O empréstimo chinês à Petrobrás pode gerar a "doença amarela"
"A 'doença amarela' começa a se manifestar em países em desenvolvimento da África e da América do Sul na forma de crédito farto da China.
Por J. Carlos de Assis, economista, professor de Economia Internacional, doutor em Engenharia de Produção
Costuma-se chamar de "doença holandesa" a situação na qual um país exportador em dólar de matérias-primas não consegue converter a receita externa em investimentos produtivos diversificados de forma a torná-lo menos dependente daquelas exportações. Em outras palavras, ele se torna indefinidamente dependente de vendas externas de matérias-primas e sujeito a suas flutuações de demanda e de preços no mercado internacional, pelo que a acumulação de reservas internacionais não se converte em base do desenvolvimento.
Celso Furtado fez um belíssimo trabalho sobre a doença holandesa na Venezuela, posteriormente convertido em livro pela competente viúva que gerencia o seu legado, Rosa Furtado. Consta que o presidente Chávez o leu. Se é verdade, não entendeu nada. A crise da Venezuela é uma crise de doença holandesa. Enquanto os dirigentes do país perdem seu precioso tempo em insultar o imperialismo ianque, os dólares do petróleo de uma das nações mais ricas do mundo em recursos naturais correm pelo ralo do consumo improdutivo.
Contudo, a questão da doença holandesa me vem à mente por causa do risco de uma nova doença que não tem nada a ver com a holandesa, a que chamo de "doença amarela". Ela começa a se manifestar em países em desenvolvimento da África e da América do Sul na forma de crédito farto da China. A própria China, em si, não tem nenhuma culpa no processo. Mas o fato óbvio é que, em termos conceituais, receita em dólares de exportação de matérias-primas não tem muita diferença de receita de empréstimos generosos por parte dos bancos chineses.
Neste exato momento, a Petrobrás conseguiu um crédito de 3,5 bilhões de dólares do Banco de Desenvolvimento chinês. Se ela usar esse dinheiro como base de retomada dos seus investimentos internos e de regularização de pagamentos de empreiteiras e fornecedores, estará fazendo um ótimo negócio, que se traduz na ruptura do congelamento de empréstimos que os bancos anglo-saxônicos estavam arquitetando contra ela. Entretanto, se resolver apenas fazer caixa, estará sucumbindo à doença amarela, ou seja, encaixe improdutivo.
Obviamente, no curto prazo, esse empréstimo chinês é bem-vindo e representa um princípio de ruptura com o sistema bancário-financeiro anglo-saxão, que atua como abutre institucionalizado sobre a economia mundial. É de se notar, porém, que grande parte da culpa nesse processo de exploração é nossa – isto é, de nossa subordinação àqueles jovens economistas que desde o acordo de Bretton Woods vem difundindo entre nós a doutrina dita ortodoxa em matéria monetária, sob inspiração sobretudo britânica e francesa.
Sim, podem acreditar: os vilões das políticas monetárias “ortodoxas” entre os países em desenvolvimento não foram originalmente norte-americanos, mas sim ingleses e franceses, que queriam exaurir, pelo sistema moeda-reserva, suas ex-colônias africanas e asiáticas. Os norte-americanos apenas toleravam isso na época de Robert Triffin. Depois, se tornaram “ortodoxos”. A evidência disso foi a reforma monetária e bancária brasileira em 1964 e 1965, já na ditadura: os americanos não se opuserem a um BC desenvolvimentista.
Já contei um pouco dessa história há décadas, em meu primeiro livro, “A Chave do Tesouro”, de forma que, se houver ainda interessados, que busquem nos sebos. O fato relevante, para o momento, é que o empréstimo chinês nos é muito bem-vindo, mas temos que usá-lo de forma adequada. Por um lado, eles vão constituir reservas internacionais em dólar. Por outro, serão convertidos em reais. São esses reais que vão entrar efetivamente na economia, gerando ativos e capacidade de pagamento, em real, do empréstimo obtido.
Quanto a Petrobrás tiver de pagar o empréstimo, no prazo estipulado, os 3,5 bilhões estarão bonitinhos lá nas reservas. Para completá-los, faltarão os juros. Mas, como se vai tratar apenas dos juros, será sempre possível que algum setor da economia – se não for destruído antes pela política insana de Levy, acobertado inexplicavelmente por Dilma – tenha produzido algum excedente líquido para cobrir o que será uma pequena despesa em conta corrente no balanço de pagamentos. É o que a China e outros asiáticos têm feito, brilhantemente.
Entretanto, caso quiséssemos fazer uma revolução no sistema monetário, e não apenas usá-lo contra a doença amarela, poderíamos pensar numa arquitetura na qual o empréstimo chinês (a parte em real) seria perfeitamente dispensável. A Petrobrás tem um programa de investimentos e um fluxo de pagamentos a fornecedores. É um ativo. Bastaria, para financiá-lo, que o Tesouro emitisse o dinheiro, através do BC, ou dívida pública e transferisse a receita ao BNDES para que o BNDES a repassasse à Petrobrás. No limite, o déficit correspondente desapareceria no processo denominado de "senhoriagem".
Não haveria nenhum motivo para que esse processo gerasse inflação. Na medida em que o Tesouro injetasse dinheiro no mercado de um lado, o estaria retirando de outro, através da emissão de dívida. Nem o mais fundamentalista dos monetaristas poderia acusar esse sistema de inflacionário. Claro, isso aconteceria sem problemas só no mercado interno. Para a parte correspondente ao mercado externo, seria suficiente que o BNDES financiasse generosamente pelo menos algumas empresas que se tornassem exportadoras líquidas.
Você talvez esteja pensando: esse cara é um maluco, está criando riqueza do nada. Não é bem assim. A riqueza estará sendo criada pelo trabalho, sob financiamento do Banco Central. E para sinalizar que não sou tão louco (ou que estamos ambos), tomem conhecimento do trabalho de um genial economista russo-britânico, Abba Lerner, que criou conceito de “finanças funcionais”. É o trabalho de economia mais importante de que tomei conhecimento, depois de ter lido Marx. Traduzi o livro de um discípulo dele, Randall Wray, “Trabalho e Moeda Hoje”. Vale a pena lê-lo (Editora UFRJ/Contraponto)."
FONTE: escrito por J. Carlos de Assis, economista, professor de Economia Internacional, doutor em Engenharia de Produção, autor de mais de 20 livros sobre Economia Política, entre os quais “A Razão de Deus”. Artigo publicado no portal "Carta MaioR" (http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/O-emprestimo-chines-a-Petrobras-pode-gerar-a-doenca-amarela/7/33214).
Por J. Carlos de Assis, economista, professor de Economia Internacional, doutor em Engenharia de Produção
Costuma-se chamar de "doença holandesa" a situação na qual um país exportador em dólar de matérias-primas não consegue converter a receita externa em investimentos produtivos diversificados de forma a torná-lo menos dependente daquelas exportações. Em outras palavras, ele se torna indefinidamente dependente de vendas externas de matérias-primas e sujeito a suas flutuações de demanda e de preços no mercado internacional, pelo que a acumulação de reservas internacionais não se converte em base do desenvolvimento.
Celso Furtado fez um belíssimo trabalho sobre a doença holandesa na Venezuela, posteriormente convertido em livro pela competente viúva que gerencia o seu legado, Rosa Furtado. Consta que o presidente Chávez o leu. Se é verdade, não entendeu nada. A crise da Venezuela é uma crise de doença holandesa. Enquanto os dirigentes do país perdem seu precioso tempo em insultar o imperialismo ianque, os dólares do petróleo de uma das nações mais ricas do mundo em recursos naturais correm pelo ralo do consumo improdutivo.
Contudo, a questão da doença holandesa me vem à mente por causa do risco de uma nova doença que não tem nada a ver com a holandesa, a que chamo de "doença amarela". Ela começa a se manifestar em países em desenvolvimento da África e da América do Sul na forma de crédito farto da China. A própria China, em si, não tem nenhuma culpa no processo. Mas o fato óbvio é que, em termos conceituais, receita em dólares de exportação de matérias-primas não tem muita diferença de receita de empréstimos generosos por parte dos bancos chineses.
Neste exato momento, a Petrobrás conseguiu um crédito de 3,5 bilhões de dólares do Banco de Desenvolvimento chinês. Se ela usar esse dinheiro como base de retomada dos seus investimentos internos e de regularização de pagamentos de empreiteiras e fornecedores, estará fazendo um ótimo negócio, que se traduz na ruptura do congelamento de empréstimos que os bancos anglo-saxônicos estavam arquitetando contra ela. Entretanto, se resolver apenas fazer caixa, estará sucumbindo à doença amarela, ou seja, encaixe improdutivo.
Obviamente, no curto prazo, esse empréstimo chinês é bem-vindo e representa um princípio de ruptura com o sistema bancário-financeiro anglo-saxão, que atua como abutre institucionalizado sobre a economia mundial. É de se notar, porém, que grande parte da culpa nesse processo de exploração é nossa – isto é, de nossa subordinação àqueles jovens economistas que desde o acordo de Bretton Woods vem difundindo entre nós a doutrina dita ortodoxa em matéria monetária, sob inspiração sobretudo britânica e francesa.
Sim, podem acreditar: os vilões das políticas monetárias “ortodoxas” entre os países em desenvolvimento não foram originalmente norte-americanos, mas sim ingleses e franceses, que queriam exaurir, pelo sistema moeda-reserva, suas ex-colônias africanas e asiáticas. Os norte-americanos apenas toleravam isso na época de Robert Triffin. Depois, se tornaram “ortodoxos”. A evidência disso foi a reforma monetária e bancária brasileira em 1964 e 1965, já na ditadura: os americanos não se opuserem a um BC desenvolvimentista.
Já contei um pouco dessa história há décadas, em meu primeiro livro, “A Chave do Tesouro”, de forma que, se houver ainda interessados, que busquem nos sebos. O fato relevante, para o momento, é que o empréstimo chinês nos é muito bem-vindo, mas temos que usá-lo de forma adequada. Por um lado, eles vão constituir reservas internacionais em dólar. Por outro, serão convertidos em reais. São esses reais que vão entrar efetivamente na economia, gerando ativos e capacidade de pagamento, em real, do empréstimo obtido.
Quanto a Petrobrás tiver de pagar o empréstimo, no prazo estipulado, os 3,5 bilhões estarão bonitinhos lá nas reservas. Para completá-los, faltarão os juros. Mas, como se vai tratar apenas dos juros, será sempre possível que algum setor da economia – se não for destruído antes pela política insana de Levy, acobertado inexplicavelmente por Dilma – tenha produzido algum excedente líquido para cobrir o que será uma pequena despesa em conta corrente no balanço de pagamentos. É o que a China e outros asiáticos têm feito, brilhantemente.
Entretanto, caso quiséssemos fazer uma revolução no sistema monetário, e não apenas usá-lo contra a doença amarela, poderíamos pensar numa arquitetura na qual o empréstimo chinês (a parte em real) seria perfeitamente dispensável. A Petrobrás tem um programa de investimentos e um fluxo de pagamentos a fornecedores. É um ativo. Bastaria, para financiá-lo, que o Tesouro emitisse o dinheiro, através do BC, ou dívida pública e transferisse a receita ao BNDES para que o BNDES a repassasse à Petrobrás. No limite, o déficit correspondente desapareceria no processo denominado de "senhoriagem".
Não haveria nenhum motivo para que esse processo gerasse inflação. Na medida em que o Tesouro injetasse dinheiro no mercado de um lado, o estaria retirando de outro, através da emissão de dívida. Nem o mais fundamentalista dos monetaristas poderia acusar esse sistema de inflacionário. Claro, isso aconteceria sem problemas só no mercado interno. Para a parte correspondente ao mercado externo, seria suficiente que o BNDES financiasse generosamente pelo menos algumas empresas que se tornassem exportadoras líquidas.
Você talvez esteja pensando: esse cara é um maluco, está criando riqueza do nada. Não é bem assim. A riqueza estará sendo criada pelo trabalho, sob financiamento do Banco Central. E para sinalizar que não sou tão louco (ou que estamos ambos), tomem conhecimento do trabalho de um genial economista russo-britânico, Abba Lerner, que criou conceito de “finanças funcionais”. É o trabalho de economia mais importante de que tomei conhecimento, depois de ter lido Marx. Traduzi o livro de um discípulo dele, Randall Wray, “Trabalho e Moeda Hoje”. Vale a pena lê-lo (Editora UFRJ/Contraponto)."
FONTE: escrito por J. Carlos de Assis, economista, professor de Economia Internacional, doutor em Engenharia de Produção, autor de mais de 20 livros sobre Economia Política, entre os quais “A Razão de Deus”. Artigo publicado no portal "Carta MaioR" (http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Economia/O-emprestimo-chines-a-Petrobras-pode-gerar-a-doenca-amarela/7/33214).
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