sábado, 11 de outubro de 2008

VIROU PÓ

Aloizio Mercadante escreveu o artigo abaixo, que foi publicado no jornal Folha de São Paulo ontem. O autor é economista e professor licenciado da PUC-SP e da Unicamp e senador da República pelo PT-SP.

“Na crise atual, além dos papéis, também o discurso da não-intervenção do Estado e da auto-regulação dos mercados virou pó

NAS CRISES financeiras, os papéis costumam virar pó; na atual, a maior desde o crash de 1929, além dos papéis, também o discurso da não-intervenção do Estado e da auto-regulação dos mercados virou pó.

Foi a partir desse discurso que se suprimiram as restrições aos movimentos internacionais do capital especulativo e se eliminaram os mecanismos de controle das atividades financeiras, inclusive dos fundos e bancos de investimento. Foi também em função dele que se esvaziaram as atividades de controle e fiscalização dos bancos centrais e se outorgou total autonomia às instituições financeiras para criar instrumentos derivativos de transferência e diluição de riscos e alavancar suas operações.

Essas políticas e instrumentos, que supostamente fortaleceriam o sistema financeiro, na prática introduziram novos elementos de instabilidade e incerteza. Legitimou-se a especulação como método de governança corporativa e transformou-se o sistema em uma caixa-preta que impede, até agora, avaliar a real extensão da crise. A securitização de empréstimos podres e sua difusão pelas interconexões criadas pelo processo global de liberalização e desregulamentação financeira transformaram a crise imobiliária norte-americana em crise bancária internacional.

Para tentar salvar o sistema financeiro de um crash total, centenas de bilhões de dólares já foram injetadas no mercado pelos bancos centrais dos Estados Unidos, da Europa e da Ásia e quase 1,5 trilhão adicional será injetado até o fim de 2008.

Desencadeou-se um amplo processo de socialização de perdas e de estatização. A Inglaterra acaba de estatizar o Bradford & Bingley, (já havia feito o mesmo com o Northern Rock).

Ações similares e de resgate de bancos estão em curso na Bélgica (Dexia e Fortis), na Holanda e em Luxemburgo (Fortis), na Alemanha (Hypo Real State) e na Islândia (Glitnir e Landsbanki). O governo dos Estados Unidos, além de bancar a AIG, estatizou suas duas instituições de empréstimos hipotecários -a Fannie Mae e a Freddie Mac- e negociou a compra do Bear Stearns e do Wachovia.

Em toda a Europa, o temor à debacle levou os governos a se transformarem em garantes das contas bancárias dos depositantes. Como bem destaca Boaventura de Sousa Santos em artigo recente: "O impensável aconteceu: o Estado voltou a ser a solução".

É evidente que o Estado tem que intervir, mas sua ação deve inscrever-se numa perspectiva de reestruturação do sistema financeiro em novas bases. Isso implica restabelecer as funções de regulação do sistema financeiro e elevar a transparência, a solidez e o controle social das transações financeiras. Sem regulação, não haverá crescimento nem estabilidade econômica e financeira sustentáveis.

O Brasil não está imune à crise, mas construiu linhas de defesa importantes: nosso sistema financeiro não está contaminado, nosso nível de reservas internacionais é confortável, nossa dependência do mercado norte-americano é pequena, nosso crescimento é impulsionado predominantemente pelo mercado interno e a inflação e o déficit fiscal estão sob controle.

Isso, no entanto, não significa que não poderemos ser atingidos, inclusive pelos desdobramentos dos desequilíbrios financeiros na esfera real.

Alguns efeitos da crise de liquidez internacional já são evidentes. A contração do crédito externo para exportação e a abrupta subida da taxa de câmbio, provocada pelo aumento da demanda de dólares -para desfazer posições na Bolsa e nos mercados futuros de câmbio, em geral excessivamente alavancadas, e para remessa de lucros- sinalizam problemas que não devem ser subestimados.

Para enfrentá-los, o governo adotou diversas medidas -redução do compulsório, aquisição das carteiras de crédito de bancos menores, aumento do crédito interno e disponibilização de reservas para financiamento das exportações, leilões de câmbio.

Outras podem ser necessárias para frear a escalada do câmbio, assegurar a defesa comercial do país, substituir importações e reforçar a dinâmica de setores estratégicos para a preservação dos níveis de renda e emprego da população.

No curto prazo, a questão cambial é crucial, por seu impacto sobre os preços e sobre a situação patrimonial das instituições endividadas em dólares, especialmente das empresas exportadoras expostas a operações de derivativos que embutem, além de mecanismos de proteção cambial, riscos de imensas perdas financeiras em cenários de desvalorização do real, como ocorre nesse momento”.

Nenhum comentário: