Terra Magazine
"SOLIDARIEDADE COM OBJETIVOS
O Haiti passa a conviver com sua grande tragédia. Após a dramaticidade dos primeiros momentos, a vida continuou. Os sobreviventes adaptam-se às condições. Enterram seus mortos.
É o destino dos humanos. Sobreviver e sepultar os seus iguais. Quanto antes melhor. É preciso evitar epidemias. Contágios. A peste. Sempre foi assim. Por todas as partes, não seriam diferente no pobre Haiti.
Sepultados os mortos, mal alimentados os sobreviventes, é hora de se refletir sobre os acontecimentos após a tragédia. Tudo até agora foram analises superficiais. De ocasião.
O Haiti situa-se no espaço geográfico primeiro alcançado - oficialmente - pelos europeus, em 1492. A ilha denominada a Espanhola. O seu território, por razões européias, dividiu-se em dois: República Dominicana e Haiti.
Localizado na parte ocidental da ilha, a partir de 1697, o Haiti foi cedido pela Espanha à França. Os franceses, conhecidos pelas suas práticas colonialistas, transformaram o espaço haitiano em cenário escravagista.
Muitas foram as revoltas e as mortes de negros escravizados. A situação conduziu a primeira conquista de independência nacional na América.
Uma revolta de escravos, capitaneada por François Dominique Toussaint L'Ouverture, conquistou a liberdade para o povo haitiano em 1804. Faltava ao novo estado nacional infraestrutura para uma sólida caminhada.
O colonizador deixará, no entanto, como herança miséria e alguns traços na língua nacional: o creolo, formado por várias de línguas africanas e palavras do idioma francês.
Toussaint operou seu movimento com ajuda dos franceses. Estes desejavam expulsar do território haitiano os ingleses e os espanhóis. Os combates iniciaram-se em 1798.
Amarga circunstância. Os povos colonizadores sempre utilizaram o povo haitiano para suas lutas políticas em detrimento da sorte dos habitantes, um dia deslocados, por motivos egoísticos, da África para a América.
Os norte-americanos, por motivos estratégicos e humanitários, ocuparam, por grande espaço de tempo, esta parte da ilha descoberta por Colombo. Retiraram-se e grupos locais tomaram o poder.
A miséria espalhou-se pela ilha. Os dirigentes lançaram-se em episódios de ganância e desprezo pela população. Tudo caminhou muito mal. Nada deu certo. A não ser as formas espúrias de obtenção do lucro fácil.
Chega-se neste século XXI e a natureza cobrou sua parte neste triste latifúndio. Produziu um terremoto e as conseqüências são conhecidas por todos.
A morte cobrou seu preço. Por atacado. Centenas de milhares de pessoas morreram sem qualquer possibilidade de fuga ou defesa. Morreram sem salvação.
Certamente, a tragédia do Haiti - vista por toda humanidade, via televisão e internet - é um dos mais graves episódios da História.
Enterrados os mortos, socorridos os sobreviventes, cabe agora analisar os resultados advindos da catástrofe. Primeiro enaltecer a mobilização de vários países na busca de lenitivo ao povo haitiano.
Foram muitos os auxílios desinteressados. Há, porém, outra face da moeda. Os norte-americanos, sem nenhum incentivo da ONU, desembarcaram mais de dez mil homens nas praias do Haiti.
À primeira vista, notável exemplo de solidariedade humana. Entretanto, examinado os fatos com projeção no tempo, constata-se que a operação realizou-se com base na Doutrina Powell.
Segundo esta doutrina, as operações - de guerra - devem ser realizadas com grande eficiência e com força máxima para abafar o inimigo já no primeiro momento.
Os norte-americanos - vista a operação com olhos de ver - parecem ter se aproveitado do momento trágico para ocupar o espaço ocidental da Espanhola, a ilha onde Colombo aportou.
Procuram, daqui para o futuro, exterminar um ponto privilegiado do tráfego de drogas para os Estados Unidos e Europa. É o primeiro ganho da operação.
O segundo - é bom não esquecer - o norte do Haiti fica a cerca de cem quilômetros do sul de Cuba. Um porta-aviões natural estacionou ao lado da ilha do Caribe vestida de vermelho.
Um ato humanitário e dois objetivos atingidos. Política internacional sem traços de pura fraternidade. Apenas o clássico utilitarismo. Cada povo com seus valores e cultura."
FONTE: escrito por Cláudio Lembo, advogado e professor universitário. Foi vice-governador do Estado de São Paulo de 2003 a março de 2006, quando assumiu como governador. Publicado hoje (01/02) no portal Terra Magazine, do jornalista Bob Fernandes.
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