sábado, 20 de fevereiro de 2010

CIÊNCIA E TECNOLOGIA E O CAPITAL NACIONAL

Hoje, 20 de fevereiro, recebi do leitor Yuri Korolev a seguinte sugestão: "Prezada Maria Tereza, encontrei brilhante texto sobre o desenvolvimento brasileiro no site "Vermelho.org": "Ciência e tecnologia e o capital financeiro nacional", de Elias Jabbour, da Unicamp. Texto muito acima da média que jamais se verá escrito na Business Week..."

Em atendimento à boa indicação, reproduzo o texto publicado em 16 de dezembro de 2009 no portal "Vermelho":

"Ciência e tecnologia e o capital financeiro nacional

Elias Jabbour

Duas semanas atrás escrevi algo sobre a relação de algumas “pautas” com a tara de nosso campo para com modismos.

Além dos problemas e limites envolvendo uma compreensão mais séria da questão agrária, abordei a questão que envolve a ciência e a tecnologia como força produtiva única, cuja materialidade e possível realização aos países com perificidade semelhante ao do Brasil reside, justamente, no pressuposto da conquista de nossa autonomia financeira. Fora destes marcos, pode sobrar diletantismo, coisificação do fenômeno e palmas exageradas e esta ou aquela política (lei de inovação, biossegurança, por exemplo). Vou me limitar a repetir o que já tenho dito a respeito.

Quero dizer que qualquer política de inovação minimamente séria deve estar baseada numa grande solidez financeira. Somente assim poderemos armar um verdadeiro exército de cérebros preparados para tocar adiante o Novo Projeto Nacional de Desenvolvimento, enfrentar o desafio externo e darmos um novo salto. O salto da fusão do banco com a indústria, dando margem a um capitalismo de Estado brasileiro que nasce como capitalismo financeiro brasileiro. Eis o centro e o desafio da estratégia.

Do capital comercial ao capital financeiro

Existe todo um processo histórico que vai desde os estertores da acumulação primitiva, passando pelo transbordamento da divisão social do trabalho no rumo da divisão internacional do trabalho e da centralização e concentração do capital, onde a ciência e a tecnologia se transformam em força produtiva única e fator central de produção. Como força produtiva, a ciência e a tecnologia transformam-se em parte do capital constante, talvez a principal parte devendo ser tratada como tal, ou seja, elemento passivo de transferência de enormes somas de mais-valia, corroborando com a lei da tendência à queda da margem de lucro.

Em outros termos, todo esse processo histórico é a base das três fases de desenvolvimento do capitalismo, a saber: o comercial, o industrial e o financeiro.

Nosso país atingiu a primeira fase, sob o patrocínio do capital industrial inglês, com a internalização do capital comercial português em 1822. A Revolução de 1930 marca nossa entrada na era da indústria substitutiva de importações, cujo nome do modelo já deduz a substituição de importações a partir da cópia de, por exemplo, máquinas e elevadores e seguindo estilo artesanal dos primórdios de uma industria que nasce artesanal, ou seja, com um Departamento 1 artesanal.

O rumo da fusão do banco com a indústria é uma lei objetiva que consagra a grande empresa, estatal ou privada, no rumo da concorrência como estágio anterior à época dos monopólios, das grandes corporações, do capital concentrado e centralizado e da ciência e tecnologia como capital constante cuja constante superação (o que vem a se chamar de “inovação”) depende sobremaneira da capacidade financeira de sustento. É a época da universalização da educação básica, do acoplamento das ciências naturais e biológicas aos interesses das grandes corporações (e em nosso caso, dos interesses da nacionalidade, das empresas nacionais), cujo preço pode ser a liquidação, em momentos de crise, pela via de fusões e aquisições. Também estamos tratando de uma época em que nunca fomos contemporâneos de verdadeiros exércitos de cientistas e pensadores, muito bem pagos, com um planejamento privado e estatal milimétrico para dar cabo às necessidades de diferentes formações sociais e nações.

O surgimento do capital financeiro e da ciência e tecnologia como parte essencial do capital constante é seguido pelo paradigma do planejamento como ciência e arte do projetamento e sua variante, que muito interessa aos países da periferia, centrada na planificação do comércio exterior em detrimento do comércio internacional pautado pela lógica da anarquia da produção. É neste sentido que deve ser encarado a problemática da ciência e da tecnologia. A partir da necessidade vital da fusão do banco com a indústria e não da boa vontade humana. Muito menos de parâmetros para quem a ciência e a tecnologia são um fim em si mesmo, corroborando com as seguidas sentenças de morte direcionadas à Economia Política.

O problema brasileiro

O problema brasileiro consiste em superar a era da industrialização pela via da substituição de importações, a partir da utilização dos mesmos mecanismos outrora utilizados, como a institucionalização da reserva de mercado partindo de uma política cambial mediadora não do custo visível dos produtos importados e sim pelos custos sociais nela inseridos. Eis o “x” de uma política industrial como um todo que envolve uma racional política de ciência e tecnologia. Para o atual estágio do problema da manufatura e da ciência e tecnologia é vital a transformação do Brasil em uma potência financeira, com um moderno sistema bancário e de mercado de capitais. Nosso país é tão diferente e tão dinâmico que apesar de nossa limitada capacidade de planejar nosso futuro – notadamente nos governos de Getúlio Vargas, JK e da ditadura militar – nos levou a saltos espetaculares. Nosso nascente capital financeiro teve participação na transformação de nosso país na oitava economia do mundo, mas também de suportar iniciativas como a do BNH, Petrobrás (daí o Pré-Sal), a EMBRAER e a Embrapa. Para estas iniciativas, havia dinheiro, financiamento pela via inflacionária, capital externo e visão estratégica de gente do nível de presidentes como Ernesto Geisel e de um intelectual não superado no Brasil da estatura de Ignácio Rangel.

Este caminho vitorioso da nacionalidade foi devidamente proscrito com a enxurrada de “planos de estabilização” como o PND dirigido por Celso Furtado em 1963, Plano Cruzado, Collor e o Real. Todos engendradores do atual tripé, ainda é mantido no atual governo, entre câmbio flexível, juros altos e superávits primário. Incluiria um quarto elemento que é esta política tributária destruidora de qualquer capacidade de empreendimento individual e da indústria nacional. Este emaranhado de coisas impede, por exemplo, uma propalada integração sulamericana. Afinal, como falar em integração física do continente sendo que o país que deveria ser o indutor do processo tem sua indústria ferroviária destruída, exportando ferro para a China e importando trilhos e trens de terceira categoria?

Que política de ciência e tecnologia sobrevive a uma pressão constante contra a indústria e as finanças do Estado (pagamento de juros) e pós-graduandos que, quando recebem, trabalham com bolsas que variam de R$ 1.000, a R$ 2.000 (um professor Livre Docente da USP não ganha R$ 7 mil mensais), quando no centro do sistema os auxílios, podem chegar individualmente a US$ 100 mil mensais, dependendo da capacidade do pesquisador e de uma política de manutenção de cérebros de um lado e de cooptação e corrupção a pesquisadores da periferia, inclusive sobre este que vos escreve?

Será correto o critério político que nos leva a aplaudir iniciativas voluntaristas (Lei de inovação, Lei de Informática, biossegurança...) não ficaria mais esmerado e justo se, metodologicamente, casássemos uma visão política primária e superficial por uma visão mais sofisticada, cuja política seria encetada por critérios tanto conjunturais, porém mais históricos e econômicos? O contrário seria uma visão economicista, quando na verdade Marx foi e é criticado justamente por perceber que o homem é o que suas condições materiais permitem? E quais são as condições materiais brasileiras para uma fina política em ciência e tecnologia? Eis o centro do problema...

Sobre quais bases o mundo é dividido?

Em certa altura e lugar, meu camarada e amigo Fábio Palácio referiu-se a uma dita divisão do mundo “entre aqueles que produzem ciência de ponta e aqueles que no máximo conseguem copiar alguma coisa”. Concordo em parte. Trata-se de uma meia-verdade, pois o mundo com o advento do capital financeiro e mais recentemente com 3ª Revolução Industrial está dividido entre “aqueles que tem poder financeiro, e conseqüentemente político, e aqueles atrelados a políticas monetaristas, ‘estabilizacionistas’ e com o manejo de políticas cambiais em casamento com os interesses das potências políticas e financeiras”. A divisão entre “os que fazem ciência e os que copiam alguma coisa” é mera expressão do status quo internacional amparada pelo imperialismo e seus asseclas pela periferia (Palocci, Henrique Meireles, William Bonner e outros).

Neste mundo, também tem espaço para projetos soberanos como o chinês que ao lado da massificação da educação básica, da ampliação de número de engenheiros de todas as matizes (e com obras e cadeias produtivas para emprega-los), coexiste uma potência que surge com capacidade de colocar a Embraer de joelhos obrigando-a a fabricar aviões de 100 assentos em seu território (mantida essa política brasileira de ciência e tecnologia, não será surpresa o desaparecimento da Embraer nos próximos 30 anos), compra por US$ 30 bilhões de dólares toda a tecnologia engendrada nos “trens de alta velocidade” da Siemens e da Alston. Com uma política cambial onde um dólar vale sete yuanes (meio institucional de um planejamento do comércio exterior de tipo socialista), transforma-se em um imã para onde são obrigadas a se instalar a fina flor da alta tecnologia do centro do sistema e praticando engenharia reversa, onde a “inovação” consiste em trocar peças mais caras de um aparelho de DVD por peças pelo menos dez vezes mais baratas. Casada com uma política de crédito interno ao consumo, esta política levou a massificação do consumo de aparelhos eletro-eletrônicos na China, premiando o sério trabalho de milhares de cientistas e engenheiros, repetindo, muito bem pagos e de bem com a vida em sua pátria-mãe.

Neste sentido, como base de comparação, além de uma política antiindústria e antiinovação, estamos prestes a investir mais de R$ 30 bilhões do dinheiro do tesouro num chamado trem-bala, sendo que emprego para construção civil vai gerar aos montes, menos para engenheiros elétricos e de produção. Afinal, virá tudo pronto: trilhos, locomotivas, trens, peças de reposição, tudo. É o nosso país gerando PIB nos EUA ou na China, sendo que poderíamos elevar a velocidade dos trens brasileiros somente utilizando capacidade produtiva instalada na (destruída) indústria ferroviária brasileira ou mesmo aproveitando experiências da iniciativa privada nacional que aos trancos e barrancos ainda insistem em construir portos e ferrovias para desaguar sua produção. Isso quer dizer que estamos prontos a dar saltos em nossas forças produtivas nacionais, sem grandes custos externos.

Temos uma lei de licitações que induz ao mais barato, como estamos vendo nessa novela envolvendo a compra dos aviões de caça. Acabaremos que por comprar caças suecos em detrimento dos melhores e mais bem equipados franceses. Tudo pela responsabilidade fiscal, sendo que com um mínimo de autonomia financeira poderíamos assegurar grandes negócios ao Brasil, sem condenar os formados pelo PROUNI em abrir uma tenda de cachorros-quentes na porta de universidades. Política de ciência e tecnologia pressupõe gente formada trabalhando em suas respectivas áreas; em empresas nacionais com encomendas no país e não sujeitas a anarquia da produção da concorrência internacional; amparadas por um Estado pronto a enfrentar o mundo pela solidez de suas empresas e não buscando economia financeira às custas da soberania nacional (leia-se da saúde de seu capital estatal e privado).

Enfrentar o problema

Em primeiro plano, enfrentar essa discussão sobre política em ciência e tecnologia no Brasil pressupõe teoria e método para isto. Algo que ajude a deixar emoções e voluntarismos de lado, nos municiando com uma grande visão de conjunto do problema, fazendo-nos perceber que sem autonomia financeira, falar em autonomia tecnológica e existência de uma política de inovação pode parecer uma piada de bom gosto, mas de péssimo tom. Pressupõe conhecimento das leis econômicas do capitalismo e das leis econômicas surgidas juntamente com era do capital monopolista; enfim, as leis econômicas do comércio internacional, que por seu turno só podem ser domesticadas no âmbito do controle nacional sobre a nossa política cambial. Fora desse conjunto, é impossível começar uma discussão sobre ciência e tecnologia, podendo – inclusive – beirar o ridículo.

Outra coisa, uma política estratégica baseada na história econômica e na formação social em si. A lentidão do atual governo brasileiro [e anteriores] em fazer as coisas funcionarem tem raiz tanto em equívocos de ordem puramente teórica e espontaneísmo político e no endeusamento de certos acadêmicos, em grande medida medíocres e carreiristas (porém, cheio de tapetes vermelhos por onde passam), quanto – e principalmente numa correlação de forças – que transforma o governo vigente numa grande unidade dos contrários, em que convivem elementos progressistas, mas que nas raias da política econômica está um grupo claramente antinacional, aspirando, inclusive, a vice-presidência na chapa do campo do presidente. Por incrível que possa parecer para muitos livre-pensadores, a marcha da nação no rumo do progresso, depende mais do que nunca da vitória do campo do presidente Lula. Não guardo problemas, nem conflitos perante esta realidade. Assim são as coisas. Assim devemos a enfrentar, pois alcançar a vanguarda da ciência moderna, politicamente, pode ter um caminho encurtado pelo irrompimento de uma revolução socialista, capacitando o Estado Nacional a centralizar todos os recursos da nação e planificadamente os distribuir. O outro é o caminho, já dito e redito, resumido na estratégia do capitalismo de Estado sob a forma de capitalismo financeiro nacional. O segundo caminho é o mais plausível, ante a improbabilidade – no Brasil – de uma tomada do Palácio de Inverno ou do cerco das cidades pelo campo.

Por fim, cumpre dizer acerca da necessária coragem para enfrentar problemas espinhos, sensos-comuns impostos pela moda. É tempo de as pessoas se destravestirem de uma postura letal para quem a vida é uma busca constante do consenso. Para muitos este tipo de postura, tem estratégia definida: manter grupos de relacionamentos para angariar alguma migalha política mais a frente. Poderia perder meu tempo buscando a aprovação de muitos, escrevendo textos “água com açúcar”, comentando as eleições no Casaquistão (ou simplesmente não escrevendo), apontando sínteses, politicamente corretas, das quais não acredito, buscando “fazer política” em sua mais sacana e desonesta forma. Letal e em nome de uma mediação pela política que pouco importa se é bom para o coletivo.

Parafraseando nosso presidente, nunca na história deste país necessitou-se de tanta coragem, de tanta lucidez e o mais importante: inteligência e esmero para enfrentar os mais candentes problemas da nacionalidade."

FONTE: escrito por Elias Jabbour, Doutorando e Mestre em Geografia Humana pela FFLCH-USP, membro do Conselho Editorial da Revista Princípios e autor de "China: infra-estruturas e crescimento econômico" (Anita Garibaldi). Publicado em 16/12/09 no portal "Vermelho" [pequeno trecho entre colchetes colocado por este blog].

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