terça-feira, 23 de dezembro de 2014

CUBA AINDA TEM ALGO A DIZER AO BRASIL




Cuba ainda tem algo a dizer ao Brasil

Cuba só não virou pó graças ao planejamento, à organização social e à consciência política: a ilha ainda fala aos nossos dias e à realidade que nos constrange.

Por Saul Leblon 

"Quem nunca entendeu porque Cuba ainda suscita tanta paixão e debate na política do século XXI está vivendo um novo espasmo de perplexidade.

O reatamento das relações diplomáticas entre Havana e Washington, anunciado na semana passada, dia 17/12, em pronunciamento casado de Obama, nos EUA, e Raúl Castro, em Cuba, tornou-se um dos assuntos mais importantes da agenda internacional, rivalizando com o derretimento do rublo e o mergulho nas cotações do petróleo.

Por que Cuba ainda magnetiza, a ponto de ostentar uma estatura geopolítica dezenas de vezes superior ao seu tamanho demográfico e territorial?

Digamos que não é comum que um país tenha seu nome imediatamente associado, em qualquer lugar do mundo, a sinônimo de audácia, soberania e justiça social.

Tampouco é trivial uma nação ser confundida com a legenda da bravura e da resistência por mais de meio século.

Todas essas exceções viram regra quando quatro letras se juntam para formar a palavra Cuba.

A pequena ilha do Caribe, na verdade um arquipélago de 4.195 restingas, ilhotas e ilhas, soma um território de apenas 110 861 km² (pouco maior que Santa Catarina).

Os cubanos formam um povo de 11,2 milhões de pessoas.

Cuba, porém, está a léguas de ser uma simples ocorrência ensolarada no cardume das pequenas nações.

As quatro letras de seu nome condensam um dicionário de experiências, de esperanças, de vitórias, de tropeços, de lições e de problemas no caminho da construção de uma sociedade mais justa e convergente.

Talvez a mais longeva e atribulada experiência no gênero trazida do século XX para o XXI.

Isso faz dela uma ponte de múltiplas conexões que singularizam e agigantam a sua presença em um tempo em que a utopia socialista perdeu o seu horizonte de transição. Mas, ao mesmo tempo em que a razão de ser dessa travessia avulta torridamente atual.

Os picos de desigualdade no capitalismo, e tudo o que isso denuncia em relação às formas de viver e de produzir em nosso tempo, são uma evidência dessa teimosa pertinência.

Tome-se o caso dos EUA, para deliberadamente radiografar o cenário mais favorável da opulência capitalista.

Nunca a desigualdade foi tão aguda. Jamais a probabilidade de que ela solape as bases da sociedade foi tão presente.

Não é Fidel Castro quem o diz.

A advertência partiu da contida presidente do Federal Reserve (FED), o banco central americano, Janet Yellen.

Os abismos sociais no núcleo central do capitalismo atingiram o ponto em que, segundo a discreta Yellen, os americanos deveriam se perguntar se isso é compatível com os valores dos Estados Unidos.

E uma conferência recente, em Boston, a presidente do FED disse que os níveis de desigualdade nos EUA são os mais altos em um século. “A desigualdade de renda e riqueza estão nos maiores patamares dos últimos cem anos, muito acima da média desse período e provavelmente maior que os níveis de boa parte da história americana antes disso”, afirmou.

Cuba não poderia ser tomada como um contraponto histórico a esse espiral.

A ilha jamais concluiu a transição para onde decidiu caminhar em 1960.

Tangido pela truculência imperial norte-americana, Fidel Castro proclamou, então, a natureza socialista e marxista do governo.

Um ano antes, havia derrubado a ditadura de Fulgêncio Batista e iniciara uma reforma agrária que intensificou a guerra da elite local e estrangeira contra o novo regime.

Cuba nunca se propôs a ser um modelo.

Desde o início foi uma aposta.

De olhos voltados para o relógio da história.

Quem já não ouviu a velha glosa segundo a qual ‘se não existe socialismo em um só país, quanto mais em uma só ilha’?

Nem os irmãos Castro, nem Che, nem nenhum dos pioneiros que desceram de Sierra Maestra para tomar o poder no réveillon de 1959 imaginavam desmentir esse interdito estrutural.

A aposta alternativa, porém, tampouco se consumou.

Um punhado de golpes de Estado sangrentos e preventivos, que tiraram a vida de milhares de pessoas e seviciaram um contingente ainda maior em toda a América Latina, fizeram dos anos 60 e 70 um cinturão profilático em torno da grande esperança cubana.

Todas as artérias que poderiam misturar seu frágil metabolismo ao corpo vigoroso de uma integração regional progressista foram cirurgicamente seccionadas.

A ação conjunta das elites, da mídia e dos exércitos latino-americanos, orientados e auxiliados pela mão longa do Departamento de Estado e da CIA, foi, como se sabe, implacável.

Durante meio século o cerco asfixiante –que teve no embargo econômico iniciado em 1962 a sua fivela mais arrochada-- não cedeu.
A obsessão conservadora contra a aposta cubana, símbolo de múltiplas transgressões em relação aos valores e interesses das plutocracias regionais, ficou comprovada mais uma vez nas eleições presidenciais brasileiras de 2014. 

Em um dos debates mais virulentos da campanha, o candidato conservador Aécio Neves trouxe a ilha para o palanque.

O tucano acusou o governo da candidata à reeleição, Dilma Rousseff, de cometer duas heresias do ponto de vista do cerco histórico à audácia caribenha.

A primeira, o financiamento de US$ 802 milhões para a construção de um porto estratégico de um milhão de conteiners na costa cubana de Mariel, a 200 quilômetros da Flórida. A obra, capaz de transformar Cuba em uma intersecção relevante do comércio entre as Américas, foi denunciada por Aécio como evidência de cumplicidade com o castrismo.

Mariel se somou a uma ampla parceria na área da saúde, igualmente bombardeada. Através dela, mais de 11 mil médicos cubanos ingressaram no país, onde asseguram assistência a 50 milhões de pessoas. O programa "Mais Médicos" levou doutores cubanos a lugares onde profissionais brasileiros não querem trabalhar.

O simbolismo inaceitável pelas elites recebeu o devido tratamento das falanges de jaleco branco e dos guardas-de-turno do cerco a Havana.

O reatamento das relações diplomáticas da semana passada trincou as patas desse discurso.

A calculadora política do conservadorismo operava –e agia-- ancorada na certeza ideológica de que a ‘ilha’ era apenas uma ditadura enferrujada, falida, desmoralizada e fadada à reconversão capitalista.

Jamais uma fonte de lições ao regime de mercado.

Cambaleante, servia à demonização de qualquer traço de planejamento econômico que viesse afrontar a proficiência da autorregulação dos capitais.

Morta, jogaria a pá de cal nos resquícios estatistas e socializantes teimosamente colados à tradição da esquerda latino-americana.

O vaticínio sincronizava o tempo de vida do regime ao do metabolismo de Fidel Castro –cujo epílogo antecipado foi tentado inúmeras vezes pela CIA e fracassou.

Paciência. O câncer, era esse o diagnóstico da grande Miami instalada na alma das elites locais, faria a implosão do regime diante da qual os agentes e os mercenários tropeçaram, desde a desastrosa tentativa de invasão da baía dos Porcos, em abril de 1961.

O reatamento diplomático entre Havana e Washington adiciona ar fresco à impressionante resistência daquilo que se imaginava mais frágil do que tem se mostrado.

Faz mais que isso.

Agrega um inesperado ruído à transição de ciclo econômico em marcha na América Latina.

Marcada por dificuldades cambiais e de crescimento, que parecem devolver o mando de jogo às receitas de arrocho e de rendição incondicional aos ditames dos mercados, vê-se agora diante de uma incógnita: Cuba ainda teria algo a dizer ao futuro regional?

Em edição recente, de agosto deste ano, a revista "New Left Review" arrolou dados interessantes sobre a resiliência da frágil sociedade cubana diante da dupla adversidade imposta pelo embargo americano e o fim do apoio russo, após o esfarelamento do bloco comunista.

É inescapável a atualidade da lição embutida nessa travessia.

Por maior que tenha sido a rigidez política de que se acusa o regime –e até por conta da explosividade que esse fator unilateral acarretaria-- Cuba só não virou pó graças ao planejamento público, à organização social e à consciência política de amplas camadas de sua gente.

Não se trata de mitificar um "case" de custo humano e social elevadíssimo. Mas de enxergar na experiência extrema da vulnerabilidade, o alcance mitigador da variável política, reconhecida agora no reatamento diplomático norte-americano.

Nesse sentido, o retrospecto da épica caminhada do povo de Cuba fala aos nossos dias e à realidade que nos constrange.

Ao contrário da presunção que vê no degelo diplomático o atalho da conversão capitalista tantas vezes frustrada, a resistência pregressa enseja outras esperanças.

Livre da asfixia econômica, o discernimento político e social acumulado pela sociedade cubana figura talvez como o mais experimentado laboratório de ponta da história para resgatar o elo perdido do debate latino-americano sobre a transição para um modelo de desenvolvimento mais justo, regionalmente integrado, cooperativo, democraticamente participativo e sustentável.

Se Cuba desmentir a derrocada de seus valores, dará inestimável contribuição para fixar o chão firme capaz de desenferrujar essa alavanca histórica.

Não é pouco. E pode ser muito do ponto de vista do imaginário e da agenda regional, assediados no momento pelo coro diuturno da restauração neoliberal.

A épica sobrevivência da pequena ilha, cuja morte anunciada era um poderoso trunfo conservador, confere a dose de otimismo para brindar o ano de 2015 como um horizonte em aberto na história cubana, latino-americana e brasileira.

Abaixo, alguns tópicos do retrospecto criterioso feito pela "New Left Review", sobre o momento mais crítico dessa caminhada e das lições atuais que ela consagrou:

1. (ao perder o apoio russo nos anos 90) e diante da ‘teimosa recusa’ em embarcar em um processo de liberalização e privatização, a "hora final" de Fidel Castro parecia, finalmente, ter chegado;

2. Cuba enfrentou o pior choque exógeno de qualquer um dos membros do bloco soviético, agravado pelo saldo do longo embargo comercial norte-americano;

3. A dramática recessão iniciada em 1990 exigiria uma década para restaurar a renda real per capita anterior à derrocada do mundo comunista;

4. Sugestivamente, porém, Cuba saiu-se melhor em termos de resultados sociais, comparada às economias do bloco comunistas atingidas pela mesma borrasca, mas ancoradas em uma base econômica menos vulnerável;

5. A taxa de mortalidade infantil em Cuba, em 1990, foi de 11 por mil, já muito melhor do que a média no leste europeu; em 2000 ficaria ainda abaixo disso, apenas 6 por mil, uma melhora mais rápida do que a verificada em muitos países da Europa Central que haviam aderido à União Europeia;

6. Hoje, a taxa de mortalidade infantil em Cuba é de 5 por mil ; um desempenho superior ao dos EUA, segundo a ONU, e muito acima da média latino-americana.

7. Não só. A expectativa de vida da população cubana aumentou de 74 para 78 anos na década de 90, mesmo com a ligeira alta das taxas de mortalidade entre grupos vulneráveis nos anos mais difíceis.

8.
Hoje, após 53 anos de embargo e 24 de fim do apoio russo, a ilha ostenta uma das expectativas de vida mais altas do antigo bloco soviético e de toda a América Latina.

9. Não se subestime as terríveis privações, o custo humano, econômico e político cumulativos. A solitária busca de uma luz em um túnel claustrofóbico, década após década, teve um preço alto.

10. A superlativa dependência da economia cubana em relação às exportações de açúcar para a Rússia era proporcional ao estrangulamento da estrutura produtiva cubana decorrente do bloqueio norte-americano.

11. A conta só fechava graças a uma cotação preferencial paga pelo Kremlin: uma libra de açúcar enviada à Rússia gerava US$ 0,42 em receitas a Havana; cinco vezes a cotação mundial do produto (US$ 0,09);

12. Até a derrocada do bloco comunista, as importações cubanas equivaliam a 40% do PIB; delas dependiam 50% do abastecimento alimentar da população e mais de 90% do petróleo consumido;

13. Mesmo com o permanente racionamento de tudo, de papel higiênico à energia elétrica, o déficit comercial de US$ 3 bilhões tinha que ser refinanciado generosamente pela União Soviética;

14.
Essa rede de segurança se rompeu abruptamente em janeiro de 1990 e sumiu por completo há 23 anos. As receitas propiciadas pelo açúcar cairiam em 79%: de US$ 5,4 bilhões para US$ 1,2 bilhão. As fontes de financiamento externo que mitigavam o embrago americano evaporaram.

15.
Washington viu aí a oportunidade de bater o último prego no caixão de Havana. As sanções e represálias comerciais e financeiras contra países e instituições que facilitassem o acesso de Cuba ao crédito comercial foram acirradas. Deu certo: enquanto nos países do leste europeu, a transição pós-Muro (1991-1996) amparou-se em um fluxo de crédito externo da ordem de US$ 112 dólares per capita/ano, em Cuba esse valor foi de US$ 26 dólares per capita/ano.

16. O resultado foi um dramático cavalo de pau no comércio exterior: Cuba caiu de uma das taxas de importações mais altas do bloco comunista (de 40% do PIB), para uma das mais baixas (15% do PIB). Todas as tentativas de Havana de diversificar e ampliar seu leque de exportações foram inviabilizadas pelo embargo norte-americano.

Alguma surpresa pela gratidão emocionada de Fidel em relação a Chávez, que por anos a fio garantiu um fluxo de petróleo à ilha, na base do escambo, em troca de serviços médicos e sociais?

17. Ainda assim, a penúria foi de tal ordem que o manejo puro e simples do racionamento não explica a sobrevivência do regime até a última quarta-feira (17/12), quando Obama e Raúl Castro anunciaram o reatamento das relações diplomáticas.

18. Quando o ferramental econômico já não respondia mais e patinava em círculos, Havana viu-se diante de duas escolhas: render-se ao lacto purga ortodoxo e rifar a ilha numa apoteótica rendição capitalista, ou apostar no seu derradeiro trunfo: a resposta coletiva liderada pelo Estado, ancorada em uma longa tradição de planejamento, mobilizações de massa, debate popular e participação das bases nas tarefas nacionais.

19. A opção escolhida instalou uma rotina de prontidão na ilha, como se a população vivesse permanentemente na antessala de uma catástrofe natural em marcha.

20. Cortes deliberados em serviços essenciais treinavam a sociedade para a defesa civil em mobilizações coordenadas envolvendo fábricas, escritórios, residências, escolas, hospitais.

21. A segurança alimentar básica foi planejada com disciplina férrea e mantida em condições de escassez extrema.

Cuba soçobrou, acumulou recuos.

O regime recorreu às forças extremas de sua organização política e social para enfrentar restrições equivalentes às de uma guerra, que se estendeu por meio século, a mais longa de que se tem notícia no mundo moderno.

A sociedade cubana não se desmanchou, nem se rendeu.

É o que nos mostram as pinceladas rápidas extraídas da "New Left".

Sem ilusões.

Cuba continua a ser uma construção inconclusa, que independe de suas próprias forças para se consumar.

Como tal, enseja debate, comporta retificações e, sobretudo, cobra agendas desassombradas – e não apenas em Havana.

O reatamento das relações diplomáticas com os EUA tende a ser um acelerador desse processo.

Mas, ao contrário da rendição inapelável prevista nos prognósticos conservadores, Cuba pode surpreender de novo.

E frustrar seus coveiros, contribuindo para reinventar a transição rumo a uma sociedade mais justa e libertária no século XXI.

Nesse sentido, a ilha ainda tem algo de novo a dizer aos povos latino-americanos. E aos brasileiros, em especial, nesse momento particular.

A ver."


FONTE: escrito por Saul Leblon no seu editorial do portal "Carta Maior"  (http://cartamaior.com.br/?/Editorial/Cuba-ainda-tem-algo-a-dizer-ao-Brasil/32491).

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