terça-feira, 28 de setembro de 2010

“DEMOS OS POBRES AO MERCADO. É HORA DE DAR O MERCADO AOS POBRES”

Marcelo Neri defende mudanças no Bolsa-Família, o fim dos aumentos reais do salário mínimo, microcrédito e microsseguro para os que deixam a pobreza

ENTREVISTA

Um dos principais arautos dos fortes avanços sociais brasileiros em termos de renda e queda da desigualdade nesta década, o economista Marcelo Neri vê grandes oportunidades e grandes riscos para o próximo governo. Diretor do Centro de Políticas Sociais (CPS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio, Neri detalhou, em dezenas de trabalhos ao longo dos últimos anos, a grande redução da pobreza e a emergência da classe C, a nova classe média popular.

O economista vê o progresso recente como a resultante de uma década e meia de boas políticas econômicas e sociais, iniciadas com o Plano Real, que afetaram principalmente a renda do trabalho – mais importante para a queda da desigualdade e da pobreza do que as transferências sociais. Ele defende mudanças no Bolsa-Família, e, de forma polêmica, o fim dos reajustes reais do salário mínimo.

Para Neri, depois de “dar os pobres aos mercados”, como consumidores, é hora “de dar os mercados aos pobres”, o que significa “tratá-los como protagonistas de sua história, e menos como sujeitos passivos, receptores de transferências de dinheiro público”.

Para ele, é preciso “dar asas” ao potencial produtor dos pobres, com programas como microcrédito e microsseguro. Neri também alerta contra a ideia de que o Estado pode tudo. Uma lição errada, na sua opinião, a ser tirada da crise global. A seguir, a entrevista.

Quando começa a grande melhora social brasileira?

Quando se analisam as séries sobre pobreza, sobre a nova classe média, verifica-se que há um primeiro salto importante no Plano Real. A pobreza teve uma queda grande, de mais de 20%, em dois anos. O fim da inflação trouxe estabilidade para se planejar o futuro. Em 2003, foi iniciado um processo semelhante, que, em seus dois primeiros anos, foi parecido com o que houve no Real. Só que, dessa vez, o processo continuou, e atingiu uma magnitude duas vezes e meia maior do que a do Real.

E o que explica esse avanço?

Por um lado, a redução da desigualdade: ela vem caindo, no Brasil, desde 2001. Por outro, a volta do crescimento a partir de 2004, com geração de emprego, especialmente de emprego formal. Acho que o “Real do Lula” acontece quando se junta a redução da desigualdade com a volta do crescimento. Aí vem uma redução mais forte na pobreza, um aumento da classe C. E vem também sustentabilidade política, porque as pessoas de renda mais alta também estão melhorando. É diferente do período entre 2001 e 2003, quando a desigualdade caía, mas com a economia estagnada. Aí, os pobres ganhavam, mas o topo perdia. E houve ainda, com o Lula, o que considero um novo choque de estabilização da economia, não em relação à inflação, mas à manutenção dos contratos. Havia uma aposta contra, os indicadores de risco dispararam. E aí veio o choque de confiança, que ajuda no investimento e na contratação de mão-de-obra.

Quais são os números mais emblemáticos desse processo de melhora?

Em primeiro lugar, a redução da pobreza. Foi uma queda quase pela metade, de 45,5%, de 2003 a 2009. A meta do milênio é de reduzir em 50% em 25 anos. Portanto, o que fizemos é quase 25 anos em seis. Já a classe C, que é olhar um pouco mais acima na distribuição, tem um aumento mais ou menos de 29 milhões de pessoas no mesmo período. Se somar as classes A, B e C, são 35 milhões de novas pessoas ingressando na classe média, mesmo com o ano de crise em 2009. Em relação à desigualdade, a renda dos 10% mais pobres cresceu em termos reais, em seis anos, algo como 7% ao ano, o que não está muito distante do ritmo do milagre dos anos 70, enquanto os 10% mais ricos cresceram 1,5%. Os mais pobres estão tendo um crescimento quase cinco vezes maior do que os mais ricos. Isso provoca essa forte redução da pobreza.

E em 2010?

Bem, a última PNAD foi a de 2009, mas eu diria que o melhor momento é exatamente agora, como se pode ver em outras bases de dados. Foram gerados 1,95 milhão de postos de trabalho em oito meses do ano, e eu diria que vai a 2,2 milhões com alguma facilidade. Isso não é só o recorde da série, mas o recorde com folga.

A distância do recorde deste ano em relação ao recorde anterior vai ser o número de empregos que se gerava a cada ano – vai ser o diferença só da mudança de patamar. O Brasil gerava de 600 mil a 700 mil empregos formais por ano, até 2003, em 2004 dobrou o patamar, e agora estamos indo para outro nível. Não sei se será mantido, mas, este ano, em que se gera pouco emprego formal no mundo, como se vê nos países desenvolvidos, estamos batendo nosso recorde.

A pobreza e a desigualdade caíram por causa dos programas sociais?

Eles ajudaram, sem dúvida, mas o grande destaque é a renda do trabalho. Basicamente, 70% do aumento de renda média, e 2/3 da redução da desigualdade no Brasil desde 2003 se deve à renda do trabalho. No Nordeste, que seria a terra dos programas sociais, a chamada economia sem produção, a renda do trabalho e a renda total crescem na mesma taxa, ou seja, há algo mais sustentável no Nordeste do que se pensa.

Por que isso está acontecendo?

Provavelmente as pedras fundamentais foram colocadas lá no Plano Real, que deu estabilidade para o governo e para as empresas, e proporcionou as condições de se pensar o futuro, uma agenda mais estrutural, e, inclusive, se pensar em colocar todas as crianças na escola. Os resultados que vemos hoje têm por trás um longo período de boas políticas econômicas e sociais, e o Plano Real talvez tenha sido o momento inicial desse processo.

A educação está ligada ao aumento da renda do trabalho?

Sim. Nós tínhamos 16% das crianças de 7 a 14 fora da escola em 1990, em 2000 esse número já tinha caído para 4% e agora está em 2%. Então, à medida que essas crianças, que eram adolescentes nos anos 90, chegaram ao mercado de trabalho, com a inflação baixa, a sociedade sabendo que não viria mais um plano econômico maluco para embaralhar as cartas, a economia começou a produzir esse crescimento chinês na base da distribuição. Houve abertura da economia, estabilização, reforma meia-sola da Previdência, privatização. Isso traz custos imediatos mas, em prazo mais longo, a economia ganha competitividade. E as próprias crises dos anos 90 obrigaram o Brasil a fazer o dever de casa, com ajuste fiscal, o PROER, que deu solidez ao sistema bancário etc.

Como o Sr. avalia o governo Lula na área social?

Bem, a primeira coisa a ser dita é que a trajetória do Lula coincidiu com a trajetória dos pobres do Brasil. Ele criou uma relação com as pessoas, que projetam no líder o que está acontecendo na vida delas. Se Getúlio é o pai dos pobres, o Lula não é o pai dessa nova classe média, ele é a classe média, ele a representa e simboliza. O melhor exemplo de ascensão social no Brasil é o próprio Lula. Ele tem uma capacidade de comunicação fora do normal, e com isso ele blinda o seu governo contra qualquer ataque. Em termos de política social, acho que ele foi intuitivo, aprendeu rápido e deu as respostas corretas.

Poderia especificar melhor?

O governo Lula começou com o pé esquerdo na área social. O ‘Fome Zero’ era uma colcha de retalhos, não tinha uma lógica. Mas ‘Fome Zero’ acabou virando um slogan e o governo Lula foi o maior programa de treinamento no emprego já realizado – eles aprenderam muito rápido! Em outubro de 2003 já haviam lançado o ‘Bolsa-Família’. O Lula viu as contas, percebeu que o Bolsa-Família custava barato e resolveu botar ficha. O ‘Bolsa-Escola’ e o ‘Bolsa-Alimentação’ são o embrião original do Bolsa-Família, mas o Lula pegou para si essa bandeira e lhe deu escala.

Na educação a história não é a mesma.

Na educação há um processo que começou lá no SAEB, em 1995, e no qual o governo Lula botou mais ficha, fazendo o ‘Prova Brasil’, para levar a todas as escolas públicas avaliações de qualidade. De início, todo mundo era contra, porque já tinha o SAEB, hoje se viu que o novo programa tem metas, tem transparência. Na educação, como na desigualdade, a gente olha muito a fotografia, que ainda é péssima. Mas, para influenciar os indicadores, inclusive de emprego e renda, o que interessa é a mudança.

Mas a qualidade de educação não continua estagnada num nível muito baixo?

Não dá para comparar nível de proficiência quando se tinha 16% crianças fora da escola, e, hoje, quando se tem 2%. A gente está avaliando quem não era avaliado, e é natural que houvesse uma queda. E agora a nota voltou ao nível de 1995, com todo mundo na escola, e já se começa a notar uma melhoria. A boa notícia é que já sabemos quão ruim é a nossa escola. Temos avaliações de todas as escolas públicas de dois em dois anos. Hoje, a escolaridade média avança e já temos metas traçadas para a qualidade, seja pela sociedade civil, seja pelo governo federal. Essa, aliás, deveria ser a grande agenda dos próximos dez anos.

Por falar em agenda, qual deveria ser a próxima etapa na área social?

Como disse, o mais importante é a educação de qualidade. Já temos as metas, queremos chegar em 2022 como nível que a OCDE tinha em 2005, que é o nível das nossas escolas privadas. No mais, eu acho que, nos últimos anos, a gente deu os pobres para os mercados, criando essa nova classe média. Foi o que manteve as rodas da economia girando, durante a crise, quando o problema era falta de demanda. E creio que chegou a hora de inverter os termos desse processo e dar os mercados aos pobres.

Pode explicar melhor essa virada?

Dar mercado aos pobres significa tratá-los como protagonistas de sua história, e menos como sujeitos passivos, receptores de transferências de dinheiro público e de crédito ao consumo, consignado aos benefícios. O lado produtor foi reforçado nos últimos anos, como já vimos, mas é preciso dar asas ao potencial dos pobres. Concretamente, falo de temas como o microcrédito e o microsseguro. O microcrédito é o crédito produtivo popular, fundamental para o espírito empreendedor da baixa renda. O Crediamigo (do Banco do Nordeste), que cobre 60% do mercado nacional de microcrédito, gera aumento de lucro de seus clientes, como empresas informais de fundo de quintal, mercearias etc, de 13% ao ano. Para seus clientes, a probabilidade de quem era pobre sair da pobreza em 12 meses é 60% contra 2% da probabilidade do movimento em sentido contrário. Mas dar mercado aos pobres inclui também agendas de transporte, segurança e, sobretudo, educação, incluindo a profissional. E ter também políticas de demanda, de acesso a mercados consumidores, com cooperativas, comércio eletrônico, compras governamentais etc.

Como vê o futuro do Bolsa-Família?

Acho importante a discussão – que ainda está muito acanhada – sobre o ‘Bolsa-Família 2.0’. Penso que se pode dar ainda um pouco mais de escala ao programa, aumentar o número de pessoas, com um custo-benefício, em termos fiscais, muito baixo. Agora, o ‘Bolsa-Família’, na verdade, é uma grande plataforma, um caminho pavimentado na direção dos pobres. Por meio do Cadastro Único, é possível montar programas específicos para qualquer localidade, e fazer política para os pobres fica muito fácil. A gente sabe quem são os pobres, onde moram, sabe o endereço bancário. Temos uma tecnologia, que custa pouco, para dirigir a eles melhores serviços sociais, educação, saúde, assistência, crédito.

O que se poderia mudar no programa?

Acho que também se poderiam criar prêmios por notas, cobrar desafios maiores para essas famílias pobres. O aluno vai ganhar mais se ele melhorar de nota. Não é, claro, pelo nível da nota, porque assim os menos pobres iriam ganhar – o que importa é a mudança de nível da nota. Outra linha de aprimoramento do Bolsa-Família, cujo debate não vai para a frente no Brasil, é o de tirar o desincentivo ao trabalho inerente ao programa. Nos Estados Unidos, há um mecanismo pelo qual uma pessoa que obtém um emprego não perde um determinado benefício de forma total, de forma a preservar o incentivo a buscar trabalho. Finalmente, é preciso blindar o Bolsa-Família em relação ao mercado eleitoral. As pesquisas mostram que a pobreza sempre cai em ano de eleição, e sobe, ou cai muito mais lentamente, no ano seguinte.

Como o Sr. analisa o papel do aumento real do salário mínimo na redução da pobreza?

Estudos que fizemos na década de 90 mostram que, logo depois do Real, o aumento do salário mínimo de R$ 70 para R$ 100 foi responsável por boa parte a redução de pobreza. Foi uma queda instantânea, logo em maio de 95 caiu 11%. Isso aconteceu porque o salário mínimo era muito baixo, e pegava os pobres. Mas, ao longo dos anos, o salário mínimo foi aumentando de valor, tendo dobrado em termos reais desde 2000. Hoje em dia, esses efeitos positivos de redução de pobreza e de desigualdade foram perdidos, o que os dados mostram com clareza, numa análise mais minuciosa, como a dos aumentos de 2005 e 2006. Não é que a pobreza não caiu, é que tem de olhar com lupa para ver o efeito sobre as pessoas que são afetadas pelo mínimo.

O que o Sr. faria em relação ao mínimo?

Acho que deveriam parar de aumentar o salário mínimo em termos reais. Porque as pessoas já não são mais pobres. Quem recebe um salário mínimo, ou quem tem na família alguém que recebe um mínimo, já não é mais pobre, por definição. Com um salário mínimo de R$ 510, você está fazendo política para a classe C, no máximo D. E o que a classe C precisa é de mais acesso a mercado. É a classe E que precisa necessita de ação do poder público, e o Bolsa-Família é o caminho para isso. Eu daria toda a ênfase ao Bolsa-Família, e riscaria os reajustes do salário mínimo. Eu sei que quem fala disso apanha à beça, mas faz parte…

Quais são, na sua opinião, os maiores riscos à trajetória de avanços sociais no País?

Existe o risco externo, já que o mundo virou um lugar bastante perigoso. Mas acho que o País dispõe, hoje, de bons fundamentos macroeconômicos e essa nova classe média ajuda, porque consegue manter uma demanda interna importante. Aqui dentro, o maior risco é a complacência, é achar que já conquistamos alguma coisa, é desperdiçar oportunidades. Corremos o risco de não enxergar quais são os nossos méritos e deficiências e seguir uma agenda descolada da realidade. Um grande erro da política social, por exemplo, é investir demais na terceira idade.

Por quê?

Quando se dá reajuste real para o salário mínimo, que impacta as aposentadorias, o problema não é só o de criar um gasto permanente. É um gasto crescente, na verdade, porque a proporção de idosos está aumentando na população. Então hoje em dia temos um gasto em Previdência com relação ao PIB equivalente ao dos países europeus, sem sermos ricos como eles, e sem ter uma população idosa como eles. Quando chegarmos lá, vamos ultrapassar os gastos previdenciários da Europa. A gente trata os idosos como pobres, e isso é ‘nonsense’, porque eles já não são mais pobres. A taxa de pobreza das crianças é seis a sete vezes maior do que a dos idosos. No Brasil, mesmo pós-Bolsa-Família, esse diferencial não diminuiu, ele aumentou. E existe, finalmente, o risco de acharmos que o Estado resolve tudo.

Quais deveriam ser os papéis do Estado e do mercado?

Essa discussão de Estado e setor privado está muito confusa. O Brasil vem seguindo um caminho do meio, com respeito às regras de mercado – apesar de o Consenso de Washington não ser muito bem acolhido aqui e de o País não querer reformas naquele estilo. Hoje em dia, é muito difícil propor uma agenda de reformas trabalhista e previdenciária, com a economia gerando emprego como está. Agora, a pergunta que não quer calar é quantos empregos formais se gerariam a mais se houvesse uma legislação mais adequada. Por outro lado, Caracas não é aqui. Conseguimos tirar do mercado ganhos interessantes, não tudo. O Estado generoso teve um papel importante, sobretudo na crise internacional. Mas há o risco de a complacência gerada pelo sucesso projetar a reação do Brasil na crise para o futuro, isso virar uma desculpa para um Estado grande. Acho que os 15 anos de boa política econômica e social não se devem tanto aos nossos líderes, embora eu considere FHC e Lula dois líderes geniais. Acho que o sucesso se deve muito à cabeça do brasileiro, que quer que se respeite os contratos, mas também quer uma política social ativa, até mais do que a maioria dos economistas gostaria.”

FONTE: entrevista com o economista Marcelo Neri, Diretor do Centro de Políticas Sociais (CPS) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), no Rio, conduzida por Fernando Dantas do jornal “O Estado de S.Paulo”. Transcrita no blog de Luis Favre (http://blogdofavre.ig.com.br/2010/09/demos-os-pobres-ao-mercado-e-hora-de-dar-o-mercado-aos-pobres/).

Nenhum comentário: