Democracia ou não intervenção?
Os países desenvolvidos só realizaram sua transição para a democracia após completar sua revolução capitalista
Se a OEA (Organização dos Estados Americanos) lograr acordo que garanta o retorno de Manuel Zelaya à Presidência de Honduras e, em seguida, a realização de eleições, teremos afinal chegado a um bom resultado para a democracia na América Latina; não será, porém, um avanço no sentido da autonomia nacional dos países latino-americanos.
Existe aqui um conflito entre o ideal de democracia e o de não intervenção. Os indivíduos precisam ser livres, e as nações, soberanas. Que fazer diante desse dilema? Ignorar um golpe antidemocrático, e, assim, desrespeitar o princípio da não intervenção, ou reafirmar esse princípio? Ter uma garantia contra o autoritarismo interno ou contra o imperialismo inerente aos países mais poderosos?
Em um tempo em que a democracia se tornou um valor universal, pode parecer evidente que sua garantia tem precedência sobre o princípio da soberania nacional. Não estou, entretanto, seguro a respeito dessa tese. Como também não deveria estar seguro o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, que, agora, cobra o restabelecimento da democracia. Em 2002, ele sofreu um golpe com participação dos Estados Unidos no qual a justificativa era que seu governo não era democrático.
A política de exigência internacional de democracia nasceu de uma mudança da estratégia de poder dos Estados Unidos no início dos anos 1980 (governo Reagan), quando o país deixou de se associar a ditaduras militares na América Latina e passou a intervir de forma crescente na política interna de países de todo o mundo para que eles se democratizassem e conservassem a democracia.
Não tenho simpatia por governos autoritários, mas só em países em que o desenvolvimento econômico e social já alcançou um nível razoável é possível afirmar que a democracia deve ser defendida como valor último, não negociável. Antes, é preciso estudar cada caso.
Para os Estados Unidos, a política de exigência de democracia tornou-se uma forma de assegurar que nos outros países os governos lhes sejam favoráveis do ponto de vista econômico e estratégico: que recebam seus investimentos e garantam seus direitos de propriedade intelectual sem restrições, e que, no jogo internacional, apoiem sua política internacional contrária a outros grandes países nacionalistas que consideram como adversários.
Dado o fato de que nos países em desenvolvimento os governos eleitos tendem a representar elites econômicas e políticas associadas aos Estados Unidos, essa "política democrática" transformou-se em instrumento de sua dominação. Isso, entretanto, não os impediu de continuar a apoiar governos autoritários como os do Egito, da Jordânia e de Cingapura.
A democracia só se torna o melhor dos regimes políticos depois que o país realizou sua revolução capitalista e a apropriação do excedente econômico deixou de ser feita através do controle direto do Estado para ser feita através do lucro obtido no mercado competitivo. Antes disso acontecer, a democracia será inviável ou então muito instável porque a oligarquia sabe que, se perder o poder nas eleições, poderá perder tudo. Provavelmente por isso, todos os países hoje desenvolvidos só realizaram sua transição para a democracia depois de terem completado sua revolução capitalista.
Honduras definitivamente não a completou. Mas o golpe nesse país não leva ao desenvolvimento econômico ou à revolução capitalista; apenas à maior dependência. Nesse caso, a política de exigência de democracia é a correta."
FONTE: artigo de LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA, professor emérito da Fundação Getulio Vargas, ex-ministro da Fazenda (governo Sarney), da Administração e Reforma do Estado (primeiro governo FHC) e da Ciência e Tecnologia (segundo governo FHC), é autor de "Macroeconomia da Estagnação: Crítica da Ortodoxia Convencional no Brasil pós-1994". Publicado na Folha de São Paulo de hoje (05/10).
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