domingo, 3 de janeiro de 2010
ENTREVISTA COM O MINISTRO DA JUSTIÇA, TARSO GENRO
Em entrevista ao JB, Tarso Genro fala da polêmica Comissão da Verdade [e de vários outros assuntos]
"BRASÍLIA - Protagonista das polêmicas internas mais fortes na complexa base governista, o ministro da Justiça, Tarso Genro, deixa, em fevereiro, o cargo e vários “esqueletos” que o presidente Lula terá de tirar do armário. Alguns deles: a decisão sobre o Caso Battisti, uma nova interpretação da Lei de Anistia e a criação da Comissão da Verdade para investigar os crimes da ditadura, gestada junto com seu colega Paulo Vannuchi, dos Direitos Humanos, cujo conflito levou o ministro da Defesa, Nelson Jobim e os comandantes militares a pedirem demissão. Nessa entrevista ao Jornal do Brasil, Genro radicaliza as críticas à direita e anuncia que o Rio será o primeiro estado a conquistar um piso salarial de R$ 3.200 para os policiais. O auxílio à bolsa formação passa de R$ 400 para R$ 1.200 já no começo deste ano. Diz que a permanência de Battisti no Brasil é uma questão de soberania que está nas mãos de Lula e defende a apuração judicial dos crimes da ditadura. Genro afirma ainda que o atual modelo de financiamento de campanhas ameaça a seriedade democrática; informa que a PF não encontrou o alegado grampo no telefone do ministro Gilmar Mendes – contra quem dispara uma saraivada de críticas – sugere que as reformas política e penal vão complementar o combate à corrupção e dá dica sobre a sucessão: 70% do PMDB estarão com Dilma e o candidato a vice será Michel Temer.
Até que ponto o Pronasci (Programa Nacional de Segurança com Cidadania) pode substituir os modelos de combate ao crime, como o do Rio?
Na verdade o Rio de Janeiro desenvolve uma política de transição. As UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), que compõem a estratégia principal do Pronasci, em escala nacional, têm como base o policiamento comunitário e é uma iniciativa do Pronasci adotada pelo Rio de Janeiro, inclusive com ajuda financeira da nossa parte, particularmente do aparelhamento da Polícia Militar. No Rio temos programas de inclusão social e educacional para jovens de baixa renda, que são desenvolvidos pelas prefeituras. A Prefeitura do Rio de Janeiro, terá um aporte previsto já de R$ 100 milhões. Nós damos hoje em torno de R$ 80 milhões para policiamento comunitário e programas preventivos. A política que deve desaparecer do Rio de Janeiro é essa que ocupa, combate e sai. Isso não leva a nada, só mantém a criminalidade no mesmo nível. O Rio é o palco privilegiado de implementação do Pronasci. Essa transição já começou e há uma direção firme do Beltrame (José Maria Beltrame, secretário de segurança) o do próprio governador Sérgio Cabral sobre isso. As UPPs são os símbolos mais integral do Pronasci. Policiais com melhores salários, treinados especialmente para cumprir suas funções, não mudam, permanecem, portanto, na região, e é um território que passa a receber os programas preventivos orientados pela prefeitura e bancados pelo governo federal. Portanto uma articulação federativa inovadora.
Uma das críticas é que o governo libera recursos, mas não cobra, por exemplo, a diminuição dos homicídios.
Essa preocupação é totalmente justa e está contida no Pronasci. Contratamos a Fundação Getúlio Vargas para fazer o acompanhamento da implementação do Pronasci e da pesquisa dos seus resultados. Estamos agora terminando a segunda pesquisa dos territórios onde o Pronasci está sendo implementado e já temos alguns resultados significativos. No primeiro território, no Bairro de Santo Amaro, no Recife, já houve uma queda de mortes de mais de 66%. A sensação de segurança nos territórios têm aumentado crescentemente.
Em relação ao Rio, qual é a meta do Pronasci?
A ideia é que o Rio de Janeiro, até 2016, tenha 49 territórios (cada um deles composto por vários bairros), no mínimo, por policiamento comunitário. Estamos trabalhando com o governador Sérgio Cabral (a implantação de) uma bolsa para formação específica de policiais do Rio de R$ 1.200 (hoje são R$ 400). Com isso, para chegarmos em 2016 com um piso salarial para os policiais de R$ 3.200. Sem resolver essa questão salarial dos policiais militares e civis, um piso que dê o mínimo de dignidade aos policiais, a evolução vai ser muito lenta. Um policial mal pago cumpre os seus serviços ordinariamente com má vontade e é um policial que sofre, pelas dificuldades de vida, permanentemente as tentações da corrupção.
Em quanto tempo os policiais do Rio chegarão ao piso de R$ 3.200?
A médio prazo. Nós não podemos é ter uma atitude de ser autoritário em relação aos estados. Temos que ir criando essas condições para os estados chegarem em 2016 com esse valor. Como é que achamos que podemos criar essas condições? É aumentando o valor da bolsa progressivamente para os estados que vão receber a Copa do Mundo e as Olimpíadas. E comprometendo os estados, através de leis estaduais, que 2016 esse piso será pago pelos próprios estados.
A bolsa de R$ 1.200 entra em vigor para os policiais do Rio em 2010?
Já no ano que vem. Aí, claro, tem o período de implantação, de liberação de recursos, a inscrição nos cursos, porque é uma bolsa de formação, e de aprovação de uma lei estadual se comprometendo com o piso até 2016. Nós estimamos que tudo poderá ser feito em seis meses. A Medida Provisória já está no Ministério do Planejamento. O piso começa pelo Rio de Janeiro.
No plano nacional, o que falta para um combate mais eficaz à corrupção?
É importante que se entre agora no período de reformas legais: a política, com financiamento público das campanhas, e a penal, que vai desde a redução de recursos (de defesa), até a exigência de cumprimento da pena a partir do segundo grau de jurisdição. Hoje nós temos o processo penal que é barroco e oferece mil artimanhas que excedem o direito da defesa. Às vezes se chega até a quatro graus de jurisdição.
A pessoa não cumpre a pena até chegar ao Supremo Tribunal Federal. Quando isso ocorre o crime já está prescrito. Então nós temos que aprimorar o processo e incentivar a crítica à impunidade para ter mais eficácia.
Os órgãos de controle têm funcionado?
A Polícia Federal melhorou muito nos últimos anos e hoje nós temos até uma inversão nos tipos de prisão. As provisórias são menores que as preventivas. Isso significa que a qualidade da prova é superior. E também o fato de que o inquérito policial, hoje, tem mais objetividade.
Por que há então a impressão de que a PF reduziu as investigações contra poderosos?
Os do ano passado desmentem essa impressão. O que houve foi uma redução da espetacularização. A PF não mais se transformou numa espécie de comunidade midiática para fazer o cartaz de delegados, de superintendentes ou de setores. O número de inquéritos contra corrupção no país aumentou. O período da espetacularização foi compreensível num momento de ascenso à democracia. Era necessário mostrar que a PF não tinha preconceitos de classe para atuar. Mas aquilo se esgotou. E é bom lembrar também que naquele momento havia uma grande espetacularização porque os inquéritos eram predominantemente contra o PT. E agora, não, os inquéritos são contra quaisquer pessoas independentemente de partidos.
Mas havia um direcionamento contra o PT?
Não havia um direcionamento. Como o governo era do PT, a crítica era contra o PT, uma coisa natural. Era o partido mais visado. A PF fez inquéritos, independentemente de quem é, qual é a posição que a pessoa tem no estado e independentemente de qual é a sua vertente ideológica ou partidária. Isso democratizou os inquéritos no sentido de que eles não foram mais utilizados como elementos jogo político. O que se vê é o aumento da luta contra a corrupção. A corrupção está sendo retirada debaixo do tapete. Têm aparecido muitos inquéritos contra a corrupção, embora os nomes das pessoas não sejam apresentados de maneira badalada pela PF. Quem os faz é o Ministério Público.
O ministro Gilmar Mendes, do STF, atribuiu a redução da “espetacularização” às críticas que fez ao que ele chamou de “estado policialesco”.
Nós respeitamos as críticas, mas essas declarações não tiveram nenhuma influência no nosso trabalho. Quando assumimos o Ministério da Justiça, esse trabalho já tinha sido começado. O que nós fizemos foi acertar esse trabalho e até radicalizá-lo para tirar a PF da condição de atriz política, como vinha ocorrendo no período anterior.
Nunca recebi de mau grado essa afirmação do ministro Gilmar Mendes, mas aqui no Ministério da Justiça quem manda é o presidente da República, e depois do presidente da República, sou eu. Não há qualquer influência que tenha vindo do ministro Gilmar Mendes. Eu até classifiquei essa sua colocação como uma espécie de “voluntarismo de colaboração”.
O “estado policialesco” é uma frase de efeito?
“Estado policialesco” provavelmente seja a frase de quem não tem o conceito claro do que seja o estado policial, onde a polícia se torna uma estrutura paralela aos demais poderes do Estado e funciona de maneira autônoma, como uma instituição que invade a esfera de todos os outros poderes. Esta afirmação não tem nenhuma relação com a PF depois da Constituição de 1988, porque ela é controlada pelo Ministério Público.
O senhor deixará cargo antes de uma definição sobre o caso Cesare Battisti, cuja decisão cabe agora ao presidente. Qual é a sua expectativa sobre o desfecho?
A minha relação com esse caso está terminada e bem terminada. O Supremo fez uma avaliação, no primeiro momento, que era um despacho ilegal, e depois devolveu para o Executivo a própria decisão. O STF se equivocou na primeira decisão e na segunda indiretamente reconheceu esse equívoco. Está no meu despacho, que isso (concessão do refúgio) é uma atribuição do Executivo. A lei é expressa em dizer que quando é concedido o refúgio se interrompe o processo de extradição. O tribunal entendeu, no primeiro momento, que poderia examinar o meu despacho e o fez. E o fez de maneira digna, de maneira sóbria, responsável, mas na minha opinião totalmente errada.
Depois, devolveu ao presidente da República. Portanto eu me dou por inteiramente satisfeito. O caso Battisti diz respeito à questão democrática do Brasil. Quem mudou de posição sobre esse assunto foi o Supremo, avocando para si a decisão sobre a correção do despacho. Como o caso Battisti, há dezenas, inclusive de italianos das mesmas organizações armadas. Fiquei perplexo com a campanha pela imprensa no sentido de dizer que eu estava cometendo uma ilegalidade. Quem dizia isso estava dizendo, na verdade, que o Supremo tinha cometido dezenas de irregularidades anteriores à minha, já que o meu despacho se abrigou em decisões anteriores sobre a mesma matéria e com o mesmo conteúdo.
Qual é o prazo para definir a questão?
O presidente vai esperar a publicação do acórdão. O caso Battisti foi bom para o país porque trouxe dois conceitos a respeito da questão democrática. O mesmo grupo ideológico que defendia a extradição do Battisti, defendeu a concessão do refúgio, por exemplo, para o Stroessner (Alfredo Stroessner, ex-presidente do Paraguai), e que defendeu, também, a concessão do refúgio, lá nas críticas eras da formação do estado moderno do Brasil, para Bidault (George Bidault), terrorista do Exército secreto francês, que tentou matar o De Gaulle. O Brasil deu asilo para fascistas portugueses depois da Revolução dos Cravos. Portanto o Brasil tem uma tradição de acolhimento generoso. De repente resolveu-se discutir a situação do Battisti. Por que? Porque era uma demanda do governo italiano que precisava de um bode expiatório para uma disputa interna.
O senhor acha que o presidente vai manter o seu despacho?
Toda a questão da soberania está depositada na mão do presidente. A única coisa que eu digo é que quando eu dei o meu despacho, comuniquei ao presidente e não sofri nenhum reparo.
O senhor acredita que o STF vá permitir que torturador seja processado?
O plano de direitos humanos, apresentado pelo ministro Vannuchi, que nós colaboramos, inclusive, com a sua redação, encaminha bem essa questão, com a criação da Comissão da Verdade. Não há qualquer ilusão de que algum torturador aqui no Brasil vai para a cadeia. O que nós temos é um dever de colocar na história os fatos tais quais realmente aconteceram. A apuração judicial de quem torturou e quem mandou torturar é uma coisa sadia para a história do país. Algumas pessoas defendem que teria que investigar e punir também os crimes cometidos pelos “terroristas” da esquerda. Eu respondo: já foram presos, torturados, julgados e anistiados. Por que não se pode dar a mesma condição para quem torturou e matou impunemente nos aparatos paralelos à própria ditadura? É um dever moral do Estado brasileiro apurar, fazer uma investigação judicial ou parlamentar de quem foram os torturadores e os assassinos que cumpriram essas tarefas ao regime militar.
O senhor acredita que o STF possa dar uma nova interpretação à Lei da Anistia?
Não se trata de uma prestação de contas das Forças Armadas. Os torturadores são indivíduos que montaram aparatos paralelos e a grande maioria deles era civil. É bom lembrar também para quem defende torturadores que a primeira pessoa que desmontou um aparelho paralelo foi o general Ernesto Geisel ao extinguir a Operação Bandeirantes. Se o chefe de um regime autoritário teve a coragem de fazer, como é que os civis da democracia não têm coragem de prosseguir esse trabalho?
O grampo nos telefones do ministro Gilmar Mendes e do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) existiu?
Pelas informações que tenho, não foi localizado. O que sei é que, evidentemente, não haveria qualquer tipo de simulação, nem do ministro Gilmar nem do senador Demóstenes. Mas esse grampo pode ter sido um tipo de engendramento para envolvê-los nesse contexto. Esses grampos hoje podem ser feitos por pessoas de fora do Estado. O que temos certeza é que não foi feito pela Polícia Federal, como chegou a ser sugerido. Se existiu, deve ter sido de algum ramo privado.
A popularidade do presidente Lula e a recuperação do PT vão influenciar nas eleições?
A análise mais prudente tem que partir da constatação de que o PT e o Lula são reciprocamente criaturas e criadores. Num certo momento houve visão, a partir da crítica da oposição, de que o PT era uma coisa e o Lula era outra. Essa ilusão é que levou a um certo desatino da oposição. O Lula é o PT e o PT é o Lula e vice-versa. O fato de que o PT sofreu aquela crise no começo do governo Lula não desconstituiu nem a relação do Lula com o partido nem a relação da militância com o PT. O PT se recuperou e a sua grande reserva moral e política é o presidente da República.
Como foi a recuperação?
O presidente teve que arbitrar várias questões dentro do partido, entre elas a escolha do candidato a presidente da República. A ministra Dilma Rousseff não compartilhava dos conflitos internos. Foi positivo para o partido. Estabilizou as relações internas e pôs um ponto final numa disputa que poderia ser prejudicial à sucessão. Então acho que o PT, primeiro perdeu aquele seu halo arrogante de pureza.
O partido ganhou experiência e dignidade política, se recuperou e amadureceu. O Lula arbitrou bem a sucessão e o país está numa nova fase. É bom para a oposição, para o governo e para os partidos. Mas esse “bom” só será realmente estável se nós fizermos uma reforma política. Se existe alguma coisa que ameaça a seriedade democrática do Brasil, é a forma como são financiadas as campanhas eleitorais.
Dilma está preparada para a campanha?
A Dilma tem boas condições de competitividade e o Serra é um candidato forte. Ela tem a vantagem de integrar um governo muito bem sucedido. Estou falando em termos puramente competitivos. Esse diferencial do apoio militante do presidente, no momento adequado, será muito importante para a vitória.
Dilma terá a mesma base de apoio que o presidente Lula teve em 2006?
Acho que 70% do PMDB vêm conosco e o PMDB terá o vice.
Quem deve compor a chapa?
Vejo como o nome mais forte o Michel Temer.
Soma mais que o Henrique Meirelles?
O Temer tem a particularidade de ser um quadro orgânico do PMDB e tem mais poder de influenciar o conjunto do partido. Não há uma vantagem nem moral nem política de um sobre o outro. O Temer parece ter mais força por ser um quadro tradicional do PMDB, uma história e sendo presidente do partido."
FONTE: entrevista conduzida por Vasconcelo Quadros, publicada no Jornal do Brasil de hoje (03/01/2010).
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