quinta-feira, 21 de janeiro de 2010
LE MONDE: "ÍNDIA, BRASIL E EUA EXPERIMENTARAM A DISCRIMINAÇÃO POSITIVA
Natalie Araújo, Marcela Lustosa, Gustavo Arnt, Cínthia Barbosa, Valdene Costa, Angelo França e Gustavo Cantuária, alunos da Universidade de Brasília contemplados pelo sistema de cotas
Índia, Brasil, Estados Unidos: eles experimentaram a discriminação positiva
Índia, território de experimentação precoce
A Índia foi um dos primeiros países do mundo a ter experimentado políticas de discriminação positiva. De fato, desde o século 19, os colonos britânicos implantaram um sistema de cotas (reservas) para favorecer a casta dos intocáveis.
Entretanto, a importância desse gesto se manteve limitada e nunca ameaçou o domínio dos "duas vezes nascidos" (os brâmanes, os guerreiros, os comerciantes) sobre a sociedade.
Ao reservarem escolas, a partir de 1892, às "depressed classes" - o termo oficial para designar os intocáveis nos anos 1930 -, os colonos levaram seu índice de alfabetização a 6,7% para os meninos, e 4,8% para as meninas em 1921, um índice que permaneceu extremamente fraco. Uma política de bolsas foi sendo desenvolvida aos poucos. Em 1934, 8,5% dos postos disponíveis em funções públicas foram reservados a eles, um índice que chegou a 12,5% em 1946 para ser proporcional à parte dos intocáveis na população. Paralelamente, a política de reserva foi estendida às populações tribais (7% da população em 1951). Entretanto, essas vagas nunca foram totalmente preenchidas, seja pela falta de candidatos, seja porque os dirigentes de universidades ou de administrações não se preocupavam em respeitá-las.
Em 1947, ano de sua independência, o princípio de "discriminação positiva" não foi questionado. Mas sua extensão à categoria intermediária das chamadas castas "atrasadas" provocou a oposição das elites indianas. As "backward classes" incluem categorias muito heteróclitas, indo desde castas impuras, como as lavadeiras e os barbeiros, cujo status quase não se distingue dos intocáveis, até as castas nobres, como a dos cultivadores e proprietários de terras. Reservar lugares a eles nas universidades e administrações consistia em ameaçar diretamente os "duas vezes nascidos".
Um dos problemas encontrados na Índia se deve ao fato de que a discriminação positiva que leva em conta o pertencimento a uma casta que acaba enrijecendo o sistema. Ora, as castas foram oficialmente abolidas pela Constituição promulgada em 1959, ao mesmo tempo em que continuam sendo o elemento estruturante da sociedade. No relatório "A comissão sobre a igualdade das oportunidades: o quê? Por quê? Como?" (fevereiro de 2008), que trata da criação de uma agência governamental dedicada à discriminação positiva, um comitê de especialistas preconiza não restringir a questão da diversidade social àquela das castas, que além disso só dizem respeito aos hinduístas (82% da população) e não levam em conta as outras minorias: muçulmanos, sikhs, cristãos. O relatório explica que "a identidade dos grupos pobres nem é tão fundamentada sobre a religião ou as castas, mas sim sobre sua estagnação na pobreza, e consequentemente em sua incapacidade de ter acesso às mesmas oportunidades".
Entretanto, em 10 de abril de 2008, a Suprema Corte aprovou a extensão das cotas com base nos "grupos classificados" - os únicos recenseados a partir de agora - nos colégios e nas universidades. Em mais de 22,5% das vagas já reservadas aos estudantes das "castas e tribos classificadas", 27% são dedicadas aos estudantes vindos de "outras classes atrasadas". Então, no total, quase metade das vagas universitárias são reservadas aos estudantes de categorias desfavorecidas. A Suprema Corte impôs diversas proteções para essa discriminação positiva: os mais privilegiados das castas baixas são excluídos do sistema, que deverá ser reavaliado a cada cinco anos.
Sua implementação, no entanto, causou uma onda de manifestações no país. O protesto chegou a vir por parte de membros das castas inferiores, que acreditam que seria melhor lhes dar oportunidades melhores desde muito cedo, com uma melhor educação primária e secundária. Pois o sistema de cotas ainda não provou sua eficácia. Ainda que muitos dalits - intocáveis - tenham chegado a postos de responsabilidade política, a parcela de intocáveis que vivem abaixo da linha de pobreza aumentou seis vezes entre 1950 e 2005.
Brasil: a dificuldade em definir a cor da pele
No Brasil, os negros ou pardos representam cerca de 45% da população, mas somente 15% dos estudantes. Em compensação, eles são dominantes entre as camadas mais pobres da sociedade, constituindo, por exemplo, 90% dos analfabetos. Essa situação é o resultado de séculos de escravidão e de perseguição às populações negras e ameríndias. O Brasil foi um dos últimos países do mundo a abolir a escravidão, em 1888. Mas apesar de os escravos terem sido libertados, o Estado não lhes deu os meios de se integrarem à sociedade.
O princípio da discriminação positiva para favorecer o acesso dos mais desfavorecidos ao ensino superior surgiu no Brasil em 1995, com o presidente Fernando Henrique Cardoso. Mas foi Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-metalúrgico que chegou ao poder em 2002, que levou a ideia adiante.
Ter acesso aos cerca de 200 estabelecimentos públicos de ensino superior do Brasil depende da realização de uma prova: o vestibular. Para aqueles que não passam nesse concurso, resta a possibilidade de integrar uma das 1.800 instituições privadas, geralmente muito caras e menos competitivas.
A partir de 2000, quase cinquenta universidades implantaram um sistema que "melhora" as notas de alguns alunos no vestibular, em função do nível de renda de sua família, mas também de sua cor de pele. Essa medida, que entre 2001 e 2008, permitiu a quase 52 mil estudantes das classes sociais mais pobres terem acesso à universidade, não foi instaurada sem conflitos. Diversos jornais, entre os quais a influente publicação "Época", criticaram o "desprezo do mérito".
Além disso, a definição da etnia continua sendo problemática. No Brasil, existem mais de uma centena de adjetivos para classificar a cor da pele. Essas classificações variam de uma região para outra, sendo que quase todos os brasileiros podem reivindicar um ancestral negro ou pardo. Em 2003, um caso causou polêmica: Diego Designe, branco de pele, havia se inscrito como negro no exame de contabilidade da Universidade do Rio de Janeiro, onde foi admitido graças às cotas. Condenado pela imprensa, ele desistiu por fim de aproveitar abusivamente desse privilégio.
Então, o governo decidiu se basear em outros critérios de cotas. Em novembro de 2008, os deputados aprovaram um projeto de lei que reserva 50% das vagas nas universidades públicas federais aos alunos que tenham cursado o ensino médio em escolas públicas. Pois é ali que está o problema: quase todos os alunos das escolas públicas, cujo ensino prepara mal para os estudos superiores, são de origem modesta, ao passo que as classes ricas mandam seus filhos para estabelecimentos privados de melhor reputação.
A medida, explicada pelo portal de notícias "UOL", prevê a reserva de 25% das vagas aos alunos cujas famílias tenham rendas inferiores a um salário mínimo e meio. Mas o projeto de lei ainda deve ser analisado pelo Senado. Sua aprovação é incerta: segundo o portal "Último Segundo", o problema é uma emenda, introduzida após a votação dos deputados, que inclui novas cotas com base em critérios raciais. A Suprema Corte deve se pronunciar no dia 5 de março sobre esse caso.
Nos Estados Unidos, critérios complexos de seleção
A "ação afirmativa" - equivalente americano à discriminação positiva - nasceu da luta pelos direitos civis e da abolição da segregação racial. No fim dos anos 1960, o governo republicano de Richard Nixon decidiu favorecer, por meio de políticas de tratamento preferencial, o acesso ao emprego e à admissão nas universidades de determinados grupos que no passado haviam sido objeto de práticas discriminatórias.
Contudo, essa política era calculada e visava restabelecer a ordem pública após uma onda de tumultos raciais que fizeram mais de 170 mortos e 7.000 feridos entre junho de 1964 e 1968.
A "affirmative action" americana no início designava disposições destinadas a promover um aumento do número de candidatos negros para determinadas vagas. Foi somente nos anos 1970 que se implantou uma política específica de seleção, com a instauração de cotas étnicas em determinadas universidades.
Estas não duraram muito, porque em 1978 o veredicto sobre o caso Bakke da Suprema Corte condenou a faculdade de medicina da Universidade da Califórnia, que reservava 16% de suas vagas aos estudantes negros e hispânicos. Mas ainda que a Suprema Corte tenha rejeitado as cotas, ela estabeleceu a diversidade como objetivo do processo seletivo. As universidades devem então rever seus programas de processos seletivos para torná-los informais e flexíveis. Levar em conta o fator étnico deve ser um elemento positivo entre outros no exame dos dossiês para atingir a diversidade.
Em 2003, três estudantes brancos recusados pela faculdade de direito da Universidade de Michigan, se julgando lesados, apelaram novamente à Suprema Corte. "Para além da interdição das cotas, a Corte detalha então em seu decreto que o valor atribuído ao fator racial não deve ser quantificado antecipadamente", diz Daniel Sabbagh, especialista em ação afirmativa e diretor de pesquisas no Centro de Estudos e Pesquisas Internacionais (CERI-Sciences Po). Em outras palavras, o "bônus" atribuído aos estudantes negros ou hispânicos não pode ser estabelecido com antecedência.
Paralelamente, a Suprema Corte confirmou a validade dos programas que visavam obter uma "massa crítica" de estudantes negros ou hispânicos nas universidades. Essa "massa crítica" não é quantificada, e os meios para atingi-la não são especificados. A Suprema Corte ratifica assim o princípio de programas informais e flexíveis.
Desde meados dos anos 1990, diversos Estados rejeitaram a discriminação positiva. No Texas, no Mississipi e na Louisiana, o sistema foi temporariamente abolido por decisões jurídicas, antes de ser reintroduzido pelo decreto da Suprema Corte de 2003. Em compensação, a questão, submetida a um referendo em cinco Estados, foi julgada em caráter definitivo. O primeiro a abolir a ação afirmativa foi a Califórnia, em 1996, seguido pela Flórida, Washington, Michigan e mais recentemente o Nebraska. Mas a abolição só diz respeito às universidades públicas. Na Califórnia, por exemplo, a universidade privada Stanford continua a praticar a discriminação positiva de forma muito ativa.
"Toda vez que a questão da ação afirmativa é submetida a um referendo, a votação resulta na abolição do sistema com uma ampla maioria", observa Daniel Sabbagh. "A recusa se baseia em argumentos jurídicos, morais e filosóficos, não em dados empíricos confiáveis de avaliação dos programas".
Pesquisadores revelaram que, nas universidades desses cinco Estados que aboliram o sistema, a parcela dos estudantes negros havia caído de forma drástica em alguns casos. Um estudo conduzido por três pesquisadores da Universidade da Flórida, publicado na revista "InterActions", mostra por exemplo que na Universidade de Los Angeles (UCLA), a proporção dos estudantes afro-americanos no primeiro ano passou de 7,3% em 1995 para 2,3% em 2005.
Na Flórida, a queda foi menos evidente: a proporção de negros passou de 11,3% em 2000, ano em que a discriminação positiva foi julgada ilegal, para 9,4% em 2005. O abandono dessa política foi compensado por um sistema de admissão automática dos melhores alunos. Paralelamente, a universidade aumentou o número de vagas disponíveis.
"Sistemas alternativos vieram substituir a ação afirmativa", observa Daniel Sabbagh.
Assim, no Texas, desde 1997 cada colégio, rico ou pobre, pode enviar à universidade os 10% de alunos com melhores notas. "O Texas elaborou um leque de indicadores de desvantagem, todos mais ou menos ligados ao fato de ser negro ou hispânico", diz o pesquisador. Cada candidatura à universidade é examinada à luz de uma série de questões: o candidato é bilíngue(o que favorece os hispanófonos)? Ele estudou em um colégio que tenha sido discriminado? Ele será o primeiro em sua família a obter um diploma? E assim por diante.
A Universidade de Berkeley implantou uma abordagem "holística" do exame dos pedidos de inscrição - uma referência à medicina holística, que privilegia uma abordagem global da saúde de um indivíduo. "Após as avaliações separadas das diferentes partes do pedido [notas, atividades extra-curriculares, motivação...], na fase final, somente uma pessoa pode tomar conhecimento do conjunto do dossiê", explicou ao "Le Monde" um porta-voz da universidade, em janeiro de 2007. "Dessa forma podemos avaliar a elegibilidade de um aluno, não somente em função de seus resultados escolares, mas levando em conta o contexto local".
As políticas de ação afirmativa cumpriram seu papel? "A curto prazo, elas são eficazes e conseguem dar acesso a mais negros e hispânicos para as universidades", acredita Daniel Sabbagh. Os estudos empíricos mostram ainda que quanto mais seletiva for a universidade, mais elevado é o índice de obtenção de diplomas para todas as categorias de estudantes. A explicação desse paradoxo se deve à motivação dos estudantes selecionados e aos meios dos quais dispõem as melhores universidades para acompanhar seus estudantes. Mas nas universidades menos seletivas, ainda existe uma diferença de desempenho entre os estudantes.
Quanto à questão de se a ação afirmativa nas universidades favoreceu uma integração mais ampla dos negros e hispânicos na sociedade, a resposta é complexa. Claro, o número de negros que pertencem à classe média quadruplicou, ao passo que o número de negros pobres diminuiu pela metade. Mas 25% dos afro-americanos continuam a viver abaixo da linha da pobreza, ante 8% dos brancos, e a segregação geográfica continua a ser uma realidade, uma vez que negros e brancos não vivem nos mesmos bairros."
FONTE: reportagem de Mathilde Gérard publicada hoje (21/01) no jornal francês Le Monde e postada no portal UOL.
Tradução: Lana Lim
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