Palavras fora do lugar
"Fascismo" e "nazismo" deixaram de ser construções específicas e se transformaram em insulto, e errar na identificação do adversário é o caminho da derrota.
Por Jacques Gruman
Há uns três meses, a ASA – "Associação Scholem Aleichem", do Rio de Janeiro, organizou um seminário sobre os 50 anos do golpe civil-militar de 1964. Na mesa sobre tortura e presos políticos, estava o jornalista Cid Benjamin. Alguém da plateia, ao lhe dirigir uma pergunta, afirmou, de passagem, que o ex-governador do Rio Sérgio Cabral era "um fascista". Cid discordou. Embora não simpatizasse com Cabral, achava um despropósito chamá-lo de "fascista". Concordo com ele. Como bem disse o filósofo Leandro Konder, “nem todo movimento reacionário é fascista. Nem toda repressão – por mais feroz que seja – exercida em nome da conservação de privilégios de classe ou casta é fascista”. Se o interlocutor de Cid quis se referir à dura repressão que o governo Cabral jogou contra manifestantes e movimentos sociais, deveria ter esclarecido em que medida essa violência tinha traços fascistas. Não o fez, o que acabou por invalidar o rótulo.
O abuso na utilização de certos termos no espaço político tem duas finalidades principais:
1) Atribuir ao adversário uma qualidade monstruosa ou desqualificadora. Cria-se, dessa maneira, um consenso simbólico no público interno, mesmo que à custa do rigor conceitual.
2) Unir aliados em torno de conceitos vagamente tidos como universais e de aceitação relativamente fácil.
Para gente descuidada, "fascismo" e "nazismo" deixaram de ser construções sociais e políticas específicas, identificáveis, e se transformaram em insulto. As circunstâncias históricas que os originaram, bem como sua práxis, passam ao largo do uso equivocado contra adversários e desafetos. Se fulano é autoritário com mulher e filhos, pronto: "é fascista !" Se sicrano tem preconceito contra negros, judeus e homossexuais, voilà: "é nazista!" O caminho mais curto para uma derrota política é errar na identificação do adversário. Quando isso acontece, a tática de luta tende a naufragar. Defender, por exemplo, uma frente antifascista para combater um Estado teocrático não levará a lugar algum. Em resumo: o mau uso de uma palavra acaba por diluir ou mesmo distorcer seu significado, resultando na tomada de decisões erradas.
Setores da esquerda inventaram o termo "nazissionismo". O objetivo é claro: associar um dos maiores inimigos históricos dos judeus ao nacionalismo judaico, tornando-o desprezível e universalmente condenável. É um erro grave. Intuo o fiapo de razão que se esconde por detrás disso. A opressão contra o povo palestino, real, seria equivalente ao que os nazistas fizeram com os judeus. Nada mais pueril. É o caso de perguntar onde estão os campos para extermínio dos palestinos, implementados como política de Estado e tendo como objetivo aniquilar toda a população. Também não se conhecem regras raciais equivalentes às infames leis de Nuremberg, nem a proibição de grupos e organizações de esquerda, menos ainda perseguição a homossexuais e outras minorias. Não se trata de pormenores. São características fundacionais do nazismo histórico, que estão ausentes em Israel. Aqui se confunde expansionismo colonial e militarismo com nazismo. Ao fazer isso, esses setores exibem, ao lado de um raquitismo conceitual, uma profunda ignorância sobre a sociedade israelense, que reage de forma complexa à ocupação de territórios palestinos e ao convívio com os árabes israelenses. Em Israel, existe oposição militante, impensável no nazismo. Misturando água e óleo, tais setores revelam um rancor irracional e dificultam, se é que não inviabilizam, alianças com judeus que se opõem à repressão contra os palestinos.
"Antissemitismo" também faz parte desse léxico do crioulo doido. Setores da direita judaica, nos quais habitam cafetões do Holocausto, dizem que o "antissionismo" é o nome moderno do "antissemitismo". Equação marota. Embora muitos antissemitas usem Israel como biombo para seu ódio generalizado contra os judeus, isso não quer dizer que os críticos da ideologia do Estado judeu sejam necessariamente antissemitas. Esta é uma clara tentativa de inibir opositores, entre os quais há um número expressivo de judeus que defendem a solução do Estado binacional, sem supremacias, para resolver o conflito com os palestinos. É uma questão política e como tal deve ser tratada. Se voltarmos no tempo, constataremos que, antes da Segunda Guerra Mundial, o "sionismo" era corrente minoritária entre as comunidades judaicas europeias, que preferiam priorizar a fixação nos países onde moravam. Seriam essas massas judaicas antissemitas ?
Ainda no quesito "antissemitismo", circula outro abuso vocabular. Por conta de equívocos importantes da esquerda, entre os quais se destacam manifestações claramente antijudaicas (e não antissionistas), tem gente que aproveita para generalizar: toda a esquerda é antissemita ! A impropriedade é tão flagrante que talvez nem fosse necessário polemizar. Apenas para registro: a esquerda não é monolítica. Vai de herdeiros da socialdemocracia europeia aos comunistas, passando por grande número de variantes. Dentro dessas variantes, há subgrupos. Só os mais extremistas da direita ousariam afirmar que é tudo farinha do mesmo saco. Na esquerda, há grupos judaicos. Em Israel, por exemplo, atuam o Partido Comunista, o "Meretz" (dissidência do Partido Trabalhista) e numerosas organizações pacifistas que se definem como de esquerda. Nos Estados Unidos, grupos que apoiam negociações com os palestinos e condenam o expansionismo israelense estão à esquerda no espectro político do país. No Brasil, a ASA tem longa tradição progressista. Serão todos exemplares esquizofrênicos de auto-ódio?"
FONTE: escrito por Jacques Gruman e publicado no site "Carta Maior" (http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Cultura/Palavras-fora-do-lugar/39/31302). [Trechos entre colchetes adicionados por este blog 'democracia&política'].
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