domingo, 11 de janeiro de 2015

Frade Leonardo Boff: "EU TAMBÉM NÃO SOU CHARLIE"





LEONARDO BOFF: "EU TAMBÉM NÃO SOU CHARLIE"

"O teólogo Leonardo Boff compartilha texto em que explica por que também 'não é Charlie'. "Na religião muçulmana, há um princípio que diz que o Profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. Esse é um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a imagem de Nossa Senhora para atacar os católicos… Qual é o objetivo disso? O próprio Charb falou: 'É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo'. 'É preciso' porquê? Para quê?", questiona Boff. Numa charge de Latuff, de 2012, Charb, uma das vítimas da chacina, foi retratado como homem-bomba.


Por Leonardo Boff, ex-padre franciscano, doutor em filosofia e teologia

Há muita confusão acerca do atentado terrorista em Paris, matando vários cartunistas. Quase só se ouve um lado e não se buscam as raízes mais profundas desse fato condenável mas que exige uma interpretação que englobe seus vários aspectos ocultados pela mídia internacional e pela comoção legítima face a um ato criminoso. Mas ele é uma resposta a algo que ofendia milhares de fiéis muçulmanos. Evidentemente, não se responde com o assassinato. Mas também não se devem criar as condições psicológicas e políticas que levem a alguns radicais a lançarem mão de meios reprováveis sobre todos os aspectos. 


Publico aqui um texto de um padre que é teólogo e historiador e conhece bem a situação da França atual. Ele nos fornece dados que muitos talvez não os conheçam. Suas reflexões nos ajudam a ver a complexidade deste antifenômeno com suas aplicações também à situação no Brasil:

"Eu condeno os atentados em Paris, condeno todos os atentados e toda a violência, apesar de muitas vezes xingar e esbravejar no meio de discussões, sou da paz e me esforço para ter autocontrole sobre minhas emoções…

Lembro da frase de John Donne: “A morte de cada homem diminui-me, pois faço parte da humanidade; eis porque nunca me pergunto por quem dobram os sinos: é por mim”. Não acho que nenhum dos cartunistas “mereceu” levar um tiro, ninguém o merece, acredito na mudança, na evolução, na conversão. Em momento nenhum, eu quis que os cartunistas da "Charlie Hebdo" morressem. Mas eu queria que eles evoluíssem, que mudassem… Ainda estou constrangido pelos atentados à verdade, à boa imprensa, à honestidade, que a revista "Veja", a "Globo" e outros veículos da imprensa brasileira promoveram nessa última eleição.

A "Charlie Hebdo" é uma revista importante na França, fundada em 1970, é mais ou menos o que foi o "Pasquim". Isso lá na França. 90% do mundo (eu inclusive) só foi conhecer a "Charlie Hebdo" em 2006, e já de uma forma bastante negativa: a revista republicou as charges do jornal dinamarquês Jyllands-Posten (identificado como “Liberal-Conservador”, ou seja, a direita europeia). E porque fez isso? Oficialmente, em nome da “Liberdade de Expressão”, mas tem mais…

O editor da revista na época era Philippe Val [também declarado apoiador ferrenho de Israel e dos judeus]. O mesmo que escreveu um texto em 2000 chamando os palestinos (sim! O povo todo) de “não-civilizados”, que gerou críticas da colega de revista Mona Chollet (críticas que foram resolvidas com a demissão sumária dela...). Ele ficou no comando até 2009, quando foi substituído por Stéphane Charbonnier [também judeu], conhecido só como Charb. Foi sob o comando dele que a revista intensificou suas charges relacionadas [contrárias] ao Islã, ainda mais após o atentado que a revista sofreu em 2011…

A França tem 6,2 milhões de muçulmanos. São, na maioria, imigrantes das ex-colônias francesas. Esses muçulmanos não estão inseridos igualmente na sociedade francesa. A grande maioria é pobre, legada à condição de “cidadão de segunda classe”, vítimas de preconceitos e exclusões. Após os atentados do World Trade Center, a situação piorou.

Alguns chamam os cartunistas mortos de “heróis” ou de os “gigantes do humor politicamente incorreto”, outros muitos os chamam de “mártires da liberdade de expressão”. Vou colocar na conta do momento, da emoção. As charges polêmicas do "Charlie Hebdo", como os comentários políticos de colunistas da "Veja", são de péssimo gosto, mas isso não está em questão. O fato é que elas são perigosas, criminosas até, por dois motivos.

O primeiro é a intolerância. Na religião muçulmana, há um princípio que diz que o Profeta Maomé não pode ser retratado, de forma alguma. Esse é um preceito central da crença Islâmica, e desrespeitar isso desrespeita todos os muçulmanos. Fazendo um paralelo, é como se um pastor evangélico chutasse a imagem de Nossa Senhora para atacar os católicos…

Qual é o objetivo disso? O próprio Charb falou: “É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo”. “É preciso” porquê? Para quê?

Note que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é [todo] o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a revista. Os tribunais franceses, famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerância (ver Caso Dreyfus), como o STF no Brasil, que foi parcial nas decisões nas últimas eleições e no julgar com dois pesos e duas medidas caos de corrupção de políticos do PSDB ou do PT, deram ganho de causa para a revista.

Foi como um incentivo. E a "Charlie Hebdo" abraçou esse incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã e contra o cristianismo, se tem dúvidas, procure no Google e veja as publicações que eles fazem, não tenho coragem de publicá-las aqui…

Mas existe outro problema, ainda mais grave. A maneira como o jornal retratava os muçulmanos era sempre ofensiva. Os adeptos do Islã sempre estavam caracterizados por suas roupas típicas, e sempre portando armas ou fazendo alusões à violência, com trocadilhos infames com “matar” e “explodir”… Alguns argumentam que o alvo era somente “os indivíduos radicais”, mas a partir do momento que somente esses indivíduos são mostrados, cria-se uma generalização. Nem sempre existe um signo claro que indique que aquele muçulmano é um desviante, já que na maioria dos casos é só o desviante que aparece. É como se fizéssemos no Brasil uma charge de um negro assaltante e disséssemos que ela não critica/estereotipa os negros, somente aqueles negros que assaltam…

E aí colocamos esse tipo de mensagem na sociedade francesa, com seus 10% de muçulmanos já marginalizados. O poeta satírico francês Jean de Santeul cunhou a frase: “Castigat ridendo mores” (costumes são corrigidos rindo-se deles). A piada tem esse poder. Mas piada são sempre preconceituosas, ela transmite e alimenta o preconceito. Se ela sempre retrata o árabe como terrorista, as pessoas começam a acreditar que todo árabe é terrorista. Se esse árabe terrorista dos quadrinhos se veste exatamente da mesma forma que seu vizinho muçulmano, a relação de identificação-projeção é criada mesmo que inconscientemente. Os quadrinhos, capas e textos da "Charlie Hebdo" promoviam a Islamofobia. Como toda população marginalizada, os muçulmanos franceses são alvo de ataques de grupos de extrema-direita. Esses ataques matam pessoas. Falar que “Com uma caneta eu não degolo ninguém”, como disse Charb, é hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas…

Uma das defesas comuns ao estilo do "Charlie Hebdo" é dizer que eles também criticavam católicos e judeus…

Se as outras religiões não reagiram a ofensa, isso é um problema delas. Ninguém é obrigado a ser ofendido calado.

Mas isso é motivo para matarem os caras!?”. Não. Claro que não. Ninguém em sã consciência apoia os atentados. Os três atiradores representam o que há de pior na humanidade: gente incapaz de dialogar. Mas é fato que o atentado poderia ter sido evitado. Bastava que a justiça tivesse punido a "Charlie Hebdo" no primeiro excesso, assim como deveria/deve punir a "Veja" por suas mentiras. Traçasse uma linha dizendo: “Desse ponto vocês não devem passar”.

Mas isso é censura”, alguém argumentará. E eu direi, sim, é censura. Um dos significados da palavra “Censura” é repreender. A censura já existe. Quando se decide que você não pode sair simplesmente inventando histórias caluniosas sobre outra pessoa, isso é censura. Quando se diz que determinados discursos fomentam o ódio e por isso devem ser evitados, como o racismo ou a homofobia, isso é censura. Ou mesmo situações mais banais: quando dizem que você não pode usar determinado personagem porque ele é propriedade de outra pessoa, isso também é censura. Nem toda censura é ruim…

Deixo claro que não estou defendendo a censura prévia, sempre burra. Não estou dizendo que deveria ter uma lista de palavras/situações que deveriam ser banidas do humor. Estou dizendo que cada caso deveria ser julgado. Excessos devem ser punidos. Não é “Não fale”. É “Fale, mas aguente as consequências”. E é melhor que as consequências venham na forma de processos judiciais do que de balas de fuzis ou bombas.

Voltando à França, hoje temos um país de luto. Porém, alguns urubus são mais espertos do que outros, e já começamos a ver no que o atentado vai dar. Em discurso, Marine Le Pen declarou: “a nação foi atacada, a nossa cultura, o nosso modo de vida. Foi a eles que a guerra foi declarada”. Essa fala mostra exatamente as raízes da islamofobia. Para os setores nacionalistas franceses (de direita, centro ou esquerda), é inadmissível que 10% da população do país não tenha interesse em seguir “o modo de vida francês”. Essa colônia, que não se mistura, que não abandona sua identidade, é extremamente incômoda. Contra isso, todo tipo de medida é tomada. Desde leis que proíbem imigrantes de expressar sua religião até… charges ridicularizando o estilo de vida dos muçulmanos! Muitos chargistas do mundo todo desenharam armas feitas com canetas para homenagear as vítimas. De longe, a homenagem parece válida. Quando chegam as notícias de que locais de culto islâmico na França foram atacados, um deles com granadas!, a coisa perde um pouco a beleza. É a resposta ao discurso de Le Pen, que pedia para a França declarar “guerra ao fundamentalismo” (mas que nos ouvidos dos xenófobos ecoa como “guerra aos muçulmanos”, e ela sabe disso).

Por isso tudo, apesar de lamentar e repudiar o ato bárbaro do atentado, eu não sou Charlie. Je ne suis pas Charlie."

FONTE: escrito pelo ex-padre franciscano Leonardo Boff, doutor em filosofia e teologia. Transcrito no "Brasil 247"  (http://www.brasil247.com/pt/247/mundo/166167/Leonardo-Boff-'eu-tamb%C3%A9m-n%C3%A3o-sou-Charlie'.htm).

3 comentários:

Jornalista de Luxo disse...

Adianto que a liberdade de expressão é direito de todos, VIVA-A! Com o uso dessa liberdade é possível um debate de divergências de ideias sem baixaria, sem agressão, sem xingamento, sem escárnio, sem humilhação. O ser humano é provido de inteligência que o capacita expor suas ideias sem se portar como um tolo arrogante, bruto e SEM MATAR. Por isso, Charlei não me representa no combate ao terrorismo. Também é óbvio que os terroristas não me representam! Também, não representam a comunidade RELIGIOSA muçulmana. O terrorismo é provindo dos extremistas que agem assim E DEVEM SER PUNIDOS.
Infelizmente, o terrorismo se alastra no mundo e não vejo interesse verdadeiro, por parte das nações, para um ponto final do terror (sem guerras, sem mais mortes), por parte das nações de destaque no cenário econômico e político. Vejo isso, alimentarem a guerra entre judeus e palestinos (e/ou muçulmanos), porque vale mais o lucro que gera dessa briga que manter a vida, o bem maior de todo ser humano.

Eu acredito na capacidade do homem de expor suas ideias com uma postura honrosa. Não se ganha no grito e/ou deboche. A psicologia diz que o ser humano sem argumento, preconceituoso, intolerante e revoltado, ou mesmo movido pela inveja é que recorre à tais artifícios. Quando chega nesse ponto, sua inteligência emocional já está totalmente comprometida. Com isso, quero dizer que é com a inteligência emocional e/ou inteligência social que a sociedade avança, rever conceitos, reformula leis, combate a corrupção, e por aí vai.

A liberdade de expressão é seguida da ética e vai até onde chega à liberdade de expressão do outro. Macula-se à liberdade de expressão usada de forma desrespeitosa e irresponsável, resultando muitas vezes em casos de terrorismo, guerras e na chacina lamentável dos profissionais do Charlie. Com certeza, nesse cenário da liberdade de expressão os fundamentalistas muçulmanos não se encaixam, vivem como a Igreja Católica se portava na Idade Média.

Enquanto, o Charlie é composto de profissionais qualificados que não precisam recorrer à baixeza de charges debochadas e obscenas, logo na França que se afastou anos luz da intolerância da Idade Média? Para defender uma opinião, ideia, combater o preconceito, a opressão e usar a liberdade de expressão é desnecessário o escárnio, deboche e imagens obscenas que são estampadas em bancas de revistas e noticiários para quem quer e quem não quer vê-las. Até hoje, a postura agressiva com essas charges do Charlie Hebdo só acirrou à intolerância entre muçulmanos e não muçulmanos, atentados terroristas e mortes.
Outro detalhe importante do "eu não sou Charlie", no meu caso, é trazer a questão para seu verdadeiro cerne: O TERRORISMO, porque atos de terrorismos acontecem em vários lugares, como nesse mesmo contexto, aconteceu também num supermercado. Quando a frase "eu sou Charlie" é divulgada, inflama sim o terrorismo e valida o apoio às charges de desrespeito ao direito e aos dogmas de uma religião. Charlei quer liberdade de expressão? Certíssimo! Então, deve respeitar a liberdade do outro escolher a sua crença. Não se pode confundir liberdade de expressão com deboche, escárnio e humilhação. És aí o perigo do "eu sou Charlie". As charges desse jornal são de humor ácido e sempre com um toque de obscenidade e deboche, por isso trago como pano de fundo o direito à crença religiosa. Cada um tem o direito de ter a sua e não cabe à ninguém censurar esse direito. Essa é a questão, no meu ponto de visto, com todo respeito ao seu.

Jornalista de Luxo disse...

O Charlie Hebdo é um jornal de edição semanal e possui uma linha editorial sátira, com caricaturas e piadas irreverentes e explicitamente antirreligiosas e de esquerda. Publicam artigos sobre a extrema direita, catolicismo, islamismo, judaísmo, política e cultura. A “menina dos olhos” do jornal são suas famosas e polêmicas charges que debocham das religiões, em especiais as citadas. E, infelizmente, jornais similares ao Charlie há aos montes, com esse humor ácido e não vamos muito longe. Aqui no Brasil tem CQC, Pânico na Tv, para citar algumas que hoje estão sendo processados em razão desse "humor" de escárnio, comportamento da mídia sensacionalista que cada vez mais vem instaurando essa modalidade de "jornalismo".

Contraditória a liberdade de expressão do Charlei que censura com frequência o direito do outro de ter uma religião, uma crença. Isso é de uma contradição abusiva e arrogante, ao ponto de colocar em perigo a vida deles e de muitas pessoas. Liberdade de expressão é seguida da ética. A liberdade de expressão não pode ser comparada com xingamento, deboche, escárnio e denegrir a imagem do outro, agressão física e muito menos matar por não concordar com o pensamento do outro (como os terroristas fizeram com os cartunistas). A imagem de uma pessoa é intocável, inclusive, nas leis brasileiras é crime passível de condenação por danos morais e materiais. Temos total liberdade de pensamento e para expô-lo, mas jamais ofender e denegrir o próximo. Quando uma mentira sobre alguém é lançada ou sua imagem exposta de forma humilhante para muitos é como pegar um travesseiro de penas, rasgá-lo num telhado e lançar suas penas ao ar. Será impossível juntá-las novamente, é irreversível. Assim, também é o escárnio, a humilhação e a intolerância. Ressalto, ainda, que tais comportamentos causam danos psicológicos numa pessoa, e isso é muito sério. E por favor, não estou me referindo aos terrorismos, mas a esse tipo de humor de escárnio que vem se popularizando, porque rende dinheiro. Rir da desgraça dos outros, ver o outro humilhado ainda é uma postura de muitas pessoas, desde que não seja com elas.
Por isso, tenho que dizer: je ne suis pas Charlie e digo mais: #JeSuisDeLuxe. Respeito quem é Charlei, mas #EuNãoSouCharlie

Unknown disse...

À Jornalista de Luxo,
Creio que o correto e a verdade estão bem próximos, ou coincidentes com a sua linha de raciocínio exposta no seu ótimo comentário.
Maria Tereza