domingo, 23 de janeiro de 2011
PERSPECTIVAS NA INTEGRAÇÃO SUL-AMERICANA
“A integração sul-americana é mais que uma questão econômica, é fenômeno de longa duração, expressão de destino histórico. A crescente incorporação do Brasil nessa frente sul-americana, tão desprezada historicamente pela nossa oligarquia, é fator decisivo para viabilizar esse projeto histórico. Toda a região espera do Brasil que ele assuma liderança histórica a favor da integração regional.
Por Theotonio dos Santos, em seu blog
“Nos últimos anos, vem se enraizando no país enorme procura de cursos de relações internacionais que têm condições de realizar rigorosa seleção de seus alunos, em geral de boa qualidade intelectual, conhecimento de línguas e bons conhecimentos gerais. O interesse demonstrado por esses estudantes pela atual política exterior do Brasil vem motivando a criação de disciplinas sobre a integração da América do Sul. No semestre passado, tive a oportunidade de realizar um curso sobre a integração regional no curso de relações internacionais da UFF, com o apoio do doutorando Sérgio Sant´Ánna.
Nessa disciplina, procuramos demonstrar uma tese central: a integração sul-americana - que se converteu num objetivo fundamental da atual política externa brasileira - é mais que uma questão econômica, ela é fenômeno de longa duração, expressão de destino histórico.
O continente americano, antes da chegada truculenta de Cristóvão Colombo, abrigava uma população de cinquenta a setenta milhões de habitantes que estavam relativamente integrados, sobretudo através das conquistas Astecas no sul da América do Norte e do avanço do império Inca na região Andina. Sabemos hoje também que a região amazônica integrava cerca de cinco milhões de habitantes e havia uma alta comunicação desses impérios no seu interior, entre eles e entre os povos que não estavam incorporados a eles.
A violenta colonização espanhola e portuguesa (além das incursões de outros centros imperiais europeus) buscou administrar essa vastíssima região articulada demográfica, econômica, social e culturalmente sob direção única, ao mesmo tempo que buscou reorientar suas economias para o mercado mundial em expansão no séculos XV ao XVIII sob a égide do capitalismo comercial-manufatureiro. Nas regiões de menor densidade das populações naturais, assistimos ao fenômeno do comércio de escravos, trazidos da África em condições infrahumanas.
A luta pela libertação das Américas rompeu essa dimensão continental. As colônias inglesas conseguiram sua libertação já no século XVIII, inspiradas numa ideologia liberal e republicana que vai revolucionar o mundo no final do século, através da Revolução Francesa e sua expansão por toda Europa e pelas suas colônias, particularmente no Caribe. A onda democrática por ela deflagrada chegou à América espanhola e portuguesa sob a forma da invasão napoleônica que defagrou a gesta impendentista que cumpre agora 200 anos. Apesar de iniciar-se nos cabildos das colônias espanholas, ela percorreu toda a região numa concepção unitária da qual Bolívar foi o intérprete máximo. No Brasil, com a vinda da corte Portuguesa em 1808, foi mantida a unidade em torno do príncipe português que declarou a independência.
Não devemos esquecer, contudo, as várias rebeliões indígenas como a tentativa de Tupac Amaru de reconstruir o império Inca ou as revoltas afro-americanas sob a forma de quilombos cujo mais representativo foi o de Zumbi dos Palmares. Não faltaram também brotos rebeldes contra a colonização ou mesmo propostas independentistas lideradas por uma já poderosa oligarquia local (insurgência de Minas Gerais -Tiradentes).
A América Hispânica surgiu unida, mas deixou-se dividir pelos interesses das oligarquias exportadoras locais, da expansão britânica sobre o comércio da região e em função dos interesses dos Estados Unidos recém formados. O conjunto dessas forças vai fortalecer as articulações regionais voltadas para o comércio e apoiadas no liberalismo econômico.
A região se dividiu, assim, entre duas grandes doutrinas. De um lado, o bolivarianismo buscou preservar a unidade continental na busca da formação de uma grande nação, pelo menos sul-americana. Do outro lado, a doutrina Monroe buscou afastar a presença britânica e européia em geral sob a consigna de “a América para os americanos”.
De um lado, Bolívar foi derrotado, mas o bolivarianismo continuou a desenvolver-se como expressão dessa historia secular e multidimensional (hoje em dia, as descobertas arqueológicas do Caral, no norte do Peru, nos remetem a uma civilização altamente desenvolvida há cinco mil anos, cuja continuidade é realmente impressionante ao ser cultivada até hoje, ainda que secretamente, pelos seus descendentes indígenas). Do outro lado, os Estados Unidos não pode ser fiel à sua pretensão pan-americana.
Cumprindo a previsão de Bolívar, segundo a qual os Estados Unidos estavam destinados a confrontar a América Latina, invadiu o México e se apropriou de metade de seu território, realizou várias intervenções militares na América Central e no Caribe (a participação dos Estados Unidos na guerra de independência de Porto Rico e Cuba deu origem à incorporação de Porto Rico como uma colônia e, ao fracassar a ocupação de Cuba, ao estabelecimento da base militar de Guantánamo, a maior de suas milhares de bases militares espalhadas pelo mundo). O mesmo papel desempenhou a construção do canal de Panamá que separou essa região da Colômbia, e tantas outras intervenções brutais que foram se deslocando inclusive para a América do Sul na medida em que as ambições imperialistas dos Estados Unidos foram se ampliando.
Foi assim como os Estados Unidos tiveram que renunciar na prática à sua doutrina pan-americana incorporando diretamente ou sob a misteriosa condição de Estado Associado aos americanos do norte (América Francesa) e do Sul (México, Porto Rico) e tornando-se aquele monstro que Marti e Hostos, Mella e Sandino e tanto outros pensadores e lutadores latino-americanos identificaram. Para manter essa dominação, os Estados Unidos tiveram que realizar em torno de 150 intervenções militares, assim como apoiar golpes de Estado locais e ditadores a seu serviço.
Nossas oligarquias exportadoras ou aquelas ligadas ao capital internacional percebem os Estados Unidos como um aliado quase incondicional, mas os povos da região se sentem muito mais identificados com a visão bolivariana. Assim também se sentiram os novos empresários, sobretudo industriais, voltados para o mercado interno da região. Eles sempre viram como importante a unificação dos mercados regionais. Muitos intelectuais veem a unidade regional como fenômeno cultural indiscutível. Apesar da imposição do Pan-americanismo pelos Estados Unidos, continuam atuando forças regionais que aspiram maior integração da mesma.
Depois de várias ofensivas nos anos 20 e 30, inspiradas em geral na Revolução Mexicana, foram essas forças sociais que, em 1947, se uniram em torno da idéia de formar nas Nações Unidas uma Comissão Econômica da América Latina (CEPAL), contra a qual se colocou infrutuosamente o governo norte-americano. A CEPAL não somente serviu de base para mobilizações diplomáticas, mas converteu-se também e, sobretudo, no centro de pensamento alternativo que se diferenciava teórica e doutrinariamente da Organização dos Estados Americanos (OEA), do FMI e do Banco Mundial. Foi sob sua inspiração que se criou a ALALC em 1960. Iniciativa que os Estados Unidos responderam com a criação do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), com a Aliança para o Progresso, a USAID e outras iniciativas diplomáticas e de segurança de inspiração Pan-americana.
As duras limitações dessas experiências na região foram abrindo caminho para uma concepção mais radical e mais profunda do processo socio-econômico e político-regional. A teoria da dependência permitiu questionar os limites da pretensão de nossas burguesias de reproduzir em seus países as experiências de crescimento econômico e desenvolvimento sócio-economico ocorrido no centro do sistema econômico mundial. A nossa história mostrou que não éramos povos atrasados que não conseguiram modernizar-se e, sim, havíamos participado desse processo de acumulação primitiva capitalista numa posição subordinada a serviço dos interesses do grande capital internacional cujo centro estava nos países que comandavam a acumulação primitiva de capitais.
A partir desse momento podemos contar uma história muito interessante da resistência mais ou menos radical latino-americana. Vários estudos nos contam boa parte dessa história ao levantar de maneira mais ou menos didática os antecedentes e as perspectivas de esforço integracionista regional que avança a passos largos, apesar da tentativa sistemática de pensamento dependente e subordinado insistir em ignorar todos esses passos que formam uma interessantíssima acumulação de experiências que ganhou intensidade extremamente rica nestes últimos anos, consequência em parte da diminuição da hegemonia dos Estados Unidos sobre a economia mundial. É assim que assistimos, inclusive, a uma presença crescente de outras regiões antes totalmente ausentes de nossa história, como a China que vem se convertendo no principal parceiro comercial e mesmo líder de investimentos de vários países da região.
A crescente incorporação do Brasil nessa frente latino-americana, tão desprezada historicamente pela nossa oligarquia, é fator decisivo para viabilizar esse projeto histórico. Toda a região espera do Brasil que ele assuma liderança histórica a favor da integração regional. Uma parte significativa da população brasileira já aderiu a essa idéia e o governo Lula conseguiu substanciar essa meta histórica ao criar a UNASUL, ao apoiar o Banco do Sul e ao tomar posições políticas sempre favoráveis aos interesses regionais.
O governo Dilma deve dar continuidade a essas mudanças buscando dar-lhe maior eficiência e eficácia. A Constituição brasileira já havia consagrado a nossa definição estratégica por uma relação privilegiada com a América Latina, seguida da África. Caminhamos, assim, para uma política de Estado a favor da integração regional, assim como fortalecemos nossa decisão histórica de exercer papel unificador das duas bandas do Atlântico Sul.
Só falta agora que as nossas Universidades e nosso ensino em geral tomem consciência do seu papel na criação de uma consciência regional.
Da grande imprensa podemos esperar pouco. Ela é propriedade das mais retrógradas oligarquias regionais que se opõem radicalmente à integração regional e a um papel protagônico do Brasil em qualquer campo.
Não está na hora das forças progressistas da região se unirem para criar e articular uma imprensa escrita, falada e virtual que cuide dos interesses da região e dos seus povos?”
FONTE: escrito por Theotonio dos Santos em seu blog. O autor é professor emérito da UFF. Professor visitante nacional sênior da UFRJ. Presidente da cátedra UNESCO/ UNU sobre economia global e desenvolvimento sustentável. Transcrito no portal “Vermelho” (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_noticia=145942&id_secao=7) [imagem do Google adicionada por este blog].
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