terça-feira, 1 de setembro de 2009

RUMO À INDEPENDÊNCIA

"Defesa – O acordo para a compra do submarino francês Scorpène com transferência de tecnologia, vai significar um salto inédito no programa nuclear brasileiro

Um óbvio simbolismo reveste o encontro entre o presidente Lula e seu colega francês Nicolas Sarkozy no próximo 7 de setembro. Para as Forças Armadas, e a Marinha em particular, a assinatura do acordo que vai permitir a construção do primeiro submarino nuclear brasileiro representa uma nova e definitiva independência, do ponto de vista estratégico. A oportunidade perseguida há mais de três décadas para controlar uma tecnologia dominada atualmente por apenas outras cinco nações do planeta. Para o resto da sociedade, será o início de uma caminhada que cedo ou tarde nos levará a um dilema: o Brasil pode aspirar a uma maior liderança no mundo sem montar um arsenal militar moderno e temível, o que inclui, ao menos, dominar o processo de fabricação de uma bomba atômica?

Não se trata de mania de grandeza nem de um debate trivial. O País tem uma tradição pacifista expressa de maneira rara. A Constituição brasileira é uma das únicas a registrar o compromisso do uso da tecnologia nuclear para fins pacíficos. Não só somos signatários do tratado de não proliferação de armamentos atômicos, o TNP, como figuramos entre os poucos Estados nacionais a incluir unidades militares entre as passíveis de fiscalização pela Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), num claro sinal de boa vontade cooperativa. Além disso, vistos o PIB, a renda e nossa reduzida, embora crescente, importância no cenário internacional, tratar do assunto pode soar como delírio ou patriotada de quem veste uniforme militar.

Mas eis o que diz um civil, o professor Eurico de Lima Figueiredo, coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense e presidente da Associação Brasileira de Estratégia de Defesa: “Pessoalmente, acho que em cinco ou dez anos a sociedade terá de dizer se quer ou não uma bomba atômica, independentemente de sermos signatários do TNP. É um passo natural de nossa independência nuclear. E isso terá de ser debatido por civis, dentro de regras democráticas”.

Segundo ele, caso as previsões otimistas em relação à economia brasileira se concretizem, teremos o quinto maior PIB do mundo em duas decadas, seguindo passos dos demais BRIC, e muitos interesses a defender. "Se a China, a Índia e a Rússia querem, porque não desejar um poderio militar?", pergunta o acadêmico.Figueiredo, como muitos especiastas civis e como sugere a Estratégia Naciona de Defesa em discussão no Congresso Nacional, defende que o governo não ratifique nenhum novo adendo ao TNP. Uma nova versão do tratado em discussão pretende ampliar as restrições ao uso de técnicas nucleares, inclusive em apliações civis.

O deputado federal José Genoino (PT-SP), conhecedor de assuntos militares, também defende a recusa do Brasil em assinar novos adendos ao tratado, embora não veja nenhuma necessidade de o País almejar a construção de um arcenal nuclear. "Como está n Cnstução, nosso interesse é dominar a tecnologia para fins pacíficos. Dominar esse ciclo de produção pode trazer ganhos expressivo à indústria", afirma Genoino. "A política de defesa adequada ao País é a dissuasória, não de confronto. Mas que quer se projetar precisa ter uma força condizente com posição que almeja. "O TNP foi criado e 1968 e previa, em sua origem, o completo desarmamento de países-signatários. Isso nunca aconteceu, apesar de o tratado ter passado por diversas ratificações ( a França e a China, por exemplo, recusaram a assinar a versão de 1992). O Brasil assinou TNP em 1995. Nove anos depois, em 2004, a tentativa de um observador da AIEA de olhar uma centrífuga de beneficiamento de urânio provocou mal-estar diplomático. O observaor, que violou a regras, fo obrigado a dixr o País.

Ainda que aparentemente prematura, a possibilidade de o Brasil obter avanços no setor nuclear e a forma como poderá e desejará usar os conhecimentos no futuro estão no centro do debate sobre o acordo com a França. A União vai pagar 6,8 bilhões de euros (perto de 21 bilhões de reais) por quatro submarinos convencionais do modelo Scorpéne e o casco de um nuclear, adaptado às exigências da Marimha. Entre outros quesitos, a versão brasileira será cinco vezes maior que a original, o que permite mais tempo debaixo da água. O valor inclui também a construção de um estaleiro e de uma base apropriados. E o mais importante, segundo a Marinha, prevê a transferência de tecnologia de fabricação de um submarino de propulsão nuclear, dominada por um clube restrito de países. Entenda-se: o Brasil está comprando um equipamento movido a energia nuclear e não equipado com armas atômicas.

O valor da transação e certas circunstâncias da negociação têm provocado críticas ao acordo. Nem sempre bem fundamentadas. E o caso, por exemplo, de comparar as ofertas da França e da Alemanha. A nossa atual frota de submarinos (menor do que a do Peru: 5 contra 6) é formada por equipamentos construídos pela HDW. A empresa alemã ofereceu ao governo brasileiro novas unidades por um décimo do valor pedido pela DNCS, a estatal francesa. O Brasil estaria então pagando caro pelos Seorpéne?

Não necessariamente. De acordo com a Marinha, é impossível comparar as duas ofertas. Primeiro, por um motivo trivial: o preço de 680 mi1hões de euros da HDW diz respeito a apenas duas unidades e não quatro convencionais – sem contar o protótipo do nuclear. Segundo, por um fator decisivo: em decorrência dos tratados assinados após a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha não possui armazenamentos atômicos. Portanto, mesmo se desejasse, a HDW não teria como transferir ao Brasil a tecnologia ou mesmo fornecer um submarino nuclear.

Só quatro países, além da França, poderiam fazê-lo. Os Estados Unidos, donos de uma frota de 95 submarinos nucleares, fabrica os modelos mais avançados. Mas o congresso americano veta a transferência de qualquer tecnologia na venda de equipamentos militares. Outra opção seria o Reino Unido, descartado por motivos semelhantes aos dos EUA. Restam a Rússia e a China, mas nenhum dos dois emergente se dispõe a compartilhar seus conhecimentos com o Brasil.

Há também uma duvida sobre o grau de transferência de tecnologia ofertado pelos franceses. Como o motor a propulsão será desenvo1vido por militares brasileiros, questiona-se o que então a Marinha está comprando de novo. “Há uma complexidade tecnológica que envolve a construção do casco e de partes internas do submarino. Não dominamos a técnica", explica Figueiredo. “Se o nosso programa nuclear não tivesse ficado estagnado nos últimos vinte anos, provavelmente as chances de desenvolver um projeto nacional, neste momento, seriam maiores. Mas isso não aconteceu e o acordo com a Franca é uma boa maneira de pular etapas do processo."

Jairo Cândido, diretor do Departamento de Defesa da Federação das Industrias de São Paulo, concorda: “Daremos um salto tecnológico de anos, senão de anos-luz. E com participação efetiva da industria nacional".

Para montar submarinos nucleares e operá-los no futuro, um novo estaleiro e uma nova base naval serão erguidos ao custo de 1,8 bilhão de euros, já contabilizados no preço; o total de 6,8 bilhões de euros. O local escolhido é uma área próxima ao Porto de Sepetiba, em Itaguaí, no Rio de Janeiro. A construção e a administração do complexo ate o fim da montagem do primeiro submarino nuclear serão feitas por uma Sociedade de Propósito Especifico formada pela francesa DNCS (49%), a brasileira Odebrecht (50%) e a Marinha (1%, além da golden share que lhe da poder de veto). Após essa fase, os termos da sociedade serão rediscutidos. As instalações vão permitir o apoio a dez submarinos e a construção de duas unidades de forma simultânea.

O arsenal da Marinha, no Rio de Janeiro, localizado praticamente embaixo da ponte Rio-Niterói serve para fabricar os atuais submarinos convencionais, mas não refine as condições de abrigar uma estrutura nuclear. Ha restrições ambientais, de profundidade e de segurança, pela proximidade com uma região densamente povoada. Tampouco existem outros estaleiros preparados no Pais. A área total do porto em Itaguaí terá perto de 980 mil metros quadrados. Será preciso construir um aterro hidráulico de 410 mil metros quadrados. Por razões de segurança, a Marinha não da detalhes do projeto arquitetônico do estaleiro e da base. Sabe-se, porém, que os galpões onde serão fabricadas as partes do equipamento no Brasil devem seguir os contornos do submarino, para maior segurança.

Desde os anos 90, a Marinha estuda áreas para erguer o estaleiro. Itaguaí acabou escolhida por questões logísticas. Fica próxima da Nuclebrás e das usinas de Angra, que já possuem um plano para emergências nucleares, e do eixo Rio-São Paulo. Além disso, esta localizada em uma área já degradada e com poucos moradores, o que facilita o processo de ocupação e obterção de licenças ambientais.

Segundo os militares, houve uma decisão do governo brasileiro de transferir aos franceses a escolha dos fornecedores nacionais que vão participar do projeto. Além da Odebrecht, cerca de 30 empresas vão produzir 36 mil itens do submarino, entre eles as baterias, que pesam 300 toneladas. O índice de nacionalização, parte do acordo de transferência de tecnologia, ficará em torno de 20%. “Acertou-se que tudo com prego igual ou menor do de fornecedores franceses seria produzido no Brasil. Mas, apesar de solicitada, a Marinha recusou-se, sequer, a indicar empresas possíveis, haja vista que qualquer indicação seria inevitavelmente forte de controvérsias futuras", afirma em nota o centro de comunicação social. Em termos civis: os militares quiseram evitar que o projeto se transformasse em uma guerra judicial sem-fim entre fornecedores brasileiros capaz de comprometer as obras.

Uma dúvida legitima é levantada no Congresso pelo deputado federal Júlio Delgado (PSB—MG), crítico do acordo com a França: um único submarino nuclear fará diferença na defesa do litoral? "Vários especialistas afirmam que estaríamos mais protegidos se, com esse dinheiro, comprássemos dez submarinos convencionais e os espalhássemos pela costa",diz o deputado. “Além disso, a Marinha não tem certeza de quando o nuclear estará ativo. Já vi documentos com varias datas diferentes: 2014, 2016, e agora 2021 (ou 2022). Como podemos aplicar tanto dinheiro sem saber quando o submarino vai entrar em operação?" Há meses Delgado tenta, sem sucesso, levar o ministro da Defesa, Nelson Jobim, a uma audiência na Câmara para discutir a transação.

A Marinha responde que não há comparação entre os convencionais e os nucleares. Os primeiros, movidos por motores elétricos e a diesel, precisam subir a superfície a cada cinco ou sete dias para recarregar, apesar de modelos mais modernos possuírem autonomia maior. Isso faz deles alvos mais fáceis e limitam tanto a profundidade quanto o percurso. Já os nucleares podem, em tese, ficar cerca de seis meses no fundo do mar. Em tese, pois sua autonomia esta relacionada a capacidade da tripulação de permanecer confinada. Sua capacidade de despiste e deslocamento é incomparável. "Por suas características, o submarino nuclear é muito mais adequado as necessidades do Brasil", rebate Genoino.

Segundo o professor Figueiredo, o Pais precisaria de, no mínimo, cinco submarinos nucleares em sua frota para defender a costa. A zona econômica exclusiva marítima, chamada pelos militares de Amazônia Azul, cobre 4,4 milhões de quilômetros quadrados. Mais de 90% do petróleo extraído no Brasil sai do mar (isso hoje, sem a exploração do pré-sal), assim como 95% do comércio exterior é realizado por navios. Uma razão técnica também pesa. Após esgotar seu ciclo de utilização, um submarino nuclear precisa de um a dois anos de recuperação no estaleiro para poder voltar a ser usado com eficiência.Dos 95 dos EUA, 35 estão em operação e 30 estão retornando aos mares para substituir parte da frota em atividade. “Mas, concluído o primeiro, será mais rápido fabricar outros", afirma o acadêmico.

Quanto a indefinição da data suscitada pelo Delgado, parece haver uma explicação simples. A Marinha tem sido evasiva em relação início da operação do submarino por questões estratégicas. Não há nenhum sentido em anunciar antecipadamente ao mundo quando o equipamento estará em pleno funcionamento.

Como se disse, pela importância relativa atual do Brasil, chega a ser cômico alimentar certas teorias conspiratórias, a exemplo do frenesi que contagiou parte da esquerda latino-americana quando os Estados Unidos anunciaram no ano passado a reativação da IV Frota, responsável por patrulhar o Atlântico Sul e desativada desde 1950. "Nada em defesa é por acaso", afirma Genoino. E ele parece ter razão. Negligente com a América do Sul nos anos Bush, os Estados Unidos tem enviado recados a sua zona de influência abaixo do Equador. Enquanto a IV Frota passeia pelos mares, o governo Obama fecha com a Colômbia de Álvaro Uribe a instalação de bases americanas, em substituição à área antes ocupada no Equador.

O fato de Lula e Sarkozy assinarem o acordo dos submarinos fere muito mais do que os interesses comerciais da Alemanha, que perderá un1 cliente estratégico no Hemisfério Sul. Os norte-americanos nos prefeririam que a Marinha brasileira não tivesse acesso a tecnologia francesa. E, quando pode, direta ou indiretan1ente, Washington tenta fazer prevalecer suas opiniões. Basta lembrar que, em 2005, os EUA, fornecedores de componentes, vetaram a venda dos aviões SuperTucanos da Embraer a Venezuela e ao Irã. Hugo Chávez acabou por fechar um contrato com a Rússia, reinaugurando um clima de Guerra Fria na América do Sul.

Sarkozy, por sua vez, diante da chance de recuperar algum prestigio internacional após a crise financeira, busca um parceiro estratégico entre os emergentes. Para seduzir Lula, o presidente francês tem prometido defender a inclusão do Brasil no Conselho de Segurança da ONU e na consolidação de nosso papel em um G-7 ampliado. E um arranjo, até o momento, conveniente a ambas as partes.

Realmente, do ponto de vista de Washington, há gente demais querendo invadir seu quintal. Antes de Sarkozy, o russo Vladimir Putin e o chinês Hu Jintao trataram de ampliar sua área de influência na região a partir do eixo bolivariano Caracas-La Paz-Quito. E não se trata apenas de uma questão territorial. Tem a ver com dinheiro.

A compra dos submarinos Scorpène terá efeitos inegáveis sobre outro negócio vultoso em curso, a compra de 36 caças pela Aeronáutica brasileira. Avaliada em 2,2 bilhões de dólares, a transação envolve três concorrentes. Os americanos oferecem o F18, sem transferência de tecnologia. Os suecos têm o Gripen e até se dispuseram a discutir acordos tecnológicos, mas um veto americano, via Israel, fornecedora de partes do avião, dificulta o desenrolar das negociações. A França disputa com o Rafale, da Dassault, sócia da Embraer. Ate 2006, o negócio tendia para o lado dos franceses, mas o projeto acabou indo parar na geladeira e só agora, após a apresentação da Estratégia Nacional de Defesa, voltou a ser discutido.

Genoino defende que também nesse caso o Brasil guie suas compras pela obtenção de pacotes tecnológicos. E lembra o caso do Sistema de Vigilância da Amazônia, o Sivam, comprado dos Estados Unidos no governo Fernando Henrique Cardoso (quem se lembra dos grampos que derrubaram Xico Graziano, apelidado "O Corvo", antes de o mandato de FHC completar seis meses?). Por conta das restrições impostas pelos americanos, diz o parlamentar, o País esta proibido de repassar ate mesmo dados e informações a vizinhos compartilham áreas da floresta.

Modernizar as Forcas Armadas é importante, mas o domínio da tecnologia nuclear deve ser analisado para além da ótica militar. Não se pode minimizar seus riscos à saúde e a segurança civil, como bem lembrou o Greenpeace em recentes manifestações contra o acordo com a Franca, mas também não se deve ignorar os avanços que podem proporcionar ao desenvolvimento do Pais.

Caso deseje realmente ser mais relevante no debate planetário, o Brasil precisa entender as conexões entre investimentos em defesa e desenvolvimento econômico. A energia nuclear é um dos tripés da criação de um complexo industrial-militar, completado pelas comunicações e as pesquisas aeroespaciais. "A própria França é um exemplo. A DNCS é estatal, mas opera como empresa privada. E desenvolve produtos civis e militares ao mesmo tempo. No Brasil, a Embraer segue esse modelo", afirma Guilherme Camargo, presidente da Associação Brasileira de Energia Nuclear (Aben). "A Estratégia Nacional de Defesa, em tramitação no Congresso, é histórica, entre outros pontos, por reconhecer essa conexão."

Em 2004, 17% dos investimentos em pesquisa nos Estados Unidos foram feitos em projetos militares. A média mundial foi de 10%. Segundo o professor Figueiredo, 50% dos ganhadores norte-americanos de prêmios Nobel foram financiados por programas das Forcas Armadas, enquanto em outros países o porcentual é de 30%. Muito do conforto ou de tratamentos médicos não existiria sem as pesquisas na área de defesa. A internet, o GPS, o raioX e a espuma que reveste colchões são alguns poucos exemplos.

Na área nuclear, o potencial brasileiro é imenso. As reservas de urânio do Pais são estimadas em 800 mil toneladas. Só o Cazaquistão e a Austrália teriam mais. Mesmo as comprovadas 309 mil toneladas nos colocam em posição privilegiada. Com os planos de aumento de produção, o excedente em 2012 chegará a 1,2 mil toneladas por ano, segundo a Aben. O suficiente não só para abastecer a demanda de submarinos nucleares, mas para erguer novas usinas de energia, reduzir a importação de isótopos usados na medicina e melhorar técnicas agrícolas. E refletir sobre aquele dilema levantado no início deste texto: queremos ou não construir armamentos atômicos?"

FONTE: reportagem de Sergio Lirio publicada na revista Carta Capital desta semana.

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