quinta-feira, 30 de setembro de 2010

ISRAEL x PALESTINA


URI AVNERY: “O DIABO DOS DETALHES”

“Existe uma história sobre o homem que ditou o seu testamento. Dividiu generosamente o seu patrimônio, proveu todos os membros da sua família, recompensou os seus amigos e não esqueceu os seus servidores. Terminou com um curto parágrafo: "No caso da minha morte, este testamento é nulo e inválido."

Por Uri Avnery, no “Gush Shalon”

Receio que tal parágrafo será adicionado ao "acordo de enquadramento" que Benjamin Netanyahu promete assinar dentro de um ano, depois de negociações honestas e frutuosas com a Autoridade Palestina, mediadas por Hillary Clinton, para grande gáudio do presidente Barack Obama.

Ao fim de 12 meses, haverá um acordo sobre um enquadramento perfeito. Todos os "assuntos chave" serão resolvidos – a fundação do Estado palestino, fronteiras baseadas na Linha Verde, a divisão de Jerusalém em duas capitais, acordos de segurança, colônias, refugiados, a divisão da água. Tudo.

E depois, na véspera da impressionante cerimônia de ratificação no gramado da Casa Branca, Netanyahu vai pedir a junção de um curto parágrafo: "Com o iniciar das negociações para o tratado de paz permanente, este acordo será nulo e inválido".

Um Acordo de Enquadramento não é um tratado de paz. É o oposto a um tratado de paz.

Um tratado de paz é um acordo final. Contém os detalhes dos compromissos que foram conseguidos através de negociações longas e exaustivas. Nenhuma das duas partes estará completamente feliz com os resultados, mas cada um saberá que conseguiu muito e que pode viver com isso.

Depois da ratificação, chegará o tempo da implementação. Uma vez que todos os detalhes já foram trabalhados no próprio tratado, não haverá mais controvérsia; exceto acerca de tecnicismos negligenciáveis. Estes ficarão a cargo do árbitro norte-americano.

Um acordo de enquadramento é justamente o oposto. Deixa todos os pormenores em aberto. Cada parágrafo permite pelo menos uma dúzia de interpretações diferentes, pois o acordo maquiará diferenças fundamentais com compromissos verbais.

Pode bem dizer-se que as negociações para um enquadramento não são mais do que o prólogo para as verdadeiras negociações, um corredor que conduz à sala de estar.

Se um acordo de enquadramento for conseguido dentro de um ano – abençoado seja o crente – as verdadeiras negociações para o tratado final poderão durar cinco, dez, cem, duzentos anos. Perguntem a Yitzhak Shamir.

Como é que eu sei? Já vimos este filme.

A "Declaração de Princípios" de Oslo, assinada há 17 anos, foi um exemplo desse acordo de enquadramento.

Na altura foi, e bem, considerado um acordo histórico. A cerimônia solene no gramado da Casa Branca foi justificada. A sua importância derivava de um evento que a precedeu, no dia 10 de setembro (que coincide com o meu aniversário), em que o líder do movimento de libertação palestina reconheceu formalmente o Estado de Israel, e o primeiro-ministro israelense reconheceu formalmente a existência do povo palestino e do seu movimento de libertação.

(Aqui é o lugar para assinalar que o Acordo de Oslo de 1993 foi forjado nas costas dos norte-americanos, tal como, em 1977, a iniciativa de Sadat foi construída nas costas dos mesmos. Em ambos os casos, a História foi feita sem a participação dos EUA e, de fato, com receio desta. Anwar Sadat tomou a decisão sobre o seu inaudito voo para Jerusalém sem que o embaixador americano no Cairo soubesse de coisa alguma, e os negociadores de Oslo tiveram grande cuidado em manter as suas atividades em segredo. A participação americana iniciou-se muito tarde no processo, quando já existia um fato consumado.)

O que é que aconteceu depois das duas partes assinarem o enquadramento de Oslo, ao som de trombetas?

As negociações começaram.

Negociações sobre todos os detalhes. Controvérsia em todos os pormenores.

Por exemplo: o acordo declarava que quatro "passagens seguras" seriam abertas entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Israel concretizou esta cláusula da seguinte forma: ao longo das passagens propostas foram colocados sinais rodoviários bastante visíveis, proclamando em três línguas: "Para Gaza". Aqui e ali, ainda é possível encontrar esses sinais enferrujados.

E as passagens? Nunca foram abertas.

Outro exemplo: em longas negociações, a Cisjordânia foi dividida em três áreas: A, B e C. (Desde que Júlio César começou o seu livro acerca da conquista da França com as palavras: "A Gália está dividida em três partes", os estadistas têm sido propensos a dividir qualquer território em três.)

A área A foi devolvida à Autoridade Palestina, que foi estabelecida sob o acordo, e o exército israelense só a invade de tempos a tempos. A área B é governada formalmente pela Autoridade Palestina, mas é administrada na prática por Israel. A área C, a maior, permaneceu firmemente nas mãos de Israel, que aí atua conforme deseja: expropria terras, estabelece colônias, constrói muros e vedações, bem como estradas apenas para judeus.

Além disso, foi declarado que Israel se retiraria ("reposicionaria") em três fases. A fase 1 foi implementada, bem como, mais ou menos, a fase 2. A fase 3, a mais importante, nem sequer foi iniciada.

Algumas disposições conduziram à farsa. Por exemplo, não havia acordo sobre se o título oficial de Iasser Arafat seria apenas "diretor", como exigia Israel, ou "presidente", como exigiam os palestinos. Na ausência de acordo, estabeleceu-se que nas três línguas seria chamado de "ra’is" - um termo árabe que engloba ambos os sentidos. Na semana passada, Netanyahu dirigiu-se a Abu Mazen como "presidente Abbas".

Ou o longo debate sobre o passaporte palestino. Israel exigiu que fosse apenas um "documento de viagem", enquanto os palestinos exigiam que fosse um "passaporte" de pleno direito, como convém a um verdadeiro Estado. Foi acordado que, em cima, diria "documento de viagem" e, em baixo, "passaporte"!

Israel concordou com o estabelecimento de uma Autoridade Palestina. Os palestinos queriam chamar-lhe "Autoridade Nacional Palestina". Israel recusou. Quando os palestinos, contrariamente ao acordo, imprimiram selos com a palavra "nacional" neles, tiveram de ser descartados e imprimidos uns novos.

Segundo o Acordo de Oslo, as negociações sobre os problemas nucleares – fronteiras, Jerusalém, refugiados, colônias, etc. – deveriam começar em 1994 e terminar com um tratado de paz permanente dentro de cinco anos.

As negociações não acabaram em 1999, porque nunca começaram.

Porquê? Muito simples: sem um acordo verdadeiro e final, o conflito continuou em toda a sua fúria. Israel construiu colônias a um ritmo frenético, de modo a criar "fatos no terreno" antes do começo das verdadeiras negociações. Os palestinos iniciaram ataques violentos, de forma a acelerar a saída dos israelenses, acreditando que "Israel percebe apenas a linguagem da força".

O diabo que – como é bem sabido – está nos detalhes, vingou-se daqueles que adiaram as decisões sobre os mesmos. Cada pormenor tornou-se num caminho minado na via para a paz.

Essa é a natureza de um acordo de enquadramento: permite que hajam negociações acerca de cada problema particular, uma e outra vez, permitindo que recomecem sempre do princípio. Os negociadores israelenses usaram esta possibilidade ao máximo: cada "concessão" israelense foi vendida em sucessivas negociações uma e outra vez. Primeiro nas negociações para a "Declaração de Princípios", depois nas negociações para os acordos provisórios; vamos com certeza voltar a vendê-las por uma terceira, quarta e quinta vez nas negociações para os acordos permanentes. Sempre por um preço considerável.

Significa isto que uma Declaração de Princípios não vale nada?

Não diria isso. Na diplomacia, as declarações são importantes mesmo que não sejam acompanhadas por atos imediatos. Retornam uma e outra vez. Palavras que foram ditas não podem ser retiradas, mesmo que sejam só palavras. Não se pode voltar a meter o gênio na lâmpada.

Quando o governo israelense reconheceu o povo palestino, pôs fim a um argumento que dominou a propaganda sionista durante quase cem anos: que não havia e nunca tinha havido um povo palestino. "Não existe tal coisa", como declarou repetidamente a inesquecível (infelizmente) Golda Meir.

Quando os palestinos reconheceram os Estado de Israel, isso provocou uma revolução na percepção do mundo árabe, uma revolução que não pode voltar atrás.

Quando o líder da direita israelense reconhece, perante o mundo inteiro, a solução de "dois Estados para dois povos", desenha uma linha da qual não se pode voltar atrás. Mesmo que o diga sem verdadeira intenção, como se fosse uma truque para o momento, as palavras têm vida própria. Tornaram-se num fato político: a partir de agora, nenhum governo israelense pode voltar atrás.

É por isso que a extrema-direita estava certa quando recentemente acusou Netanyahu de executar – Deus nos livre! - o "projeto Uri Avnery". Não querem prestar-me homenagem, querem é condená-lo. É como acusar o Papa de atuar ao serviço dos aiatolás.

Se no fim Netanyahu fosse obrigado a assinar um "acordo de enquadramento" ou um "acordo preliminar" afirmando que um Estado palestino será estabelecido com base nas fronteiras de 4 de Junho de 1967, com capital em Jerusalém Oriental, com trocas de território limitadas, determinará todo o processo diplomático futuro. Contudo, não acredito que ele assinará, e, mesmo que o faça, – isso não significa que o implementaria.

Portanto, insisto: não deveria haver acordo sobre um processo que está delineado para conduzir a uma "declaração de princípios" ou a um "acordo de enquadramento".

Deveria haver – aqui e agora! – negociações para um tratado de paz completo e final.

O diabo está nos acordos de enquadramento. Deus está – se estiver em algum lado – num tratado de paz.”

FONTE: publicado no no “Gush Shalon”, no site “Informação Alternativa” e transcrito no portal “Vermelho” (http://www.vermelho.org.br/noticia.php?id_secao=9&id_noticia=138187). Segundo a “Wikipédia”, o autor, Uri Avnery, nasceu em Beckum, Alemanha, em 10 de setembro de 1923, com o nome Helmut Ostermann. É jornalista israelense de esquerda , pacifista e antigo membro da Knesset (1965-1974 e 1979-1981). Durante a juventude foi membro do movimento de direita denominado sionismo revisionista e da organização paramilitar Irgun. É fundador do movimento pacifista Gush Shalom e foi um dos proprietários do HaOlam HaZeh, uma revista israelense de informação, que circulou de 1950 a 1993. [Título e imagem colocados por este blog].

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