domingo, 4 de abril de 2010

ISRAEL FINGE QUE ESTÁ PRESTES A ATACAR O IRÃ

Uri Avnery: Me segurem!

por Uri Avnery, Gush Shalom (Bloco da Paz), Israel

“Me segurem!” é história que todos conhecem da infância. Os meninos, quando se desentendiam com meninos maiores, sempre fingiam que tentavam conter-se para não atacar o grandão, e gritavam para a rodinha em volta: “Me segurem! Me segurem… Ou eu mato esse cara!”

Israel vive hoje situação semelhante. Israel está fingindo que atacará o Irã a qualquer momento e grita para o planeta: “Me segurem ou…” E o mundo, de fato, tem segurado Israel.

É arriscado profetizar nesses assuntos, sobretudo porque se tem de lidar com gente nem sempre inteligente e nem sempre, digamos mentalmente sã. Mesmo assim, arrisco: não há qualquer possibilidade, de nenhum tipo e por seja qual for o cálculo, de Israel mandar seus aviões atacarem o Irã.

Não vou entrar em assuntos militares. Mas… será que a Força Aérea de Israel é capaz de executar tal operação? As circunstâncias de hoje são semelhantes às de há 28 anos, quando Israel conseguiu destruir o reator iraquiano? Será que Israel conseguirá destruir o esforço nuclear iraniano, cujas instalações são dispersas num vasto território e enterradas fundo no subsolo?

Interessa-me focar outro aspecto: será que o ataque ao Irã é politicamente viável? E levará a que consequências?

Em primeiro lugar, uma regra de base, na realidade israelense: o Estado de Israel não pode iniciar nenhuma operação militar de larga escala sem que os norte-americanos concordem.

Israel depende dos EUA em praticamente todos os campos e esferas, mas em nenhum campo ou esfera depende mais do que nos campos e esferas e assuntos bélicos e militares.

Todos os aviões necessários para a missão são fornecidos pelos EUA. O funcionamento e a operação dos aviões dependem de os EUA fornecerem peças de reposição. E seria absolutamente indispensável usar os aviões-tanques dos EUA para reabastecimento.

O mesmo se pode dizer de praticamente todas as armas e materiais de guerra do exército de Israel, além do dinheiro indispensável para comprá-los: tudo vem dos EUA.

Em 1956, Israel entrou em guerra sem o consentimento dos EUA. Ben-Gurion imaginou que bastaria acertar-se com o Reino Unido e a França. Errou imensamente. Cem horas depois de anunciar que “O Terceiro Reino de Israel” estava nascendo, anunciou com voz alquebrada que se retiraria de todos os territórios que acabava de ‘conquistar’. O presidente Dwight Eisenhower e seu colega soviético obrigaram Ben-Gurion a recuar, e foi o fim daquela aventura.

Desde então, Israel nunca mais iniciou guerra alguma sem, antes, obter autorização de Washington. Na véspera da Guerra dos Seis Dias, Israel enviou emissário especial aos EUA, para não haver qualquer dúvida quanto à autorização dos norte-americanos. O emissário recebeu luz verde dos norte-americanos e o ataque foi iniciado.

Às vésperas da Primeira Guerra do Líbano, Ariel Sharon, ministro da Defesa, correu a Washington para pedir autorização para atacar. Encontrou-se com o secretário de Estado Alexander Haig, que concordou com o ataque, mas exigiu que Israel só atacasse se fosse claramente provocado. Alguns dias depois, por coincidência, houve um atentado contra a vida do embaixador de Israel em Londres. E a guerra começou.

Os ataques do exército de Israel ao Hizbollah (“Segunda Guerra do Líbano”, como é chamada) e ao Hamás (a operação “Chumbo Derretido”) só foram possíveis porque foram operações incluídas na campanha dos EUA contra o “Islã Radical”. À primeira vista, o mesmo argumento aplicar-se-ia a um ataque ao Irã, mas… Não. Não. Não, porque um ataque de Israel ao Irã seria desastre militar, econômico e político para os EUA.

Dado que os iranianos também sabem muito bem que Israel não pode atacar sem que os EUA autorizem, os iranianos estão também jogando o seu jogo e reagirão de acordo com as circunstâncias.

Já escrevi aqui, que basta um rápido exame do mapa, para ver qual seria a reação imediata, se o Irã fosse atacado. O pequeno Estreito de Hormuz, à entrada do Golfo Persa (ou Árabe), pelo qual passa quantidade imensa do petróleo do mundo, seria fechado em questão de minutos. O resultado abalaria a economia mundial, dos EUA e Europa à China e Japão. Os preços chegariam às alturas. Países que hoje, a duras penas, começam a recuperar-se da última crise econômica mundial, afundariam na miséria, no desemprego, nos tumultos de rua e na bancarrota.

O Estreito só poderia ser reaberto por ataque por terra. Os EUA simplesmente não têm soldados para desperdiçar nesse tipo de operação – ainda que a opinião pública norte-americana aceitasse outra guerra, e guerra muito mais difícil do que no Iraque ou no Afeganistão, o que é improvável. Duvido até que os EUA se dispusessem a ajudar Israel a defender-se do inevitável contra-ataque por mísseis iranianos.

Qualquer ataque israelense a país islâmico central uniria o mundo islâmico, inclusive todo o mundo árabe. Os EUA passaram os últimos anos labutando muito para formar uma coalizão de países árabes “moderados” (quer dizer, de países árabes governados por ditadores sustentados pelos EUA), contra os Estados ditos “radicais”. Todo esse trabalho iria imediatamente pelo ralo. Nenhum líder árabe conseguiria manter-se neutro, se as massas fossem para as ruas exigindo ação.

Tudo isso é perfeitamente evidente para qualquer pessoa bem informada, e é super evidente para os líderes civis e militares norte-americanos. Secretários, generais e almirantes já foram enviados a Israel para explicar tudo isso aos líderes de Israel, em língua de jardim de infância: Não! No! Nyet!

Assim sendo, por que a opção militar ainda não foi excluída da mesa de discussões? Porque EUA e Israel gostam de tê-la ali, à vista, sobre a mesa.

Os EUA gostam de aparecer como a única força capaz de conter os ferozes Rottweilers israelenses. Assim, todas as demais potências são pressionadas a impor sanções ao Irã. Se alguém não concordar, ali estão os furiosos cães israelenses [armados com suas centenas de bombas atômicas], sempre a um passo de escapar da coleira. Imaginem o que acontecerá!

E que sanções? Já há algum tempo, não há palavra mais aterrorizante do que essa – “sanções” – no palco das discussões internacionais. Mas se pensarmos um pouco, logo se verá que há mais fumaça que fogo.

Alguns comandantes da Guarda Revolucionária talvez sejam feridos, a economia iraniana talvez sofra algum dano colateral. Mas já ninguém cogita de aplicar “sanções que paralisarão o Irã”, porque não há qualquer chance de Rússia e China concordarem. São dois parceiros do Irã, e “sanções que paralisem o Irã” atingiriam também russos e chineses.

Além disso, a possibilidade de essas sanções interromperem a construção de alguma bomba é mínima; sequer conseguirão retardar o processo [Israel nunca interrompeu a construção das suas bombas atômicas]. Do ponto de vista dos aiatolás, o esforço nuclear é imperativo de segurança nacional – país sem bomba atômica não tem como defender-se da ameaça norte-americana. Dado que os EUA jamais desistiram de tentar derrubar o regime dos aiatolás, nenhum governo iraniano pensaria diferente. Sobretudo durante o último século, norte-americanos e britânicos jamais agiram de outro modo. As negativas do Irã são perfunctórias. Segundo todos os relatos, até os mais extremistas opositores de Mahmoud Ahmadinejad apóiam o projeto da bomba atômica iraniana e o defenderão se for atacado.

Nesse ponto, a liderança israelense tem razão: nada impedirá o Irã de construir sua bomba, exceto o emprego massivo de força militar. “Sanções” são brincadeiras de criança. O governo dos EUA fala delas em termos tão empolgados, apenas para encobrir a evidência de que nem todo o exército dos EUA pode impedir os iranianos de ter sua bomba.

Quando Netanyahu & Co. criticam a falta de habilidade dos EUA para enfrentar o Irã, os norte-americanos lhe respondem na mesma toada: vocês também não merecem confiança.

De fato, que confiança mereceriam os políticos e militares israelenses? Eles mesmos convenceram a opinião pública em Israel de que o Irã seria questão de vida ou morte para Israel. Que o Irã seria governado por um neo-Hitler, antissemita doente, obcecado negador do Holocausto. Se esse demônio construir uma bomba atômica, não hesitará em lançá-la sobre Telavive e Dimona. Com essa espada sobre as cabeças israelenses, não há tempo a perder, nenhum outro assunto merece atenção – por exemplo, a questão palestina e a ocupação da Palestina.

Assim, quem quer que, hoje, insista em discutir a questão palestina no governo de Netanyahu, é imediatamente interrompido: “Que Palestina? Esqueçam isso! Nosso problema é a bomba atômica iraniana!”

Até agora, Obama e sua equipe têm conseguido inverter a argumentação de Netanyahu: se há alguma ameaça existencial contra Israel, dizem eles, basta raciocinar. Se a questão das construções ameaça a própria existência de Israel, é simples: entreguem as colônias da Cisjordânia… E salvem a existência de Israel. Aceitem a proposta da Liga Árabe, façam a paz com os palestinos, e o mais rapidamente possível. Esse movimento de Israel fará melhorar a posição dos EUA no Iraque e no Afeganistão e liberará nossos soldados. O Irã ficará com um motivo a menos para fazer guerra contra Israel! As massas no mundo árabe terão um motivo a menos para apoiar o Irã!

E os EUA concluem: Se um novo quarteirão exclusivo para judeus em Jerusalém Leste é mais importante para Israel do que a bomba iraniana… A bomba iraniana, evidentemente, é realmente muito menos preocupante, para Israel, do que Netanyahu vive dizendo! Cá entre nós, modestamente, eu também acho: a bomba iraniana, de fato, não é problema.

Há dois dias, a jornalista correspondente do Channel 2, muito popular em Israel, telefonou-me e perguntou, com voz chocada: “É verdade que você deu uma entrevista a uma agência iraniana de notícias?!”

“É verdade”, respondi. A agência mandou-me algumas perguntas por e-mail, sobre a situação política; e respondi por e-mail. “Por que você respondeu?!” – ela perguntou-acusou. “E por que não responderia?!”, disse eu. E a conversa acabou ali.

De fato, por que não? Sim, Ahmadinejad é líder repulsivo. Espero que os iranianos livrem-se dele e deve-se esperar que aconteça logo. Mas as relações entre Israel e o Irã não dependem de Ahmadinejad, seja quem for.

Israel e Irã sempre foram nações amigas, do tempo de Ciro ao tempo de Khomeini (a quem Israel forneceu armas, na guerra contra o Iraque).

Na Israel de hoje, o Irã está sendo apresentado como caricatura; como país primitivo, louco, sem outra coisa na cabeça além da obsessão de destruir o Estado sionista. Mas basta ler alguns bons livros sobre o Irã (recomendaria “Understanding Iran”, William Roe Polk, Harper: EUA, 2009 [1]), para conhecer um dos países civilizados mais antigos do mundo, onde nasceram vários grandes impérios e que tem impressionante contribuição para a cultura humana, uma tradição antiga e honrada. Para muitos especialistas, a religião dos judeus foi profundamente influenciada pelos ensinamentos éticos de Zoroastro (Zaratustra).

Sejam quais forem os desmandos de Ahmadinejad, os clérigos islâmicos, que governam realmente o país, têm implantado e mantido políticas cautelosas e sóbrias, e jamais atacaram qualquer outra nação. Têm interesses, é claro, mas Israel não é assunto que interesse ao Irã. A ideia de que os iranianos sacrificariam o próprio país e seus cidadãos, para destruir Israel é, no mínimo, ridícula.

A simples verdade é que não há meios de impedir que os iranianos alcancem sua bomba atômica. Melhor, portanto, pensar com seriedade sobre o mundo com a bomba iraniana: não se alterará o ‘equilíbrio nuclear’ no campo do terrorismo, como o que sempre houve entre Índia e Paquistão; mas o Irã será elevado à categoria de potência regional; e será indispensável iniciar diálogo racional e sóbrio que inclua o Irã.

A principal conclusão, contudo, é a seguinte: é preciso fazer a paz entre Israel e os palestinos, porque assim de esvaziará o argumento iraniano, de que precisa da bomba para proteger-se contra os israelenses, algozes dos palestinos.

FONTE: escrito por Uri Avnery, do Gush Shalom (Bloco da Paz), Israel. Publicado no portal "Vi o mundo", de Luiz Carlos Azenha, com tradução de Caia Fittipaldi [entre colchetes colocados por este blog].

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