolveu o nome de Fulano em uma delação premiada e pronto.

Com isso, não se está a dizer que crimes devem ser acobertados, nem que os responsáveis não sejam punidos, mas é que a forma que se vai com esse processo deixa a todos aqueles que acreditam na democracia atônitos."


FONTE: escrito por Patrick Mariano, do "Justificando". Transcrito no "Jornal GGN"  (http://jornalggn.com.br/noticia/o-auto-de-fe-de-graca-foster-por-patrick-mariano).

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