O aumento fenomenal na desigualdade de riqueza
Por Prabhat Patnaik, economista indiano, no "Peoples Democracy"
"O 'Credit Suisse' publica todos os anos um Relatório da riqueza global ( Global Wealth Report ). O relatório deste ano refere-se à discussão específica da questão da desigualdade de riqueza. O termo "riqueza" no relatório cobre apenas riqueza familiar e refere-se ao valor de ativos a preços correntes. Por outras palavras, ele inclui ganhos de capital e portanto os efeitos de fatores especulativos.
Há dois pontos a serem observados ao discutir os números apresentados no relatório do 'Credit Suisse'. Primeiro, o termo "riqueza" utilizado no relatório difere do 'stock de capital', ou de ativos reais em geral. Isso acontece porque, muito embora toda riqueza refira-se em última análise à propriedade de ativos reais, com ativos financeiros sendo nada além de declarações de direitos (claims) sobre ativos reais, os preços dos ativos reais e os preços das declarações de direitos sobre ativos reais podem mover-se muito desigualmente. Portanto, quando há uma "bolha" no mercado de ações, o valor da riqueza na forma de, digamos, ações aumenta; mas pode não haver qualquer aumento correspondente no valor dos ativos reais da firma cujas ações aumentaram de valor.
Em segundo lugar, em qualquer comparação internacional há uma questão importante relacionada com a taxa de câmbio apropriada à qual o valor da riqueza em diferentes países deveria ser comparado. O número de bilionários indianos entre os 100 principais no mundo, por exemplo, variaria grandemente conforme se convertesse a sua riqueza em rupias para US dólares à taxa de câmbio oficial ou em alguma taxa de câmbio PPC [1] (a qual tipicamente atribui à rupia um valor mais alto). Esse segundo problema, entretanto, não se levanta se estivermos comparando mudanças de desigualdade de riqueza transversalmente a países, pois isso envolve somente a distribuição relativa de riqueza dentro de cada país e não exige qualquer conversão de diferentes divisas em dólares. Limitar-nos-emos aqui a esse último exercício.
A primeira coisa a perceber é o notável aumento na desigualdade de riqueza que se verificou no mundo capitalista após a década de 1970, isto é, desde que começou a nova ascendência do capital financeiro. Nos Estados Unidos, por exemplo, entre 1910 e 1970 a fatia dos 10% de topo das famílias no total da riqueza familiar declinou de 81% para 64%; depois de 1970 aumentou acentuadamente de 64% para 75%. Da mesma forma, a fatia dos 1% de topo das famílias no total da riqueza total entre 1910 e 1970 declinou de 45% para 28%; mas aumentou posteriormente de 28% para 34%. E mais ou menos o mesmo quadro mantém-se para as outras economias capitalistas avançadas.
Mas neste último período, quando a desigualdade de riqueza aumentou, esse aumento foi substancialmente consumado por volta de 2000; se tomarmos o período 2000 a 2014, então a fatia do decil de topo ou do percentil de topo na riqueza total não aumentou muito mais, no todo, dentro das economias capitalistas avançadas do mundo. Nesse último período, entretanto, o aumento dramático real teve lugar na desigualdade de riqueza dentro das chamadas "economias de mercado emergentes".
Em 2014, a "desigualdade muito alta", definida como uma situação em que o decil de topo tem mais do que 70% da riqueza familiar total, caracterizou Hong Kong, Suíça e Estados Unidos entre as economias avançadas. Mas caracterizou também uma dúzia de "economias de mercado emergentes", nomeadamente Argentina, Brasil, Egito, Índia, Indonésia, Malásia, Peru, Filipinas, Rússia, África do Sul, Tailândia e Turquia. (A China e Formosa estão entre os de "alta desigualdade", o que é diferente de "desigualdade muito alta", países onde a fatia do decil de topo em riqueza familiar está acima dos 60% mas abaixo dos 70%).
Além disso, entre 2000 e 2014, entre as economias em que houve o que o Relatório chama de uma situação de "ascensão rápida" na desigualdade, definida como aumento de 0,5 ponto percentual ou mais por ano na fatia do decil de topo na riqueza familiar total ao longo do período em referência, essas chamadas "economias de mercado emergentes" estiveram bem representadas. A "ascensão rápida" verificou-se na China, Egito, Hong Kong, Turquia, Coreia, Índia, Rússia, Argentina e Formosa. É como se a onda de ascensão na desigualdade de riqueza, começada a partir do mundo capitalista avançado, se propagasse por todas as "economias de mercado emergentes" ao longo do tempo.
CONSEQUÊNCIAS PERIGOSAS
Embora o relatório do "Credit Suisse" não diga isso, essa mesma onda está inextrincavelmente ligada ao processo de "globalização" desencadeado sob a hegemonia do capital financeiro internacional. Esse enfraqueceu sindicatos e o movimento da classe trabalhadora na generalidade, fortaleceu muito os músculos do capital o qual pode agora manter a ameaça de abandonar um país se o seu 'diktat' for desobedecido e, portanto, forçar cada Estado-nação a inclinar-se a fim de impedir a fuga do capital. Mas a sua propagação através do globo provocou mudança imensa cujas consequências sociais e políticas são extremamente perigosas. Essa mudança equivale a verdadeira reversão do avanço democrático feito pelo povo em grandes partes do mundo no decorrer das últimas várias décadas.
Entretanto, mesmo entre os países escolhidos pelo relatório do "Crédit Suisse" como exemplos de "ascensão rápida" em desigualdade de riqueza, a Índia sobressai. O aumento da desigualdade de riqueza na Índia entre 2000 e 2014, o período em estudo, foi verdadeiramente fenomenal. E isso resulta não tanto da fatia percentil do decil de topo na riqueza familiar total, a qual, embora tenha aumentado de 65,9% para 74% durante o período, foi ofuscado pelo aumento em vários outros países, como do aumento na fatia do percentil de topo. Hoje, a fatia dos 1% do topo da riqueza total na Índia é maior do que a fatia dos 1% do topo desde sempre nos Estados Unidos, a economia capitalista arquetípica, em toda a sua história ao longo do século passado.
Por outras palavras, dentro do próprio decil do topo, se excluirmos os outros 9% daqueles 1% do topo, a sua fatia na riqueza familiar total aumentou de cerca de 19% em 2000 para 26% em 2014, o que por si mesmo constitui a "ascensão rápida" pela definição dada acima. Mas a ascensão da fatia dos 1% do topo em quase um ponto percentual por ano entre essas duas datas constitui um caso de "ascensão super-rápida".
A própria ideia de uns meros 1% da famílias possuírem a metade da riqueza é quase incrível. Além disso, é um número mais elevado do que para o mundo como um todo. Segundo um cálculo do mesmo relatório publicado em "The Hindu" em 08/Dezembro/2014, a fatia dos 1% do topo para o mundo como um todo em 2014 era de 48,2%, comparados com 49% para a Índia. E, além disso, a fatia dos 1% do topo na Índia tem estado a ascender muito mais rápido para o mundo como um todo. Em 2000, enquanto era de 36,8% na Índia, no mundo como um todo era de 48,7%; mas em 2014, a fatia havia aumentado para 49% para a Índia, a comparar com 48,2% para o mundo. Por outras palavras, para o mundo, a fatia permaneceu inalterada, ou até declinou marginalmente; mas para a Índia ela aumentou em cerca de 1 ponto percentual por ano.
Como já foi mencionado, a fatia dos 1% de topo nos EUA é cerca de 34% e os EUA têm um do mais altos níveis de desigualdade de riqueza do mundo capitalista, avançando, qualificando-se à categoria de "desigualdade muito alta". Mas em comparação com os 34% dos EUA, os 1% de topo na Índia possuem até 49% da riqueza familiar total! Isso é uma desigualdade furiosa e um aumento na desigualdade que é fenomenal por quaisquer padrões.
Contudo, mesmo os números apresentados pelo "Credit Suisse" num certo sentido não apreendem a extensão real da desigualdade. Eles referem-se à propriedade da riqueza e não ao comando sobre a riqueza. Se uma pessoa da classe média possui, digamos, 10 rupias de ações numa companhia que tem um patrimônio total de 100 rupias e em que um Ambani [2] possui a maioria das ações, digamos 51 rupias, então a riqueza de Ambani será de 51 rupias e o da pessoa da classe média de 10 rupias, de acordo com a definição dada no relatório, com base na qual é medida a desigualdade. Mas de fato o controle sobre o capital é de 100 rupias para Ambani e nenhum para a pessoa da classe média. Segue-se que para qualquer dado grau de desigualdade na propriedade de riqueza, a desigualdade no controle sobre a riqueza é muito maior. Portanto, se os 1% do topo possuem quase a metade da riqueza total, então a percentagem de riqueza total que eles controlam deve ser muito maior.
CONCENTRAÇÃO DE PODER
Há duas tendências necessariamente associadas a tal concentração de riqueza. Primeiro, tal concentração de poder econômico inevitavelmente leva a uma concentração de poder político. A elite corporativa-capitalista super-rica utiliza toda espécie de expedientes para assegurar isso, desde comprar legisladores e pessoal do Estado até controlar e utilizar os "media" impressos e eletrônicos, desde financiar eleições de candidatos que favoreçam sua agenda até financiar e apoiar grupos políticos comunais-fascistas.
Segundo, essa concentração do poder econômico com o político é invariavelmente utilizada para produzir ainda maior concentração de tal poder. Isso tem sido claramente visível na Índia. A elite corporativa super-rica utilizou todas as artimanhas do seu arsenal para projetar Narendra Modi como a pessoa certa para liderar a nação e financiou amplamente a sua vitória eleitoral. E em contrapartida o governo Modi está introduzindo "reformas" no mercado de trabalho, a deitar abaixo esquemas [direitos] do setor social e até o MGNREGS [3] , bem como desviando fundos para "promover a confiança dos investidores" e anunciou esquemas ambiciosos de "desinvestimento". Tudo isso faz parte da agenda dos super-ricos.
A preservação da democracia no país e a defesa da herança da luta anticolonial exige que tal concentração de poder nas mãos dos super ricos seja rompida. Para isso, é absolutamente necessário que a trajetória "neoliberal" que produz tal concentração de poder e que, em última análise e inevitavelmente, leva à ascendência do comunal-fascismo como o instrumento através do qual tal poder é exercido, seja completamente revertida."
[1] PPC = Paridade de poder de compra
[2] Ambani : magnata indiano
[3] MGNREGS: Mahatma Gandhi National Rural Employment Guarantee Scheme
FONTE: escrito por Prabhat Patnaik, economista indiano, no "Peoples Democracy". O original encontra-se em peoplesdemocracy.in/2014/1214_pd/phenomenal-increase-wealth-inequality. Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ (de Portugal). Transcrito no "Jornal GGN" (http://jornalggn.com.br/noticia/o-aumento-fenomenal-na-desigualdade-de-riqueza-por-prabhat-patnaik).
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