FHC e Meném, dois mitos adorados pelos neoliberalistas
Por Saul Leblon
“Um trem de passageiros breca na entrada da estação, mas o freio não responde; a composição com mais de mil pessoas a caminho do trabalho tromba numa barreira de concreto. O segundo vagão esmaga o primeiro e assim, sucessivamente, num efeito dominó que mata 50 pessoas e fere outras 700.
A decifração do desastre que abalou a Argentina esta semana inclui particularidades que materializam uma discussão recorrente nas sociedades submetidas à onda de privatizações de serviços públicos dos anos 80/90, mitigadas, mas não interrompidas, nas décadas seguintes pelos governantes da região. O do Brasil entre eles.
A composição argentina faz parte da concessionária “Trens de Buenos Aires”, a TBA, uma das vencedoras de leilões de privatização promovidos pelo governo Menén ["neoliberal" como FHC], há vinte anos, com consequências métricas autoexplicativas. A ferrovia argentina, que figurava como a 10ª maior rede do mundo antes da segunda guerra, foi fatiada e privatizada nos últimos anos. Dos 50 mil km de trilhos originais, restam 7 mil km operacionais. Dos 50 mil funcionários integrados ao sistema, sobraram 15 mil. Não é uma exceção. No caso brasileiro, por exemplo, os procedimentos e suas consequências também produziram saldo contundente : dos 40 mil km de trilhos existentes nos anos 60, restam 28 mil km; a privatização sucateou enormes extensões de ferrovias, reduziu milhares de vagões e centenas de locomotivas a ferro-velho e ferrugem; o país, praticamente, aboliu o transporte ferroviário de passageiros, despautério logístico que a entrega do setor à lógica privada deveria justamente evitar.
O desastre argentino acrescenta duas facetas a esse acervo: ao longo dos últimos anos, a TBA recebeu subsídios da ordem de US$ 3,6 bilhões do Estado para investir em melhorias na rede. Apenas 6% desse total, acusa-se, teria chegado na ponta final do sistema onde estão os passageiros. Pior: um destino desse parco investimento teria sido remodelar vagões dos anos 60, trocando assentos originais por outros menores e precários, mas adequados à maximização da lata de sardinha. O “up grade” pode ter sido uma razão adicional para a matança decorrente da colisão ocorrida com o trem da TBA.
Seria medíocre reduzir o desastre ferroviário da semana passada na Argentina, no qual o trem de uma concessionária privada perdeu o breque causando 50 mortos e 700 feridos, a um desfrute ideológico do equívoco neoliberal na América Latina. É preciso ir além e não omitir a pergunta incomoda: por que os governos progressistas subsequentes não reverteram o processo? Ao menos, não impuseram padrões de atendimento que respeitassem os usuários do patrimônio público alienado? A resposta confronta um alicerce da doutrina neoliberal e coloca em xeque crenças e argumentos que embalam as privatizações de ontem e de hoje.
O nome da viga mestra é agência reguladora. Sobre ela apoia-se o escopo de um mito: a idéia de que é possível ter um Estado precário, frágil financeiramente, incapaz de investir, prover e contratar serviços públicos adequados, mas, ao mesmo tempo, proficiente para instalar aparato de tutela sobre concessões, a ponto de torná-las não exclusivamente mais lucrativas que o padrão anterior -- o que todas são, naturalmente. Mas, sobretudo, mais eficientes no atendimento à população. O desnudamento desse mito argui mais os seus discípulos à esquerda do que à direita.
As evidências cumulativas, às quais se agrega o desastre de Buenos Aires, desmontam essa sapata do edifício privatizante. No Brasil, agências reguladoras lembram seixos perdidos na correnteza de interesses em torno das concessões e vendas de rodovias, telefônicas, sistemas elétricos, portuários e, agora, aeroportuários.
Capturadas por eles, as “reguladoras”, ao contrário do que sugere a ficção neoliberal, são uma costela do mesmo aparato acuado, não raro, submisso, do “Estado mínimo”. O fato desagradável para alguns é que elas figuram como frutos da mesma família genética da qual fazem parte a supressão de direitos sociais, o arrocho trabalhista e, claro, o sucateamento do aparato público. Vieram para dar harmonia institucional a esse conjunto, não para afrontá-lo. A inversão do regulador capturado pelo regulado, ou avidamente associado a ele, tem nas agências de risco do sistema financeiro uma expressão de exuberância explícita dessa lógica. Mas há versões mais sutis, não menos amigáveis a seu modo.
A brasileira “Agência Nacional de Transportes Terrestres” (ANTT), por exemplo, resume um padrão. Reguladora do sistema rodoviário, conta com apenas 117 funcionários para fiscalizar 5 mil km de estradas federais privatizadas em território de 8,5 milhões de km². Em breve, serão 10 mil km de pistas, por conta dos leilões programados.
Protagonistas desse enredo de faz-de-conta às vezes lamentam o simulacro do seu ofício, como é o caso dos integrantes da “Comissão Nacional de Regulação de Transportes” da Argentina. Depois do acidente, eles denunciaram a impotência e inutilidade de advertências anteriores sobre a precariedade do sistema. Outros, porém, exacerbam na tarefa e dão harmonia ao conjunto. O governo direitista da Espanha, dotado de robusto programa de privatização e austeridade ortodoxa, anunciou na 6ª feira [24] a fusão das oito agências reguladoras do país. A partir de agora, elas integram um único guarda-chuva, que reduz de 52 para 9 o número total de conselheiros. Quase um emblema do credo neoliberal no “Estado mínimo”, ela responde pelo pomposo batismo de “Comissão Nacional de Mercado e Competência”. A retrospectiva autoriza usuários a enxergarem nesse binômio um faiscante oximoro.”
FONTE: escrito por Saul Leblon no site “Carta Maior” (http://cartamaior.com.br/templates/postMostrar.cfm?blog_id=6&post_id=899) [imagens do google e trechos entre colchetes adicionados por este blog ‘democracia&política’].
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