quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

LE MONDE: "DONA ZILDA, MULHER EXEMPLAR"


Zilda Arns, em foto de 2002, estava em missão humanitária no Haiti e morreu após terremoto

"Os brasileiros a chamavam de "Zilda" por afeição, e "Dona Zilda", por respeito. Ela era sorridente e forte, doce e lutadora, tolerante e determinada, visionária e pragmática. Zilda Arns, 75, morreu no dia 12 de janeiro durante o terremoto no Haiti. Um teto desabou sobre ela quando havia acabado de proferir uma palestra em Porto Príncipe.

Fundadora e diretora por 25 anos da ONG Pastoral da Criança, ela era uma das personalidades mais populares do país. Foi tão amada quanto admirada. "Uma mulher exemplar", resumiu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva antes de se inclinar sobre seu caixão. Zilda Arns nasceu em 1934 em uma cidadezinha do Estado de Santa Catarina, no sul do Brasil. Seus pais, imigrantes alemães, eram profundamente católicos. Eles teriam trezes filhos, dos quais cinco foram ordenados. Ela contava que um dia, durante a guerra, ajudou sua mãe a queimar livros e a enterrar um gramofone e discos alemães, pois a família temia atrair problemas.

Todos os domingos, a menina se levantava antes do sol nascer, trançava seus cabelos loiros e ia até a igreja para a missa das seis. A nobreza de alma de seus pais a impressionava. Seu pai, comerciante, saiu a cavalo para ajudar a combater uma epidemia de varíola. Sua mãe atrelou a charrete para levar um vizinho doente ao hospital. Essas imagens, que a marcaram, inspiraram sua vocação para médica.

Ela se mudou para Curitiba, capital do Paraná, e começou a clinicar em 1959. Tornou-se pediatra, e elaborou ações de saúde pública. As tragédias pessoais não a pouparam. Ela perdeu um filho de três dias; seu marido se afogou quando tentava salvar uma adolescente que o casal havia adotado; uma de suas filhas morreu em um acidente de carro.

Em 1982, o destino de Zilda sofreu uma reviravolta. Seu irmão, Paulo Evaristo, arcebispo de São Paulo, opositor ferrenho da ditadura militar e futuro cardeal, consentiu que a Igreja lançasse uma campanha contra a desnutrição. O pedido lhe foi feito por James Grant, diretor da Unicef. Ele queria que o Brasil adotasse o tratamento de reidratação oral para combater as diarreias que dizimavam as crianças. Ele buscou um médico para coordenar o programa.

Zilda tinha o perfil ideal. Um pouco cansada de seu trabalho, que se tornara administrativo demais, ela tinha sede de ação. Na noite em que seu irmão lhe telefonou para propor esse desafio, ela sentiu uma onda de felicidade: "Era o que eu mais desejava: ensinar às mães a tomarem conta melhor de seus filhos".

Uma hora antes de morrer no Haiti, Zilda Arns lembrava a sua platéia sobre sua profissão de fé de então e de sempre: "Nosso objetivo é reduzir a mortalidade infantil e promover o desenvolvimento das crianças com idade de até de 6 anos. A primeira infância é uma etapa decisiva para a saúde, a educação, e a consolidação de valores culturais".

Na época, a Igreja brasileira, influenciada pela teologia da libertação, patrocinou comissões pastorais que ajudavam os mais necessitados: camponeses sem terras, trabalhadores imigrantes, prisioneiros. Em 1983, a Conferência Nacional dos Bispos criou a Pastoral da Criança, cuja liderança foi assumida por Zilda.

Ela lançou o programa em uma paróquia pobre e condenada do Paraná, onde os trabalhadores agrícolas eram explorados pelos grandes usineiros. Suas famílias viviam em uma miséria sanitária. A mortalidade infantil fazia tantos estragos, que no cemitério os túmulos de crianças eram os mais numerosos. Organizadora inigualável, Zilda implantou métodos educativos simples e baratos que seriam reproduzidos em todo o Brasil, e depois em cerca de vinte países.

Cada comunidade recenseia as mulheres grávidas e as crianças com pouca idade. Os voluntários, formados em cinco tardes, cuidam de 10 a 15 crianças da vizinhança. Quase sempre são mulheres. Paradoxo: Zilda, cristã fervorosa conservadora, contrária ao aborto como a maioria dos brasileiros, e não exatamente uma feminista, desenvolveu a maior associação de mulheres do país, onde não se recusa ninguém, nem mesmo as prostitutas.

Pelo menos uma vez por mês as voluntárias visitam as mães, para pesar as crianças, fazer a relação das necessidades, dar conselhos, combater preconceitos e superstições. Elas transmitem suas experiências e se tornam, segundo uma imagem bíblica cara a Zilda, "multiplicadoras" de conhecimentos. A Pastoral possui hoje 260 mil voluntários, dos quais 92% são mulheres. Em 25 anos, ela acompanhou 1,8 milhão de crianças.

Seu sucesso, rápido e extraordinário, revolucionou a saúde pública no Brasil. Ele se fundamentava inicialmente em duas prescrições básicas: um "soro caseiro" de água com sal e açúcar, contra a desidratação decorrente da diarreia; e uma "multimistura" combinando farinha, casca de ovo, cereais, sementes e folhas cozidas, contra a desnutrição.

Essa fase já passou. Mas os números continuam sendo inequívocos: onde a Pastoral atuou, o índice de mortalidade infantil caiu pela metade. E graças a ela, centenas de milhares de crianças pobres, condenadas à morte, hoje estão vivas."

FONTE: reportagem de Jean-Pierre Langellier publicada hoje no jornal francês Le Monde e postada no portal UOL com tradução de Lana Lim.

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